A depressão no processo de terminalidade

A atuação com paciente em fase final de vida escancara situações e emoções bastante peculiares que ultrapassam os aspectos emocionais comuns.

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A atuação com paciente em fase final de vida escancara situações e emoções bastante peculiares que ultrapassam os aspectos emocionais comumente manifestados em internações por quadros agudos e pós-operatórios. Sabe-se que, sob o aspecto psicológico, os enfermos experimentam reações de reajustamento que podem ser chamadas de estágios do processo de morrer, formulados por Kubles-Ross (1989). As tão conhecidas fases do luto podem ser facilmente identificadas na teoria, mas, na prática, se mostram ansiogênicas e impactantes para os envolvidos, despertando dúvidas e reatualizando sentimentos ligados a vivências anteriores.

Os transtornos depressivos, enquanto diagnósticos com base em critérios, referem-se a condições que têm como característica comum a presença de humor triste, vazio ou irritável, acompanhado de alterações somáticas e cognitivas que afetam significativamente a capacidade de funcionamento do indivíduo (DSM-V). Diferentemente desta condição, a depressão enquanto fase reativa ao processo de doença e luto pode ser facilmente confundida e, por vezes, conduzida de modo inapropriado, devido à falta de (in)formação profissional no processo de progressão da doença, terminalidade e morte.

Boa parte dos profissionais de saúde compreendem as divisões básicas apresentadas em livros, sobre as cinco fases do luto mais conhecidas: negação, raiva, barganha, depressão e aceitação. Entretanto, na prática, tais fases não seguem uma ordem, e não são obrigatoriamente compartilhadas ao mesmo tempo entre pacientes e familiares, podendo ocasionar confusão. De todas as condições, as mais nítidas entre os membros da equipe assistencial aparentam ser as situações explícitas de negação, por serem mais identificáveis no próprio discurso. Em contrapartida, a fase depressiva parece despertar desconforto e, por vezes, pode interferir na própria qualidade da assistência prestada, e da relação equipe-paciente-família.

Não é incomum ouvir a equipe dizer que o paciente está desistindo, se entregando à doença, que necessita de intervenção psicológica e farmacológica para voltar a ter esperanças e pensamentos positivos quanto a possibilidade de recuperação. É um erro “medicalizar o sofrimento” em situações que fazem parte da reflexão e autoconhecimento. Como nos aponta Simonetti (2011), no processo de adoecimento, a depressão, em seu sentido de luto, é uma etapa necessária ao enfrentamento da doença. Beck (2017), em um modelo mais atual, a apresenta como a fase em que o indivíduo passa a se “entregar” passivamente à doença, pois não acredita que possa ser curado, ou a cura possível já não lhe interessa, em razão das perdas que pode acarretar.

O paciente, quando chega a manifestar características de depressão em um estágio final de doença, apenas nos sinaliza que está começando a perceber conscientemente as repercussões da progressão da patologia em seu corpo, e assimilando os possíveis resultados disso em relação à sua vida. Para a equipe, essa condição pode despertar compaixão, pena e até mesmo afastamento; para o psicólogo hospitalar, isso é indicativo de que, o paciente que antes apresentava mecanismos de defesa pautados na negação, raiva ou barganha, passa a trazer à consciência seu próprio processo de finitude, entrando em um período de introspecção e reflexão, necessário para a assimilação de sua situação atual.

A depressão na terminalidade desperta reações emocionais não só na equipe assistencial, mas também na família, pois, boa parte das vezes, o paciente é o primeiro a identificar com propriedade o processo em que se encontra, ainda que tente não sinalizar essa percepção às outras pessoas. A família inicialmente pode se sentir insegura no próprio contato com o doente, pois acaba perdendo sua referência de relação estabelecida no decorrer da vida, dando lugar para o isolamento e introspecção necessários nessa fase. Perceber esse processo pode ser potencialmente ansiogênico para a família, tornando-se essencial que a equipe tenha clareza sobre as manifestações emocionais do paciente, sabendo conduzi-las de modo assertivo.

A fase depressiva presente no processo de luto também pode se mostrar nos membros familiares mais próximos ao paciente, entretanto, no geral ocorrem em momentos distintos. Apesar de não existirem regras, por vezes, é mais recorrente que a família demore mais tempo para internalizar o processo de finitude, tendendo a superestimar o prognóstico do paciente. Quando o doente entra no processo de introspecção e reflexão característicos desta etapa, os familiares ainda buscam recursos de enfrentamento para estimulá-lo a continuar na luta por melhoras. Após identificarem de modo mais claro os resultados visíveis da evolução da doença, confirmando através das informações da equipe a condição final, adentram a fase depressiva, momento em que internalizam o esgotamento de possibilidades de cura e iniciam a vivência da preparação para a perda.

Se o paciente sente através do corpo e da falência orgânica os indícios da terminalidade, a família percebe esse processo a partir do afastamento progressivo de seu ente querido, que passa a priorizar a ressignificação de sentimentos e a reflexão sobre legado de vida. Em um estágio final, após a resolução de pendências afetivas e sociais, a interação com o ambiente e com as pessoas deixa de ser uma necessidade primária, dando lugar à busca de conexão e conforto espiritual, desligamento do ambiente e sonolência excessiva, até que a ausência de interação seja completa.

Freud (1917) já descrevia o processo de luto como um estado de alma doloroso, com perda de interesse pelo mundo exterior, perdendo-se a capacidade de eleger um novo objeto de investimento afetivo. Essa mudança de foco leva o paciente a mergulhar-se em si, preparando-se para vivenciar seu momento de desligamento e partida, comportando-se a partir de um padrão particular, que dificilmente será compreendido por quem não vivencia a terminalidade. Apesar do caráter específico de constatação do óbito enquanto cessação das funções vitais, o foco biopsicossocioespiritual possibilita um olhar mais humanizado e empático. É necessário compreender a morte como um processo, que assim como a evolução de uma patologia crônica é progressiva.

De tal modo, a depressão enquanto fase do luto, deve ser compreendida como etapa natural e necessária do processo de finitude. Ao olhar a manifestação deste sintoma em um paciente, não se deve focar em tratamento medicamentoso, e sim em ofertar conforto não farmacológico, que possibilite ao mesmo ressignificar seus dias, a partir do que realmente se fez importante ao longo de sua existência. Internalizando a importância dessa fase é possível participar dos momentos finais de um paciente sem culpa, sem incômodo relacionado à pouca interação e às poucas palavras, conseguindo enxergar o lado genuíno da partida. O silêncio que se instala e a impossibilidade de colocar em palavras as vivências dos últimos momentos podem ser substituídos pela presença empática e acolhedora dos profissionais que zelam pela dignidade do paciente até seu minuto final.

LEIA MAIS: Reflexões sobre a limitação de suporte de vida

Referências:

  • BECK, A. H. U. Psico-oncologia: a atuação do psicólogo no tratamento de pacientes com câncer, Unjuí, 2017.
  • FREUD, S. Luto e Melancolia. Obras completas. ESB, v. XV. Rio de Janeiro: Imago, 1917.
  • SIMONETTI, A. Manual de psicologia hospitalar: o mapa da doença. 6a ed. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2011.

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