A vacinação anti-Covid-19 Vs Terapia gênica

Explicamos a diferença entre terapia gênica e as vacinas anti-Covid-19 de forma a esclarecer possíveis dúvidas conceituais.

Desde o início da pandemia de Covid-19, associada ao coronavírus SARS-CoV-2, e mediante o surgimento das subsequentes variantes virais, têm-se investido no desenvolvimento e distribuição de vacinas anti-Covid-19 em caráter de urgência/emergência em diversos países. Tais medidas incluíram a introdução de novas tecnologias vacinais de aplicação prévia às outras doenças com adaptação recente ao combate anti-Covid-19. Essas novidades levaram ao questionamento de diversos indivíduos da população, incluindo leigos, cientistas, profissionais de saúde e outros, quanto à adoção dessas intervenções sem possível embasamento científico adequado até o momento, resultando em movimento de negação à vacinação. Alguns dos argumentos utilizados na vigorosa campanha antivacinas incluem as afirmações de que (i) os novos compostos das vacinas anti-Covid-19, baseados em fragmentos do material genético do SARS-CoV-2, consistem em terapia gênica que implicará futuramente em alterações no material genético dos indivíduos e poderão resultar em novas doenças ou mutações em seres humanos; e (ii) as vacinas anti-Covid-19 baseadas em fragmentos do material genético do SARS-CoV-2 são formas de aplicarem “chips” de rastreio de informações diversas dos seres humanos, como uma forma de possível controle populacional quanto a múltiplos comportamentos, padrão biológico e etc.

Explicamos aqui, nesse artigo, a diferença entre terapia gênica e as vacinas anti-Covid-19 de forma a esclarecer possíveis dúvidas conceituais que perpetuam atualmente na sociedade e seguem interpretadas com ceticismo.

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A vacinação anti-Covid-19 Vs Terapia gênica

A Terapia Gênica

O conceito de terapia gênica clássico consiste em múltiplas abordagens moleculares de manipulação do material genético humano por mutagênese direcionada para o tratamento de doenças específicas, incluindo:

  1. A substituição, por eventos recombinantes, de genes defeituosos ou mutantes disfuncionais presentes nas células do hospedeiro por genes “saudáveis;
  2. A introdução de um gene adicional no material genético do hospedeiro de forma permanente para auxiliar no combate à patologia específica;
  3. A edição de um gene presente previamente nas células do hospedeiro para alterar sua função via CRISP/Cas9;
  4. Supressão da expressão de um gene defeituoso por interferência de RNA.

Sob uma perspectiva clínica, a terapia gênica tem o objetivo central e único de reversão potencial das sequelas clínicas de uma condição patológica preexistente através da expressão prolongada do gene normal (saudável) em culturas de células somáticas do paciente com posterior reinoculação (ex vivo) ou diretamente no paciente. Especialmente em pediatria, tais estratégias apresentam potencial significativo devido a diversas patologias detectadas na infância consideradas como incuráveis.

Tal estratégia é tipicamente dividida em dois tipos principais:

(a) Linhagem de células tronco (germinativa) —  A terapia envolve a introdução de um gene novo no espermatozoide ou óvulo, os quais permitirão o caráter hereditário. É menos utilizada devido aos desafios dos efeitos terapêuticos;

(b) Linhagem somática (pós-mitóticas) — A terapia é limitada às células somáticas ou ao indivíduo, e não pode ser herdada ou transmitida aos descendentes. É a técnica mais utilizada e com maior acúmulo de sucesso até o momento. Pode-se adquirir expressão prolongada dos genes por estabilização episomal até o tempo de viabilidade da célula inoculada.

Os estudos em terapia gênica já apresentam um percurso de décadas, e nos últimos anos têm contribuído para conquistas em doenças genéticas hereditárias ou adquiridas. Alguns exemplos históricos das primeiras tentativas de aplicação da terapia gênica são citados abaixo (Keeler et al., 2017; Steffin et al., 2019):

  • Década de 1960 — Primeira transferência gênica utilizando partícula viral;
  • Década de 1970 — Primeira terapia gênica para galactosemia in vivo em camundongos;
  • 1990 — Ensaio clínico realizado no National Cancer Institute, em Bethesda, Maryland, EUA, envolvendo o uso de um vetor retroviral para inserir o gene codificante da interleucina-2 (IL-2) em linfócitos infiltrantes tumorais (TILs) isolados a partir de um paciente. As modificações genéticas nesse linfócitos foram realizadas e as células foram inoculadas em pacientes com melanoma avançado. Os resultados clínicos não foram eficazes pois todos os 5 pacientes morreram com a progressão da doença, porém os TILS de 4 dos 5 doentes apresentaram expansão in vivo sem toxicidade significativa;
  • 1990 — Ensaio clínico para o tratamento de imunodeficiência hereditária combinada grave (SCID), utilizando vetor retroviral para a inserção do gene para a adenosina deaminase (ADA) em células T dos pacientes com a doença. Tais células foram reinoculadas em 2 pacientes após a manipulação genética, e os resultados em um dos pacientes foram promissores apesar dos confundimentos;
  • Década de 2000 — Primeira terapia gênica com sucesso para ß-talassemia;
  • Década de 2010 — Primeira aprovação da Food and Drug Administration (FDA, EUA) da terapia celular comercial CAR T (KYMRIAHTM) para tratamento de leucemia linfoblástica aguda pré-B; primeira terapia gênica para a síndrome de Wiskott-Aldrich (WAS), doença granulomatosa crônica (CGD) e anemia falciforme (SCD).
  • Outros relatos posteriores de sucesso em terapia gênica incluem a amaurose congênita de Leber, doenças lisossomais (Doença de Fabry), adrenoleucodistrofia, mucopolissacaroidose, doença de Gaucher, síndrome Hurler e outros. Algumas doenças adicionais estão em estudo de fase 1 e 2 como as hemofilias hereditárias A e B (deficiência nos fatores VIII e IX, respectivamente). Os maiores sucessos observados até o momento envolvem imunoterapias celulares contra alguns tipos de neoplasias como glioma maligno, sarcoma e tumores do sistema nervoso central, mieloma múltiplo, neuroblastoma, neoplasmas hepáticos, linfomas específicos e outras. Seis terapias gênicas receberam também aprovação comercial na última década no ocidente, incluindo Glybera® (tratamento de deficiência de lipoproteína lipase familiar), IMLYGIC® (tratamento de lesões irressecáveis em pacientes com melanoma), Strimvelis® (tratamento de ADA-SCID), KYMRIAHR® e YESCARTAR® (imunoterapias com células CAR T para linfoma não-Hodking, e KYMRIAHR® também para leucemia linfobástica aguda) e LUXTURNA® (tratamento para distrofia de retina associada com a mutação bialélica RPE65. Até o momento contabilizam-se mais de 2.500 estudos clínicos já foram iniciados utilizando essa estratégia terapêutica.

Concomitantemente a esses avanços, uma variedade de vetores virais têm sido empregada nessa estratégia, incluindo retrovírus e lentivírus para transferência gênica ex vivo para células tronco germinativas e hematopoiéticas, e adenovírus para transferência gênica in vivo para células somáticas, justamente de forma a possibilitar a introdução do gene modificado no núcleo das células-alvo, favorecendo os eventos recombinantes, e com a posterior reintrodução das mesmas no hospedeiro. Em alguns casos tenta-se a inoculação direta no paciente dessas partículas virais modificadas. Mais recentemente, o uso de vetores virais não integrativos também têm sido utilizado na tentativa de reduzir possíveis efeitos deletérios decorrentes da inserção do material genético viral. Outras estratégias incluem o uso de plasmídeos, como avaliado nos estudos para a correção da mutação no gene CFTR associada à fibrose cística, de oligodeoxinucleotídeos, ou de lipossomas catiônicos e nanopartículas contendo o fragmento genético a ser transferido no interior para interiorização via endocitose (Lukashev et al., 2016; Keeler et al., 2017; Anguela et al., 2019; Steffin et al., 2019).

A tabela abaixo apresenta um resumo geral das características dos vetores virais mais comumente estudados e utilizados até o momento.

Tabela 1. Resumo das características principais dos vetores virais usados em terapia gênica (Anguela et al., 2019).

Características Retrovírus Lentivírus Adenovírus Adenovírus híbridos
Genoma viral RNA RNA DNA DNA
Divisão celular necessária para a célula alvo Sim Fase G1 Não Não
Limitação de dimensão do material genético 8 kb 8 kb 8-30 kb 5 kb
Resposta imune ao vetor Leve Leve Extensa Leve
Integração ao genoma Sim Sim Deficitária Deficitária
Expressão prolongada Sim Sim Não Sim
Vantagens principais Transferência persistente dos genes na divisão celular Transferência persistente dos genes nos tecidos inoculados Altamente efetivos na transdução nos tecidos inoculados Indução de pouca resposta inflamatória, não patogênico

Devido aos recentes avanços e estudos clínicos, a vigilância e preocupações sobre a segurança e aplicabilidade clínica efetiva e adequada têm ressaltado a importância da regulamentação criteriosa e monitoramento no uso em seres humanos. Há considerações quanto a utilização de vetores virais como modelos de transferência gênica especialmente devido a necessidade de inserção precisa do gene na região correta do DNA humano, transferência eficiente para o paciente e expressão mantida, funcionante, prolongada/permanente. Com a compreensão e conhecimento obtido nos últimos anos, tenta-se evitar especialmente a possibilidade de ocorrência de genotoxicidade gerada pela introdução de vetores retrovirais com subsequente mutagênese insercional e ativação de proto-oncogenes adjacentes às inserções pró-virais no DNA humano. Para tal finalidade, adota-se vetores retrovirais ou lentivírus com regiões enhancer deletadas, com bons progressos sem efeitos tóxicos às células. Outros efeitos indesejáveis foram observados no uso de células CAR T devido a toxicidade decorrente da síndrome inflamatória sistêmica com clínica desde moderada até linfo-histiocitose hemofagocítica, e em alguns casos neurotoxicidade com edema cerebral, encefalopatia até convulsões em pacientes tratados. São possíveis também os efeitos deletérios decorrente da superexpressão de genes ou expressão ectópica do transgene, fenômeno denominado fenotoxicidade (Keeler et al., 2017; Chen et al., 2018).

As vacinas de material genético anti-Covid-19

Diferentemente da terapia gênica descrita acima, as estratégias das vacinas de material genético empregadas nos programas de vacinação anti-Covid-19 envolvem compostos moleculares e o racional não direcionados à substituição de genes defeituosos do hospedeiro humano, nem metodologias ex vivo. A expertise prévia obtida nos estudos de vacina de DNA nas décadas anteriores permitiu a elaboração de estratégias envolvendo o uso de fragmentos de DNA, DNA plasmidial RNA ou oligonucleotídeos modificados, que visam a expressão temporária de antígenos imunogênicos de patógenos, de forma a permitir a indução de resposta imune humoral e celular suficientes e duradouras para o combate para doenças infecciosas específicas ou de suas formas graves. Tal estratégia anti-SARS-CoV-2 utilizada por fabricantes diversos objetiva o uso de nanopartículas lipídicas (Moderna/NIAID, BioNTech/Fosun Pharma/ PFizer, Novavax e outros) ou adenovírus não replicativos e não integrativos (híbridos ou não) (Universidade de Oxford/AstraZeneca, Gam-COVID-Vac Lyo/Gamaleya Research Institute e outros) contendo fragmentos do genoma viral do tipo RNA codificantes de epítopos imunogênicos, principalmente da espícula S viral (ex. Região RDB). A expressão desses fragmentos objetiva a estimulação imune via produção de anticorpos neutralizantes e a ativação de linfócitos T CD4+ e CD8+ sem a indução da tempestade de citocinas característica dos casos graves de Covid-19, e com a diferenciação de células imunes de memória (Abd El Hadi et al., 2021; Chung et al., 2021).

Saiba mais: Vacinação contra Covid-19 em crianças e adolescentes

As vacinas atuais de material genético anti-Covid-19 são administradas por via intramuscular de forma a permitir a endocitose e a liberação temporária dos antígenos virais pelas células no tecido muscular. Dessa forma, procura-se aumentar as chances de ligação dessas moléculas às células apresentadoras de antígeno e o processamento, ativando a resposta imune inata e potencializando a resposta adaptativa específica. Por essa estratégia, o material genético viral é expresso no citoplasma das células humanas, sem integração do material genético viral no genoma humano e sem a substituição de genes humanos em fenômenos de recombinação típicos utilizados em terapia gênica. No caso das vacinas de DNA (através de plasmídeos ou não, utilizados por alguns desenvolvedores como a Takara Bio, Osaka University, e Genexine) é possível a formação de um epissoma citoplasmático ou nuclear temporário mas também sem a integração com genoma humano. Em todos esses casos, o material genético viral é degradado gradualmente e naturalmente pela célula hospedeira, mas espera-se a expressão gênica efetiva prolongada até a deterioração das moléculas contendo os fragmentos de RNA ou DNA viral no citoplasma da célula hospedeira. Como vantagens principais, considera-se a estratégia de vacinas de material genético como de simples produção, segura na administração e potencialidade para alta imunogenicidade. As desvantagens incluem a necessidade de múltiplas doses vacinais, a possível instabilidade das vacinas de RNA no estoque e transporte, a necessidade do uso de adjuvante, e a ocorrência de efeitos adversos diversos já descritos em diferentes estudos. As desvantagens do uso de vetores virais não replicativos como os adenovírus (Ad5 e Ad26) envolvem a presença de resposta imune de memória prévia à vacinação em diversos indivíduos, diminuindo significativamente a efetividade da imunização. Alguns desenvolvedores recorreram a adenovírus de chimpanzés (ChAd) de forma a evitar esses efeitos negativos. É importante ressaltar que essas vacinas citadas foram avaliadas por ensaios clínicos em suas diferentes fases do processo de avaliação, e estão atualmente autorizadas pelas instituições governamentais e disponíveis com eficácia comprovada de prevenção de casos graves de Covid-19 em todo o mundo (Abd El Hadi et al., 2021; Chung et al., 2021).

Detalhes adicionais sobre esse assunto podem ser verificados nas referências abaixo.

Referências bibliográficas:

  • Abd El Hadi SR, Zien El-Deen EE, Bahaa MM, Sadakah AA, Yassin HA. COVID-19: Vaccine Delivery System, Drug Repurposing and Application of Molecular Modeling Approach. Drug Des Devel Ther. 2021 Jul 30;15:3313-3330. doi10.2147/DDDT.S320320.
  • Anguela XM, High KA. Entering the Modern Era of Gene Therapy. Annu Rev Med. 2019 Jan 27;70:273-288. doi: 10.1146/annurev-med-012017-043332.
  • Chen YH, Keiser MS, Davidson BL. Viral Vectors for Gene Transfer. Curr Protoc Mouse Biol. 2018 Dec;8(4):e58. doi:10.1002/cpmo.58.
  • Chung JY, Thone MN, Kwon YJ. COVID-19 vaccines: The status and perspectives in delivery points of view. Adv Drug Deliv Rev. 2021 Mar;170:1-25. doi: 10.1016/j.addr.2020.12.011.
  • Keeler AM, ElMallah MK, Flotte TR. Gene Therapy 2017: Progress and Future Directions. Clin Transl Sci. 2017 Jul;10(4):242-248. doi: 10.1111/cts.12466.
  • Lukashev AN, Zamyatnin AA Jr. Viral Vectors for Gene Therapy: Current State and Clinical Perspectives. Biochemistry (Mosc). 2016 Jul;81(7):700-8. doi: 10.1134/S0006297916070063.
  • Steffin DHM, Hsieh EM, Rouce RH. Gene Therapy: Current Applications and Future Possibilities. Adv Pediatr. 2019 Aug;66:37-54. doi: 10.1016/j.yapd.2019.04.001.

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