Abordagem diagnóstica da anemia

Anemia corresponde à redução de hemoglobina, hematócrito e/ou massa eritrocitária e o diagnóstico é definido por valores de hemoglobina.

Anemia corresponde à redução de hemoglobina, hematócrito e/ou massa eritrocitária. Em geral, o diagnóstico laboratorial da anemia é definido por valores de hemoglobina < 12 g/dL em mulheres ou < 13,5 g/dL em homens e/ou hematócrito < 36% em mulheres ou < 41% em homens.

Os valores de referência podem mudar de acordo com a população estudada. Por exemplo, atletas, afrodescendentes e idosos tendem a ter valores mais baixos do que sedentários, caucasianos e jovens, respectivamente. Por outro lado, moradores de locais de alta altitude e tabagistas costumam ter valores mais altos do que a população geral.

A anemia pode ser classificada em leve, moderada ou grave de acordo com a hemoglobina:

  • Leve: hemoglobina > 10 g/dL;
  • Moderada: hemoglobina entre 7 e 10 g/dL;
  • Grave: hemoglobina < 7 g/dL.

A anemia pode ter várias causas, primárias (por exemplo, hemoglobinopatias) ou secundárias (por exemplo, doença renal crônica). Em muitos casos, representa uma condição multifatorial (alterações no metabolismo do ferro, apoptose dos precursores eritroides, redução da produção de eritropoietina, aumento da atividade macrofágica) e tem impacto prognóstico em outras comorbidades, como na doença cardiovascular.

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Fatores de risco para anemia incluem: história familiar positiva, deficiência nutricional (ex.: ferro, vitamina B12, ácido fólico), perda sanguínea (ex.: menorragia, trauma, hemorragia digestiva, hemodiálise), doenças crônicas (ex.: doença renal crônica, artrite, diabetes, hipotireoidismo), malignidade (ex.: câncer colorretal), alcoolismo, infecções (ex.: HIV), cirurgias grandes, uso de medicamentos (ex.: zidovudina, metotrexato) e doenças hematológicas (ex.: síndrome mielodisplásica, leucemia linfocítica crônica, mieloma múltiplo).

Abordagem diagnóstica da anemia

Quadro Clínico

Os sinais e sintomas de anemia são dependentes do grau de anemia, da velocidade de progressão do quadro e da demanda por oxigênio do paciente. A presença de sintomatologia é muito menos provável quando a anemia evolui lentamente, comparando-se com os casos nos quais a evolução é abrupta.

Sintomas de síndrome anêmica incluem fadiga, dispneia aos esforços e/ou em repouso, palpitações e claudicação. Em quadros mais graves, pode haver letargia, confusão mental e angina.

Anemia induzida por sangramento agudo está associada a complicações decorrentes da perda volêmica, podendo evoluir com hipotensão, lipotimia e síncope. Quadros anêmicos severos e/ou de rápida instalação, instabilidade hemodinâmica (por exemplo, hipotensão) ou concomitância com doença cardiopulmonar representam maior gravidade.

Anmanese e Exame Físico

Durante anamnese, deve-se questionar sobre:

  • História recente de perda do apetite, emagrecimento, febre e/ou sudorese noturna, que possa indicar presença de infecção ou malignidade. Alteração do hábito intestinal também deve ser pesquisada (ex.: melena, hematoquezia, constipação intestinal);
  • Presença de comorbidades que justifiquem ou contribuam para o quadro de anemia (ex.: doença renal crônica, doenças crônicas, alcoolismo, hemoglobinopatias diagnosticadas, infecção por HIV) e cirurgias prévias (ex.: gastrectomia, tireoidectomia);
  • Tempo de evolução da anemia: recente, subaguda ou crônica. Anemia de aparecimento recente sugere causa adquirida, enquanto anemia crônica pode estar associada à causa hereditária (ex.: hemoglobinopatias), especialmente em pacientes com história familiar positiva;
  • História familiar e informações de origem étnica podem ser importantes, visto que talassemias são particularmente mais comuns em populações de origem mediterrânea, assim como doença falciforme é mais comum em afrodescendentes;
  • Uso de medicamentos (além de alguns medicamentos poderem estar associados à anemia hemolítica, há risco de perda sanguínea por úlcera gástrica secundária a uso de anti-inflamatório não esteroide);
  • Nutrição e consumo de álcool, importante para identificação de dieta pobre em ferro, vitamina B12 e ácido fólico, bem como para avaliação de hepatopatia crônica.

As mulheres em idade fértil também devem ser interrogadas sobre o fluxo menstrual devido ao risco de anemia ferropriva secundária à metrorragia.

No exame físico, o objetivo principal é avaliar a presença de achados que possam estimar a gravidade do quadro anêmico e o comprometimento sistêmico e de sinais que sugiram causas específicas. Sinais associados à anemia incluem palidez, taquicardia, taquipneia, hipotensão postural, B1 hiperfonética, sopro sistólico e pulso fino. Icterícia pode estar presente e sugere hemólise (no entanto, é um achado pouco sensível e específico).

Algumas alterações podem sugerir o diagnóstico da anemia. Por exemplo, indivíduos com deficiência de ferro podem apresentar esclera azulada, glossite atrófica, queilite angular e coiloníquia (unha em colher). Pacientes com anemia ferropriva também podem ter perversão do apetite (pica), relatando vontade de ingerir coisas não alimentícias, como gelo, papel e sabão. Além disso, há associação entre anemia ferropriva e síndrome das pernas inquietas (vontade incontrolável de mexer as pernas durante períodos de inatividade). O relato de disfagia deve levantar a hipótese de síndrome de Plummer-Vinson (ferropenia, disfagia, membrana esofágica).

Saiba mais: Anemia ferropriva: suplementação de ferro reduz transfusões e tempo de internação 

Linfonodomegalias e hepatoesplenomegalia podem sugerir doença hematológica, como leucemia mieloide crônica. A presença de petéquias, equimoses e sinais de sangramento podem refletir trombocitopenia ou distúrbios de coagulação.

Exames complementares

O diagnóstico de anemia é feito a partir do hemograma. Diante de um paciente anêmico, exames complementares devem ser realizados, a fim de determinar a causa da condição, e tal indicação deve ser feita individualmente. Por exemplo, homens idosos devem ser investigados para sangramento de trato gastrointestinal (endoscopia digestiva alta e colonoscopia), enquanto mulheres com hipermenorreia ou menorragia devem ser avaliadas por ginecologista. Em alguns casos, o estudo de medula óssea é necessário, particularmente quando há suspeita de neoplasia hematológica.

Exames complementares estão indicados nas seguintes situações:

  • Hemoglobina < 13 g/dL em homens ou 12 g/dL em mulheres;
  • Queda na hemoglobina > 2 g/dL, independente do intervalo de tempo, sem causa aparente (ex.: cirurgia);
  • Falha de recuperação da hemoglobina aos valores basais após evento agudo (ex.: cirurgia);
  • Queda da hemoglobina associada a sintomas de anemia.

A contagem de reticulócitos é importante para diferenciar o diagnóstico de anemia hipoproliferativa x anemia hiperproliferativa:

  • Anemia hipoproliferativa (reticulocitopenia): deficiência nutricional (ex.: ferro, ácido fólico, vitamina B12), supressão medular por efeitos de drogas (ex.: quimioterápicos) ou radiação, redução dos precursores eritroides (ex.: anemia aplásica, infiltração por tumor sólido, fibrose medular), redução dos estímulos à eritropoiese (ex.: eritropoietina na doença renal crônica, hormônios tireoidianos no hipotireoidismo) ou eritropoiese ineficaz (ex.: anemia megaloblástica, síndrome mielodisplásica);
  • Anemia hiperproliferativa (reticulocitose): perda sanguínea (ex: hemorragia, exames repetidos no paciente crítico) ou hemólise (ex.: microangiopatia, hemoglobinopatias, malária, autoimune).

A avaliação de hemogramas prévios é importante para definição de anemia aguda x crônica. Quadros agudos têm maior associação com sangramentos agudos e hemólise, nos quais há aumento da contagem de reticulócitos (anemia hiperproliferativa).

Os índices hematimétricos também contribuem para o diagnóstico diferencial da anemia:

  • Volume corpuscular médio (VCM): relação com o volume das hemácias:
    • VCM < 80 fL = anemia microcítica – ex.: anemia ferropriva, talassemia, anemia de doença crônica;
    • VCM entre 80-100 fL = anemia normocítica – ex.: anemia em estágio inicial, anemia multicarencial (ferropriva e megaloblástica), sangramento agudo;
    • VCM > 100 fL = anemia macrocítica – ex.: reticulocitose, deficiência de ácido fólico e/ou vitamina B12, efeito de drogas (ex.: hidroxiureia, zidovudina), síndrome mielodisplásica, alcoolismo, hepatopatia, hipotireoidismo.
  • Hemoglobina corpuscular média (HCM): relação com a quantidade de hemoglobina:
    • HCM < 28 pg = anemia hipocrômica;
  • HCM entre 28-32 pg = anemia normocrômica;
  • HCM > 32 pg = anemia hipercrômica.
  • Índice de anisocitose eritrocitária (RDW): relação com a variação de tamanho entre as hemácias:
    • RDW entre 10-14% = normal (hemácias mais homogêneas);
    • RDW > 14% = anisocitose.

Outros achados ao hemograma podem sugerir a causa de base. Por exemplo, leucocitose pode refletir infecção ou neoplasia hematológica, linfopenia pode ser consequência de infecção por HIV, e trombocitose pode ocorrer na ferropenia ou em síndromes mieloproliferativas. A hematoscopia de sangue periférico também pode contribuir na investigação da causa da anemia. Possíveis achados incluem:

  • Poiquilocitose:
    • Acantócitos (projeções espiculadas) – ex.: hepatopatia grave, abetalipoproteinemia;
    • Codócitos ou leptócitos (forma de alvo) – ex.: hemoglobinopatia (ex.: talassemia), hepatopatia, esplenectomia, ferropenia;
    • Dacriócitos (forma de lágrima) – ex.: hematopoiese extramedular (ex.: mielofibrose);
    • Drepanócitos (forma de foice) – ex: anemia falciforme;
    • Eliptócitos ou ovalócitos (forma oval) – ex.: eliptocitose hereditária;
    • Equinócitos (hemácias crenadas) – ex.: distúrbios metabólicos (ex.: uremia), artefato;
    • Esferócitos (forma esférica) – ex.: anemia hemolítica autoimune, esferocitose hereditária;
    • Esquizócitos (fragmentos de hemácias) – ex.: microangiopatia;
    • Estomatócitos (palidez central com formato de fenda) – ex.: hepatopatia, estomatocitose hereditária.
  • Inclusões citoplasmáticas:
    • Corpúsculo de Howell-Jolly (fragmentos nucleares não removidos pelo baço) – ex.: hipoesplenismo;
    • Corpúsculo de Heinz (hemoglobina precipitada) – ex.: hemoglobinopatias, deficiência de G6PD;
    • Corpúsculo de Pappenheimer (depósito de ferro) – ex.: anemia sideroblástica, hemoglobinopatias.

Outros achados:

  • Hemácias em Rouleaux (empilhadas) – ex.: processos inflamatórios, neoplásicos e infecciosos;
  • Policromasia (hemácias azuladas ou acinzentadas) – ex.: reticulocitose;
  • Plurissegmentação de neutrófilos – ex.: deficiência de vitamina B12 ou ácido fólico;
  • Leucoeritroblastose (eritroblastos e células brancas imaturas) – ex.: invasão medular.

Abordagem terapêutica

Indica-se internação hospitalar nos casos de diagnóstico de anemia severa e/ou aguda, emergências clínicas (como dor torácica, insuficiência respiratória, hipotensão e rebaixamento do nível de consciência), hemorragia aguda ou quando há sinais de hemólise.

O manejo depende da causa de base. Em alguns casos, pode ser necessário submeter o paciente à transfusão de hemácias ou ao uso de agente estimulador da eritropoiese (eritropoietina). Indivíduos sem comorbidades podem tolerar níveis de hemoglobina até 7-8 g/dL. Por outro lado, pacientes com doença cardiopulmonar conhecida devem ser mantidos com níveis de hemoglobina mais elevados, pelo risco de exacerbação da doença de base. Politransfusão pode resultar em sobrecarga de ferro, com necessidade de terapia quelante de ferro.

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