ACEP 2022: Como evitar processos médicos inapropriados

A palestra ministrada pela Dra. Rachel Lindor no ACEP 2022 demonstrou erros comuns da equipe de saúde em diversos processos médicos.

A medicina não é uma ciência exata, sempre trabalhamos com probabilidades. Assim, por melhor que seja a capacidade técnica e o esforço empregado, nem sempre conseguimos alcançar o resultado que desejamos ao cuidar dos nossos pacientes. Para auxiliar na compreensão do processo de doença, e fortalecer a confiança entre médico e paciente, a habilidade de comunicação é tão importante quanto o conhecimento científico e as habilidades práticas (você pode aprender mais sobre isso na nossa série aqui no Portal PEBMED). No processo natural e legítimo de luto por uma perda, pacientes ou familiares podem culpabilizar a equipe de saúde pelos desfechos ocorridos. Assim, podem ocorrer processos legais contra a equipe de saúde, de forma apropriada ou não.

O objetivo dessa palestra, ministrada pela Dra. Rachel Lindor foi demonstrar erros comuns da equipe de saúde no registro de prontuário, fornecendo exemplos de casos reais ocorridos nos EUA, e fornecer recomendações para reduzir a chance de processos inapropriados. Os exemplos e informações foram retirados da palestra, disponibilizada para os participantes no site do evento.

enfermeiros com pranchetas nas mãos aprendendo sobre sistematização da assistencia de enfermagem

A importância da documentação apropriada

Segundo dados fornecidos na palestra, 10-20% dos processos contra médicos nos EUA se relacionam a erros de documentação no prontuário. Essa quantidade pode ser ainda maior (figura 1). Além disso, um advogado pode decidir se aceita ou não representar um caso conforme a qualidade da documentação do prontuário. Segundo a palestrante, citando o livro de direito The Elder Law Portfolio Series (Harry S. Margolis):

  • “The most difficult problems of proof in medical malpractice cases arise where there is a well-documented hospital record”.

O prontuário bem escrito, completo, com registro de todos os profissionais que cuidam do paciente é uma forma de demonstrar que o cuidado com aquela pessoa foi adequado. Aquilo que não está registrado é como se nunca tivesse acontecido. A equipe multiprofissionais muitas vezes faz um trabalho muito melhor que os médicos no preenchimento adequado do prontuário.

Figura 1: Porcentagem dos processos atendidos pela empresa MedPro, conforme a causa do litígio. Nessa empresa, 70% dos processos apresentavam documentação insuficiente, 22% falta de consentimento registrado para procedimentos, e 18% erros “mecânicos” (ex: erro de digitação na prescrição de dose de medicações). Fonte: MedPro Group closed claims, 2007-2016.

Documentação insuficiente

Os principais problemas legais estão relacionados ao preenchimento do prontuário, especialmente por documentação insuficiente de acontecimentos. Os principais tópicos relacionados a documentação insuficiente são:

  • Descrição no prontuário de tomada de decisões compartilhadas ou consentimento de procedimentos/terapias.
  • Registro sobre pacientes que agiram de forma contrária à orientação médica ou deixaram de seguir recomendações.
  • Registro das instruções de alta e encaminhamentos.
  • Registro sobre pacientes que se recusaram a receber cuidados médicos ou evadiram do serviço hospitalar/ambulatorial.
  • Registro da presença de testemunha (ex: durante realização de exame físico em região íntima).
  • Registro da realização de tentativas de contato para seguimento médico.
  • Registro da realização de interconsultas ou avaliação de pacientes.
  • Registro de precauções que o paciente deve tomar e condições que indicam retorno imediato ao médico.

Figura 2: Exemplos de processos por informação insuficiente ou ausente
Figura 3: Exemplos de processos onde foi assinado o termo AMA (against medical order – equivalente a termo de “alta a revelia”).
Figura 4: Exemplos de processos onde houve problemas no momento da alta do paciente.

Avaliação de autonomia do paciente

Nem todos os pacientes possuem capacidade de tomar decisões por conta própria. A presença ou não de autonomia existe em um espectro, por exemplo: pacientes com demência podem não ter autonomia para decidir sobre a venda de uma casa, mas podem recusar a realização de um exame invasivo. Para o registro da presença ou ausência de consentimento ser válido, a autonomia deve ser avaliada e registrada no prontuário. Além disso, o paciente deve ter tempo de julgar as informações fornecidas, tirar dúvidas, pedir a opinião de familiares ou outro médico de sua confiança.

Existem quatro elementos para avaliar essa capacidade:

  • Entendimento (doença, preocupações, riscos e benefícios)
  • Expressão da sua opinião
  • Apreciação (reconhecer os riscos)
  • Capacidade de julgar as informações de forma racional

Conteúdo do prontuário

O prontuário é um documento com valor legal, de forma que não deve ser preenchido de forma desleixada. Assim, não pode conter informações incompletas ou imprecisas. Tome cuidado com templates, copiar + colar informações, ou anotação incompleta de exames. Sempre leia as anotações de outros profissionais, como enfermeiros e médicos residentes, para avaliar se existe informação conflitante. Podem existir opiniões divergentes, assim como ocorre na prática clínica, mas as divergências ou dúvidas devem ser registradas e justificadas. Por exemplo:  Um médico residente anota no prontuário que o paciente apresentou febre e interroga a presença de infecção. O médico assistente deve registrar na sua evolução que a febre foi observada, mas o paciente possui outra causa para a febre (ex: traumatismo cranioencefálico), está estável hemodinamicamente, com hemoculturas negativas, e por isso não foi prescrito antibiótico.

Figura 5: Exemplos de processos envolvendo problemas no conteúdo do prontuário.

Erros “mecânicos” no prontuário

Erros de digitação ou de transcrição são comuns. Um dado da Joint Comission (2015), que realiza acreditação de hospitais em todo mundo, demonstra que 90% dos prontuários apresentam pelo menos um erro, com uma média de cinco erros por prontuário. Um artigo do JAMA de 2018, relatou a presença de 7 erros a cada 100 palavras, com um erro significativo a cada 250 palavras. No Pronto Socorro esses erros são mais frequentes, em função da quantidade e gravidade dos pacientes, ocorrendo erros de registro significativos em até 15% dos prontuários (Int J Med Infor, 2020). A maior parte desses erros são de digitação e transcrição, porém também podem ocorrer erros mais graves na prescrição de medicações e na sua dose.

Figura 6: Exemplos de processos por erros mecânicos.

Uso de linguagem inadequada

O prontuário não é “um diário”, de forma que suas informações devem ser precisas, objetivas, e desprovidas de qualquer julgamento de valor. Detalhes irrelevantes não devem ser registrados (ex: paciente iniciou dor torácica enquanto estava em uma passeata do Donald Trump). Da mesma forma, citações da fala do paciente devem ser usadas somente quando fundamentais e jamais devem ser usadas de forma pejorativa (ex: “paciente diz que seu açúcar é alto” deve ser trocado por “paciente tem diabetes”; ou “paciente diz que tem alergia a mosquitos que as picadas coçam” deve ser trocado por “refere alergia a picada de insetos”). O uso de linguagem inadequada é no mínimo antiético e pode ser interpretado como inaceitável em um julgamento.

Nunca se esqueça: “Muito da linguagem que aprendemos e seu uso vem de uma era onde o paternalismo era o paradigma dominante na relação médico-paciente. O fato desta linguagem ser considerada normal não significa que ela não é prejudicial ou pejorativa”. 1

Jamais adultere ou minta no prontuário

Parece óbvio, mas nunca é demais reforçar que jamais se deve alterar ou mentir no prontuário (ex: relatar o exame físico de uma região que não foi de fato examinada) . Além das questões éticas envolvidas, essa ação pode gerar: perda de credibilidade do profissional, perda da licença para trabalhar, perda da cobertura de seguro contra processos por má prática, e danos punitivos.

Figura 7: Exemplos de processos envolvendo adulteração de prontuário.

Quais prontuários precisam de atenção especial

No dia a dia muitas vezes não conseguimos dedicar a mesma atenção a todos os prontuários, em função da limitação de tempo disponível. No entanto, alguns prontuários precisam de atenção especial. Da mesma forma, esses pacientes precisam de maior cuidado, atenção, e também empatia por parte da equipe de saúde:

  • Pacientes com múltiplas passagens pelo sistema de saúde
  • Pacientes mais graves, com prognóstico ruim
  • Pacientes infelizes com o atendimento recebido até o momento

Algumas doenças estão mais estão relacionadas a diagnósticos não realizados e também merecem maior atenção:

  • Infarto agudo do miocárdio
  • Dor abdominal
  • Fraturas
  • Aneurisma de aorta
  • Feridas abertas de mão

Conclusão

A melhor forma de evitar problemas judiciais é realizar um bom trabalho na documentação do prontuário médico. Nesse sentido, vale ressaltar alguns pontos:

  • Não confie em formulários. Descreva no prontuário as discussões realizadas.
  • Documente o envolvimento de outras pessoas no atendimento (ex: interconsultas).
  • Leia e valorize o relato de outros profissionais no prontuário (ex: triagem, residentes).
  • Preste atenção no que você está digitando e revise o texto antes de enviar as informações.
  • Descrever o paciente de forma negativa torna você uma pessoa intolerante e incompatível com os tempos atuais e o trabalho da área da saúde.
  • Jamais adultere o prontuário.
  • Identifique as situações mais complicadas e dedique mais atenção a esses prontuários.

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Referências bibliográficas: Ícone de seta para baixo
  • Park J, Saha S, Chee B, Taylor J, Beach MC. Physician Use of Stigmatizing Language in Patient Medical Records. JAMA Netw Open. 2021 Jul 1;4(7):e2117052. doi: 10.1001/jamanetworkopen.2021.17052