ACSCC 2021: O velho se fez novo: ressurgimento de herniorrafias inguinais sem uso de telas

O uso de telas em herniorrafias inguinais tem possibilitado reparos livres de tensão, sendo eleita a abordagem da maioria dos cirurgiões.

O uso de telas em herniorrafias inguinais tem possibilitado reparos livres de tensão, como na clássica técnica de lichtenstein, sendo eleito como abordagem de escolha pela maioria dos cirurgiões. Todavia, em decorrência das complicações relacionadas a telas, abordagens que dispensam seu uso, como o reparo tecidual direto, têm sido propostas. No American College of Surgeons Clinical Congress 2021 (ACSCC 2021), a Prof. Liane S. Feldman introduziu a discussão sobre essa temática, fundamentada nos tópicos:

herniorrafias

Uso em demasia de telas para reparo inguinal: realidade dos EUA vs Mundo

Prof. Benjamin K. Poulose trouxe dados estatísticos sobre o uso de telas: enquanto EUA e Europa utilizam-nas em cerca de 95% das herniorrafias, Canadá, pela influência da técnica de shouldice, tem proporção menor (cerca de 80%). Já no continente africano, apenas 5% das abordagens utilizam telas, principalmente pelo maior número de cirurgias de emergência e dificuldade de obter próteses.

A escolha da técnica parte de aspectos relevantes ao cirurgião, como redução de dor crônica, realização de reparo duradouro, utilização de técnica reprodutível, e ao paciente, como diminuição de efeitos adversos e recuperação rápida e minimamente debilitante.

Procurando elucidar qual abordagem entrega melhores resultado, Lockhart et al. comparou reparo com tela vs sem tela partindo de 25 estudos (6293 pacientes), concluindo que as telas reduzem recorrência (redução de risco de 2,2%; RR 0,46) e aumentam risco de infecção de parede (RR 1,29), todavia não chegaram a resultados consistentes sobre dor crônica e complicações a longo prazo. Isso nos leva a um importante diálogo com o paciente: compartilhar decisão sobre os aspectos prioritários, visto que para os que desejam evitar recorrências o uso de telas se faz necessário, enquanto para os que priorizam evitar complicações relacionadas a telas, o reparo tecidual direto é a opção de escolha.

Em resumo, não se pode julgar o reparo tecidual direto considerando apenas as taxas de recorrência, é importante compartilhar a decisão com o paciente, atentando para as suas prioridades. Atualmente há uma tendência dos pacientes em optar pelo reparo tecidual em um primeiro momento, com opção de usar telas em um segundo momento, se recidiva.

Finalizando seu tópico, Prof. Benjamin K. Poulose ressaltou que devemos escolher uma técnica considerando também resultados individuais e expertise, oferecendo, sempre que possível, o reparo tecidual direto.

Leia também: Fatores de risco para insuficiência respiratória em cirurgia de correção de hérnia ventral

O reparo adequado para cada perfil de paciente: quem se beneficia da herniorrafia sem telas?

Prof. Jonathan P. Yunis acrescentou ao tópico anterior a ideia de que existem perfis diferenciados de pacientes, com comorbidades e variações anatômicas diversas, o que demanda uma escolha individualizada e centrada no paciente. Adicionalmente, devemos ter sempre em mente o princípio de não causar dano (Primum non nocere) com condutas excessivamente invasivas.

Assim, devemos considerar o tripé para direcionar nossa decisão: demandas e desejos do paciente + embasamento em evidências científicas + experiência local (recorrência, complicações relacionadas à tela e inguinodinia).

Dentre os reparos teciduais, a técnica de shouldice mostrou baixos índices de recorrência, sendo na shouldice clinic a taxa de 1% e fora do centro a porcentagem entre 5 e 10%. Adicionalmente, evidências demonstram que o reparo de shouldice é efetivo em relação a recorrência a longo prazo, mesmo em centros não especializados a recorrência permaneceu em torno de 2,9%.

Kockerling et al., comparou shouldice com lichtenstein, TEP, TAPP (Herniamed database), mostrando que pacientes operados por técnica de shouldice tiveram menos dor em repouso e ao exercício após um ano, comparados a lichtenstein, além de possuírem recidivas com defeitos menores.

Assim, Prof. Jonathan P. Yunis sumarizou as principais indicações das técnicas disponíveis:

  • TEP: pacientes que se importam com durabilidade e que demandam reparo da parede posterior
  • TAPP: hérnias bilaterais, pacientes obesos, histórico de prostatectomia
  • Reparo aberto com tela: idosos frágeis
  • Shouldice: reparo indireto primário ou direto pequeno em pacientes jovens, hérnias primárias em mulheres após descartada hérnia femoral, hérnias indiretas recorrentes após abordagem primária por TEP ou TAPP.

Concluiu ressaltando que a inguinodinia é um dos piores resultados para o paciente, estando relacionada ao posicionamento da tela e ao processo reacional tecidual. Como a incidência de dor crônica é menor sem tela, técnicas de reparo tecidual devem ser oferecidas sempre que possível.

Reparo de hérnia inguinal sem telas: transmitindo a técnica às próximas gerações

Profa. Melina C. Vassiliou iniciou ressaltando a complexidade da cirurgia de hérnia inguinal citando Astley Cooper (1804): Não existe doença no corpo humano que requeira em seu tratamento melhor combinação de conhecimento anatômico acurado e habilidade cirúrgica como o reparo de hérnias.

Em contraposição à complexidade do tratamento de hérnias, residentes têm sido expostos a menor diversidade de técnicas, ficando os reparos teciduais abertos reservados a cenários de emergência ou casos complexos.

Além da menor diversidade de técnicas, residentes têm praticado menos, não atingindo na maioria das vezes o mínimo de procedimentos indicado como necessário para a curva de aprendizado de hérnia, sugerido pela Sociedade Européia de Hérnias como entre 30 e 50 procedimentos.

Contrapondo-se ao ideal, estudos revelam que a maioria dos residentes não está apto a realizar reparos de hérnias ao final da formação e que 80% opta por realizar fellowship para aprimorar habilidades. Leung et al. avaliou a confiança do residente ao realizar reparo de hérnia inguinal, tendo 40% dos avaliados realizado apenas de 0-2 reparos, além de apenas 25% se reportaram sentir-se confiantes para realizar reparo tecidual.

Assim, mesmo com resultados promissores, técnicas de reparo tecidual não são empregadas extensamente por inexperiência técnica, influenciada diretamente por lacunas na formação. Medidas que poderiam aprimorar a formação: fellowships, requerimento de número mínimo de técnicas e cirurgias específicas durante a formação, formação contínua dos residentes progredindo em grau de complexidade de casos.

Concluindo, Profa. Melina C. Vassiliou salientou que o reparo tecidual entrou em desuso principalmente porque muitos cirurgiões não se sentem confiantes em realizar a técnica. Por isso é essencial aprimorar a formação cirúrgica definindo requisitos mais específicos em procedimentos e estimulando formação contínua.

Experiências pessoais em herniorrafias inguinais sem tela

Trazendo também abordagem prática, Prof. Mark P. Zoland ressaltou aspectos relevantes de sua prática com herniorrafia inguinal utilizando reparo tecidual.

Para planejamento da abordagem é essencial definir pontos a serem consertados, revisar a anatomia, considerar particularidades do paciente, avaliar qualidade do tecido a ser reparado e especificidades da hérnia (direta ou indireta, dimensões).

Durante o reparo, alguns princípios devem ser seguidos:

I. Remover estruturas que irão comprometer o reparo ou acrescentar vetores de força desnecessários (lipomas, saco);

II. Possibilitar um fechamento da base do canal inguinal estável em hérnias diretas e um fechamento adequado do anel inguinal interno nas indiretas;

III. Em hérnias diretas a tendência é aplicar técnica de shouldice e nas indiretas bassini;

IV. Utilizar anatomia favoravelmente, por exemplo, fazendo incisões que aliviam a tensão, usando o oblíquo externo se necessário (desarda);

Por fim, Prof. Mark P. Zoland concluiu que devemos compreender bem o básico sobre hérnias (patologia, anatomia, vetores de força) e usar ao nosso favor, otimizando a utilização de estruturas viáveis e não sendo rígido excessivamente quanto ao uso de técnicas, considerando mesclá-las quando necessário.

Saiba mais: Qual deve ser a duração do repouso após cirurgias abdominais ou correção de hérnias?

O que levar para casa

Herniorrafia inguinal é um dos procedimentos mais comuns em cirurgia geral, por isso a importância de manejar adequadamente indicação cirúrgica e técnica operatória a fim de reduzir potenciais complicações. Em nossa realidade o reparo herniário aberto com tela ainda é a opção realizada na maioria dos casos, porém vale a reflexão sobre personalização da escolha da técnica direcionada pelos anseios e particularidades do paciente, o que pode possibilitar ascensão de técnicas de reparo tecidual direto.

Estamos acompanhando o ACSCC 2021. Fique de olho no Portal PEBMED!

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