Aférese terapêutica no ambiente da terapia intensiva: uma revisão narrativa

Neste artigo, focamos na análise da plasmaférese terapêutica (TPE), que é a retirada de plasma do paciente com reposição de conteúdo

A aférese terapêutica engloba o procedimento de remoção de plasma (e substâncias ali suspensas) ou componentes celulares (leucócitos, plaquetas e eritrócitos) do sangue do paciente. Apesar de existirem diferentes propostas na utilização da aférese, focaremos neste artigo na análise da plasmaférese terapêutica (TPE – na sigla em inglês), que corresponde à retirada de plasma do paciente com reposição de conteúdo coloide ou cristaloide exógeno.  

De maneira geral, a TPE serve a dois grandes propósitos: (1) remoção de substâncias ou componentes suspensos no plasma do paciente, como anticorpos e toxinas; (2) reposição de plasma de doador saudável como medida terapêutica para determinadas entidades. Acredita-se ainda que outros potenciais efeitos imunomodulatórios possam ser obtidos a partir do procedimento a partir do controle de fatores desencadeantes de dano tecidual como diversas citocinas pró-inflamatórias. 

Para ser adequadamente removida pela TPE a substância de interesse deve, idealmente, possuir alto peso molecular, baixo volume de distribuição (em outras palavras: apresentar uma concentração intravascular elevada com baixa capacidade de difusão para o meio extravascular), meia-vida longa e baixa taxa de turnover.  

Com relação aos quesitos técnicos, temos máquinas de aférese que funcionam separando o plasma dos componentes celulares do sangue por meio de centrifugação, por meio de membrana semipermeável ou pelos dois métodos. Em geral, as máquinas que funcionam por meio de centrifugação exigem menor velocidade de fluxo sanguíneo pelo cateter, conseguem manejar maiores volemias e estão associadas a menores eventos adversos relacionados ao uso de anticoagulantes durante o procedimento.  

Um bom exemplo dos efeitos terapêuticos do procedimento é sua aplicação na púrpura trombocitopênica trombótica (PTT) adquirida. Trata-se de uma doença autoimune que consiste na produção de anticorpos anti-ADAMTS13, uma protease que age como cofator na clivagem de multímeros de vonWillebrand. A inibição da atividade dessa enzima leva à formação de microtrombos, marcando a patogenia da doença. A plasmaférese terapêutica possibilita não só a remoção desses autoanticorpos suspensos no plasma como também o fornecimento de ADAMTS13 do plasma do doador saudável para o paciente.  

Diferentes níveis de indicação 

Mencionamos aqui duas possíveis classificações. A primeira, proposta pela Sociedade Americana de Aférese (ASFA) e pela Sociedade Japonesa de Aférese, em seus respectivos guidelines, identificam quatro categorias: (1) Indicação de primeira linha; (2) indicação de segunda linha; (3) papel não estabelecido; (4) inefetivo ou prejudicial. No ambiente de terapia intensiva, a graduação proposta seria: (1) indicações absolutas, bem estabelecidas em literatura nas quais a TPE deve ser considerada em primeira linha; (2) relativas, nas indicações em que TPE parece demonstrar benefício em segunda-linha ou quando associada a outras terapias; (3) terapia de resgate, quando usada em um cenário de dúvida terapêutica, porém com plausibilidade biológica para resgate de pacientes críticos. Ao final do texto, adaptamos uma tabela com as principais indicações contidas nas referências. 

As indicações de TPE são constantemente refinadas conforme avança o entendimento dos seus efeitos nas mais variadas patologias presentes no dia a dia do médico. No entanto, principalmente no ambiente da terapia intensiva, poucos estudos com um número limitado de pacientes foram publicados, reduzindo o nível da melhor evidência disponível. Comumente o procedimento de plasmaférese terapêutica é realizado em caráter de urgência, necessitando de uma equipe capacitada para realização do procedimento. 

O conceito clássico de “purificação do sangue” atribuído à aférese terapêutica pode aplicar-se às condições inflamatórias sistêmicas encontradas no ambiente de terapia intensiva como a coagulação vascular disseminada (CIVD). No entanto, é importante observar que o tempo correto de início e o balanço adequado entre marcadores anti e pró-inflamatórios será necessário para determinar benefício ou potenciais malefícios atribuídos ao tratamento. É aventado que condições como o choque séptico podem obter benefício da aférese no que tange à remoção de fatores associados ao desencadeamento de lesões multiorgânicas, sendo possível reverter a condição de choque, melhorar a permeabilidade vascular e os defeitos de coagulação.

Pequenos estudos clínicos foram desenvolvidos no contexto da inflamação sistêmica secundária à Covid-19 com resultados promissores. Desfechos como aumento da celeridade na recuperação clínica puderam ser observados sem, no entanto, alterar taxas de mortalidade relacionada ao quadro grave. Outras doenças que podem se beneficiar: síndrome hematofagocítica, síndrome de ativação macrofágica, tempestade de citocinas relacionada à terapia Car-T.  

Elaborando uma estratégia de tratamento e prescrevendo uma aférese terapêutica 

Na elaboração de um protocolo de aférese, algumas informações clínicas do paciente e a fisiopatogenia da doença devem ser levadas em consideração. O volume ótimo de troca não é conhecido e irá variar conforme a substância a ser removida. Um pequeno estudo desenvolvido em Bangladesh para Síndrome de Guillain-Barré (GBS) com 20 pacientes adultos demonstrou que, naqueles pacientes que não conseguiam ter o tratamento padrão com imunoglobulinas ou sessão completa de TPE puderam obter resultados satisfatórios com trocas de volumes menores. A frequência das sessões também deve variar conforme as características da substância a ser removida.

Uma característica a ser notada é que, quanto maior o peso molecular e menor a capacidade de difusão do meio extravascular para o intravascular, menor será o volume necessário para retirada satisfatória da substância e o maior clearance será atribuído às primeiras sessões. Neste cenário, prefere-se estender o número total de sessões realizadas ao aumentar o volume de cada procedimento. Por exemplo, na Macroglobulinemia de Waldenstrom com proteína monoclonal IgM > 4g, a sessão mais efetiva será a primeira e podemos estabelecer uma frequência de dias intercalados para as subsequentes. 

A Sociedade Americana de Aférese (ASFA) em seu guideline de 2019 sugere a substituição de aproximadamente 1.0 a 1.5 vezes o Volume Total de Plasma (VTP) calculado para o indivíduo por sessão de aférese. No entanto, diversos estudos de diferentes regiões mostram uma dificuldade em atingir tais níveis, sendo mais comumente observada a troca de 0.4 a 1.0 vez o VTP. Ainda, alguns trabalhos em ambientes que dispõe de recursos mais limitados, por exemplo na Índia, evidenciam taxas de resposta global de 84% utilizando volumes menores de troca plasmática. Para facilitar na prática, 30 – 40mL/kg corresponde aproximadamente a 1,0 e 1,5 volemias respectivamente. 

O fluido de reposição deve ser calculado também com base no volume de plasma a ser processado, e este deve ser composto por solução de soro fisiológico com albumina (coloide não plasmático) ou plasma de doador saudável. Em um cenário de baixa disponibilidade de recursos, até 30% da solução pode ser de cristaloide. Como já deve ter sido notado por você, a escolha da solução de reposição dependerá também do objetivo terapêutico do procedimento. Caso seja necessário repor plasma “saudável”, este deverá ser escolhido. 

Efeitos indesejáveis da plasmaférese terapêutica 

Podemos estabelecer alguns principais eventos adversos relacionados ao procedimento. O primeiro está associado a distúrbios de coagulação, e este pode alterar conforme algumas variáveis. O anticoagulante de eleição atualmente é o citrato de sódio (risco menor de sangramento). A heparina não-fracionada também pode ser utilizada em casos selecionados. O epoprostenol é uma opção quando ambos os anteriores são inviáveis.

Quanto menor a relação anticoagulante/volume de plasma trocado, menores as chances de sangramento. A anticoagulação é necessário para se evitar a formação de microtrombos no interior da máquina. O uso de solução de albumina como reposição pode também ser um fator de risco, uma vez que a reposição de plasma garante o fornecimento de alguns fatores de coagulação que são removidos junto ao plasma do paciente submetido ao procedimento.  

O segundo está relacionado à hipocalcemia originada a partir das soluções de albumina e do uso do citrato de sódio. É aconselhado a reposição de gluconato de cálcio concomitantemente ao procedimento.  

O terceiro e mais frequente evento adverso está relacionado à escolha do catéter a ser implantado. Em máquinas que funcionam por centrifugação, podemos escolher cateteres menos calibrosos com possibilidade de acesso periférico por jelco 18; cateter central de 7 french, duplo lúmen também pode ser utilizado. Acessos mais calibrosos são necessários para aférese por membrana. Como regra geral, os cateteres de 13.5 french utilizados para hemodiálise são adequados e suficientes para a maioria das máquinas. Infecções relacionadas ao cateter são ainda uma preocupação.  

Alguns outros efeitos que merecem a atenção no ambiente de terapia intensiva: (1) clearance de drogas administradas como os antimicrobianos – não existem dados robustos na literatura quanto ao melhor momento de se administrar essas drogas, no entanto existe a recomendação de se administrar aminoglicosídeos antes do procedimento e fazer dose de reforço após o procedimento quando beta-lactâmicos são utilizados; (2) remoção de anticorpos monoclonais que estejam sendo utilizados para tratamento adjuvante como rituximab e outras drogas como micofenolato, tacrolimus e enoxaparina também são relatados; (3) reações anafilactóides e transmissão de doenças infectocontagiosas utilizando plasma de doador – recomendado dose de corticoides e anti-histamínicos antes do procedimento. 

Monitorização da eficácia do procedimento 

Ao contrário do que se pode pensar, a monitorização deve ser feita mais pela melhora clínica do que pela quantidade da substância removida, uma vez que esses dados não são diretamente proporcionais. O objetivo principal terapêutico irá variar conforme a enfermidade de base. Por exemplo: na crise miastênica, o objetivo é melhorar a força muscular do paciente e reduzir o número de anticorpos anti-receptor de acetilcolina, nessa ordem. Os exames laboratoriais solicitados antes e após a realização da aférese consistem em: hemograma, dosagem de imunoglobulinas, coagulograma, fibrinogênio, função renal e eletrólitos para monitorização dos efeitos adversos conforme discutido no tópico anterior.  

Indicações mais importantes em UTI 

A seguir, confeccionei uma tabela adaptada das principais indicações em ambiente de terapia intensiva. Para mais detalhes sobre dose, volume a ser reposto e parâmetros a serem avaliados, recomendo consultarem as referências ao final do texto. 

Indicações Absolutas Indicações Relativas  Indicações de resgate 
Síndrome de Guillain-Barré (desmielinizante polirradiculopatia inflamatória aguda)  Tempestade tireoidiana refratária  HIT refratária com trombose progressiva 

 

Síndrome de Goodpasture (anticorpos anti-membrana basal glomerular)  Vasculite ANCA positivo com hemorragia alveolar difusa  Vasculite crioglobulinêmica 
Síndrome de hiperviscosidade por depósito de imunoglobulinas especialmente IgM (Macroglobulinemia de Waldenstrom)  Encefalomielite aguda disseminada  Síndromes neurológicas paraneoplásicas 

 

Síndrome Antifosfolípide Catastrófica  índrome Hemolítico-urêmica atípica (mediada por complemento)  Lúpus Eritematoso Sistêmico com complicações graves como encefalite e pneumonite (não indicada para nefrite) 
Crise miastênica (miastenia gravis)  Anemia hemolítica autoimune severa    
Encefalite por anticorpo anti-recepetor-N-metil-d-aspartato  Polineuropatia desmielinizante adquirida crônica (IgA e IgG mediada)   
Púrpura trombocitopênica trombótica (PTT)  Eaton-Lambert  

 

 

Adaptado de Bauer PR. Intensive Care Medicine, 2022.

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Referências bibliográficas: Ícone de seta para baixo
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