As variantes de SARS-CoV-2: novos desafios para as vacinas

O surgimento de variantes mutacionais do coronavírus SARS-CoV-2 e os possíveis desafios para o desenvolvimento das vacinas.

Ainda nos primeiros meses desde o surgimento da pandemia da Covid-19, alguns pesquisadores já questionavam a possibilidade e a alta probabilidade do surgimento de variantes mutacionais do coronavírus SARS-CoV-2 e os possíveis desafios para o desenvolvimento das vacinas (Koyama et al., 2020; Callaway, 2021a, b).

O surgimento de variantes mutacionais do coronavírus SARS-CoV-2 e os possíveis desafios para o desenvolvimento das vacinas.

O problema 

O vírus SARS-CoV-2 consiste em um vírus envelopado, com genoma de ácido ribonucleico (RNA) fita simples com orientação positiva, contendo menos de 30.000 nucleotídeos. Tal material genético codifica em torno de vinte e nove proteínas virais, dentre elas as mais importantes como alvos para as vacinas são a glicoproteína S (principal espícula de contato do vírus com os receptores celulares do hospedeiro) e a proteína N do nucleocapsídeo viral. No processo da infecção pelo SARS-CoV-2, é necessária a ligação da partícula viral com a célula-alvo, por meio da interação dessa proteína S com os receptores da superfície celular. O mais importante receptor consiste na enzima conversora de angiotensina 2 (ACE2) presente principalmente na superfície das células pulmonares. Essa ligação depende da clivagem-ativação da proteína S, por intermédio da serina protéase viral TMPRSS2, que permite a fusão da estrutura viral com a célula hospedeira, com subsequente liberação do núcleocapsídeo no interior do citoplasma e as etapas seguintes do processo de produção de nos vírus, dano celular e outras consequências prejudiciais ao hospedeiro infectado. Tais estruturas de superfície do SARS-CoV-2 são selecionadas como antígenos-alvo para a avaliação da imunogenicidade e neutralização por anticorpos induzidos pela infecção ou vacinação. O problema surge quando ocorrem mutações nas sequências gênicas codificantes desses componentes de superfície que alteram a estrutura / conformação dos epítopos antigênicos, resultando em variantes virais que podem não ter seus antígenos reconhecidos pela imunidade gerada previamente pelas estirpes infectantes ou pelas vacinas elaboradas com as sequências originais. E essas variantes estão surgindo em todo o mundo.

É importante ressaltar que, dependendo do tipo de mutação (substituição, adição ou deleção de nucleotídeos), e em qual região do genoma ocorre, a mutação pode ser neutra, benéfica ou deletéria para a partícula viral mutante. A proteína S contém 1273 aminoácidos e, como citado, consiste no alvo principal das vacinas anti-Covid-19, pois consiste na estrutura viral que reconhece e se liga aos receptores celulares para a ocorrência da infecção. A ausência ou neutralização dessa estrutura inviabiliza a infecção viral. Portanto, as mutações no gene S, especialmente aquelas que afetam as porções da proteína S importantes para a patogênese e função da estrutura (como o domínio de ligação do receptor celular denominado RDB, ou o sítio de clivagem de “furina”) ou a conformação da estrutura são as mais críticas. O domínio RDB é composto pelos aminoácidos nas posições 319 a 541 e é o responsável pela ligação aos receptores ACE2. Se essas alterações não são reconhecidas por anticorpos induzidos pela infecção natural ou pelas vacinas direcionadas aos SARS-CoV-2 iniciais (originalmente descritos), pode ocorrer o favorecimento do escape dessas novas variantes ao sistema imune e possibilitar novas infecções, como as já observadas em indivíduos em diversas localidades que já tinham tido a síndrome Covid-19 anteriormente.

As principais variantes já descritas

Já em março de 2020, trinta e três variantes genômicas de SARS-CoV-2 já tinham sido descritas em diferentes bancos de dados ou plataformas como Global Initiative on Sharing All Influenza Data (GISAID) [9], GenBank, e NGDC Genome Warehouse, and National Microbiology Data Center (NMDC). Dentre essas, doze variantes apresentavam mutações na estrutura de epítopos da proteína S, N e proteína de membrana, reconhecidos por linfócitos B, e vinte uma variantes exibiam mutações em epítopos reconhecidos por células T. A maior frequência em diversos países, naquele momento, especialmente no continente europeu e pouco frequente na China, correspondia a variante 23403A>G (resíduo grande de aspartato – D – substituído pelo pequeno resíduo hidrofóbico de glicina – G no 614º aminoácido da proteína S), também denominada p.D614G, contendo mutação em epítopo da proteína da espícula viral reconhecida por células B. Tais alterações de tamanho e hidrofobicidade no epítopo foram suficientes para comprometer significativamente a afinidade ligante de anticorpos produzidos para as estruturas originais de SARS-CoV-2, e garantiu a essa estirpe a responsabilidade pela maior parte da incidência de casos no mundo em todo o ano de 2020. A variante D614G apresenta elevada taxa de replicação viral em células do epitélio pulmonar e de tecidos das vias aéreas humanas, com aumento da infectividade e estabilidade dos vírions, além de garantida alta carga infecciosa. Como a distribuição dessa variante mutacional D614G se tornou rapidamente ampla e comum no início dos estudos de desenvolvimento de vacinas, foi possível garantir a eficácia da imunidade induzida pelas vacinas para essa estirpe (Koyama et al., 2020).

O vírus SARS-CoV-2 acumula mutações pontuais em 1 a 2 nucleotídeos no seu genoma mensalmente, o que corresponde a uma taxa 1/2x menor do que a do vírus influenza e 1/4x da taxa de mutações no vírus da imunodeficiência adquirida (HIV). Essa discrepância decorre da existência de uma enzima exorribonuclease (ExoN) codificada pelo genoma de coronavírus que parece ter atividade corretora de erros mutacionais na replicação viral. A inativação genética dessa exonuclease aumenta a taxa mutacional para 15 a 20x em SARS-CoV, por exemplo.

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A partir de então, vários estudos foram publicados descrevendo as novas variantes, algumas das quais apresentam alterações nos principais epítopos da proteína S, utilizada como alvo vacinal, especialmente em vacinas de DNA ou RNA (Weisblum et al., 2020). As pesquisas indicam que as mutações do tipo deleção de nucleotídeos no domínio N-terminal da proteína S podem alterar a antigenicidade dessa estrutura. Tais mutações não são únicas (pontuais ou singulares) nas variantes emergentes, e a combinação final dessas podem comprometer as estratégias atualmente existentes de controle da doença e exigem mudanças ou adaptações urgentes para garantir a eficácia vacinal. O impacto das alterações na porção C terminal da proteína S detectadas ainda é desconhecido. As variantes mais preocupantes e recentemente descritas são:

    • B.1.1.7 – Também chamada variante do Reino Unido (U.K. variant). Apresenta deleção dos aminoácidos nas posições 69 e 70 da proteína S, resultando em alteração conformacional significativa. Tais deleções aumentam em 2x a infectividade de SARS-CoV-2, quando comparada à variante D614G. A deleção do aminoácido 144 também tem sido associada à diminuição da capacidade ligante a anticorpos neutralizantes. Possui também mutação de substituição de asparagina (N) com tirosina (Y) na posição 501 da RDB (N501Y), a qual aumenta a capacidade de ligação ao receptor ACE2, altera a ligação de anticorpos ao RDB e reduz a produção de anticorpos pelo prejuízo da cooperação entre linfócitos B e T. Tal variante ainda apresenta substituição na posição 681, próxima ao sítio de clivagem de furina (prolina por histidina – P681H), mas não está claro se essa alteração favorece ou diminui a infectividade viral.
    • B.1.351 – Também conhecida como 501Y.V2, ou variante da África do Sul. Apresenta deleções nos aminoácidos 242-244, que tem sido associada à diminuição da capacidade ligante a anticorpos neutralizantes. Possui também a mutação N501Y. Outras mutações adicionais na porção RDB são K417N (substituição de lisina para asparagina na posição 484) e E484K (substituição de glutamato por lisina na posição 484), as quais proporcionam a resistência de SARS-CoV-2 aos anticorpos neutralizantes, diminuem a resposta à terapia com anticorpos monoclonais e reduzem a neutralização por plasma convalescente, o que acumula um potencial elevado para escape do sistema imune.
    • P.1. – Também conhecida como 501Y.V3 ou variante brasileira (Manaus), e descrita inicialmente em pacientes provenientes do Brasil e rastreados em um aeroporto no Japão. É derivada da variante brasileira B.1.1.28, anteriormente frequente no país. Possui também as mutações K417N, E484K e N501Y. Adicionalmente apresentam substituições de aminoácidos na região N terminal cuja significância ainda é desconhecida. Dentre os casos analisados, o surgimento da variante ocorreu a partir de novembro, pois representavam 52,2% dos genomas de SARS-CoV-2 isolados e sequenciados na capital amazonense em dezembro de 2020 e 85,4% dos casos em janeiro de 2021, sendo ausente em períodos anteriores. Sugere-se um maior potencial patogênico ou de infectividade, mas tais observações ainda estão em investigação.

Os novos desafios

Frente a emergência dessas estirpes, novos estudos, incluindo alguns patrocinados pelas empresas produtoras de vacinas, correm para avaliar o potencial de neutralização do soro em indivíduos vacinados contra as variantes de SARS-CoV-2. Os resultados ainda são controversos (Cohen, 2021).

Dentre estudos publicados, dois manuscritos indicaram que, após 2 a 4 semanas após a vacinação com o produto da Pfizer, os indivíduos apresentaram soro com atividade neutralizante para as estirpes originais e a variante B.1.1.7. Porém, uma publicação indicou uma redução de 3,85x na produção de títulos neutralizantes. As mutações E484K, encontradas nas variantes B.1.351 e P.1. induziram perdas ainda mais significativas. Os estudos conduzidos pela Moderna indicaram manutenção da propriedade neutralizante nos soros pós-vacinais frente as variantes B.1.1.7, mas reduzida neutralização para B.1.351 (6,4x menor) ou para o pseudovírus K417N-E484K-N501Y-D614 (2.7x menor), mas preservada capacidade de neutralização completa da partícula viral da variante B.1.351.

Dados preocupantes começaram a serem divulgados indicando que indivíduos vacinados com os produtos da Moderna ou Pfizer apresentaram soro com atividade neutralizante reduzida de maneira significante para as variantes com a mutação N501Y e a combinação K417N:E484K:N501Y (Kupferschmidt, 2021; Mascola et al., 2021).

Mediante tais achados, as empresas produtoras de vacinas de DNA, RNA ou recombinantes iniciaram ajustes nas estratégias vacinais futuras que devem envolver o uso de doses de reforço com componentes vacinais contendo sequências gênicas das variantes emergentes. Curiosamente, sugere-se que as vacinas com partículas virais completas inativadas podem vir a consistir em melhor solução para gerar imunidade ampla para as diferentes variantes por apresentarem outros antígenos virais conservados no SARS-CoV-2 na composição (Callaway, 2021a, b; Callaway & Ledford, 2021; Finkelstein et al., 2021; Mascola et al., 2021).

Enquanto isso, uma nova variante denominada CAL.20C foi isolada inicialmente no sudeste da Califórnia, EUA em outubro de 2020 e descrita em uma publicação de 20 de janeiro de 2021, e assim sucessivamente (Zhang et al., 2021). Simultaneamente novas perguntas surgem frente aos novos surtos de hospitalizações, evidências de reinfecção, alterações nos sintomas e gravidade da doença e mudança nas faixas etárias mais infectadas em todo o mundo. Estariam esses eventos relacionados com a emergência de novas variantes?

Referências bibliográficas:

  • Callaway E. Could new COVID variants undermine vaccines? Labs scramble to find out. Nature. 2021 Jan;589(7841):177-178.
  • Callaway E. Fast-spreading COVID variant can elude immune responses. Nature. 2021 Jan;589(7843):500-501.
  • Callaway E, Ledford H. How to redesign COVID vaccines so they protect against variants. Nature. 2021 Feb;590(7844):15-16.
  • Cohen J. Two new vaccines deliver good and bad news for the pandemic. Science. 2021 Feb 5;371(6529):548-549.
  • Finkelstein MT, Mermelstein AG, Parker Miller E, Seth PC, Stancofski ED, Fera D. Structural Analysis of Neutralizing Epitopes of the SARS-CoV-2 Spike to Guide Therapy and Vaccine Design Strategies. Viruses. 2021 Jan 19;13(1):134.
  • Koyama T, Weeraratne D, Snowdon JL, Parida L. Emergence of Drift Variants That May Affect COVID-19 Vaccine Development and Antibody Treatment. Pathogens. 2020 Apr 26;9(5):324.
  • Kupferschmidt K. Danish scientists see tough times ahead as variant rises. Science. 2021 Feb 5;371(6529):549-550.
  • Mascola JR, Graham BS, Fauci AS. SARS-CoV-2 Viral Variants-Tackling a Moving Target. JAMA. 2021 Feb 11. doi: 10.1001/jama.2021.2088.
  • Zhang W, Davis BD, Chen SS, Sincuir Martinez JM, Plummer JT, Vail E. Emergence of a Novel SARS-CoV-2 Variant in Southern California. JAMA. 2021 Feb 11.
  • Weisblum Y, Schmidt F, Zhang F, DaSilva J, Poston D, Lorenzi JC, Muecksch F, Rutkowska M, Hoffmann HH, Michailidis E, Gaebler C, Agudelo M, Cho A, Wang Z, Gazumyan A, Cipolla M, Luchsinger L, Hillyer CD, Caskey M, Robbiani DF, Rice CM, Nussenzweig MC, Hatziioannou T, Bieniasz PD. Escape from neutralizing antibodies by SARS-CoV-2 spike protein variants. Elife. 2020 Oct 28;9:e61312.

 

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