AVC após procedimentos cardíacos: como prevenir e, se possível, tratar?

O reconhecimento e tratamento adequado do acidente vascular cerebral (AVC) isquêmico ou hemorrágico impacta diretamente na morbimortalidade dos pacientes.

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É possível que o paciente, após procedimento cardíaco, sofra um acidente vascular cerebral (AVC) isquêmico ou hemorrágico. O reconhecimento e tratamento adequado desta complicação impacta diretamente na morbimortalidade dos pacientes.

As mais recentes inovações em terapias cardíacas, portanto, sempre encontram a necessidade de provarem-se mais seguros do que seus análogos cirúrgicos já consolidados, principalmente no que tange o risco de eventos cerebrovasculares associados. É o caso, por exemplo, do stent de artéria carótida; reparo minimamente invasivo de valva mitral; substituição da válvula aórtica transcateter, entre outros. Felizmente, como será discutido mais adiante, está sendo observada uma queda na incidência de eventos cerebrovasculares nestes procedimentos, bem como observa-se um aprimoramento das estratégias de prevenção.

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Dados retrospectivos sugerem que o AVC (dentro de 36 horas do procedimento) ocorre em uma taxa de 0,1 a 0,6% de pacientes submetidos a cateterismo cardíaco diagnóstico. A estimativa mais alta vem de uma meta-análise de estudos que realizou avaliação neurológica sistemática e ressonância magnética (RM) do encéfalo.

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Apresentação Clínica

A maioria dos AVCs relacionados a procedimento cardíaco se apresenta durante o procedimento ou em até 24 horas do procedimento. Manifestações comuns de AVC hemorrágico ou isquêmico vão incluir alterações visuais, afasia, disartria, hemiparesia e comprometimento do estado mental. Os sinais clínicos não costumam ser específicos o suficiente para distinguir entre isquemia ou hemorragia, necessitando a realização de exame de imagem.

Discutiremos os mecanismos que podem gerar isquemia ou hemorragia cerebral a seguir, bem como eventos silenciosos – ressaltando, onde houver, as diferenças entre procedimentos com fins diagnósticos e aqueles terapêuticos:

AVC isquêmico: Em sua maioria, está diretamente relacionado ao procedimento cardíaco em si, que inicialmente pode envolver o avanço de cateteres com fio-guia pela aorta, geralmente utilizando acesso transfemoral ou transradial. A manipulação do cateter ou fio pode deslocar resíduos feitos de trombos, material calcificado, ou partículas de colesterol de placas ateroscleróticas de dentro do arco aórtico e da carótida proximal e artérias vertebrais. Adicionalmente, material trombótico fresco pode se formar no cateter e na ponta do fio-guia.

A maioria dos casos de AVC isquêmico relacionado com procedimento cardíaco é causada por evento tromboembólico. O mecanismo é similar entre procedimentos diagnósticos ou terapêuticos.

No entanto, usualmente o cateter intervencionista é maior do que o de diagnóstico, e os procedimentos com fins terapêuticos costumam tomar mais tempo dos que o diagnóstico, e portanto teoricamente com risco aumentado. O risco é particularmente alto naqueles pacientes com estenose aórtica valvar significativa que são submetidos a cateterismo retrógrada da valva aórtica.

Causas menos comuns estão relacionadas à embolização de ar, desalojamento de coágulo do ventrículo esquerdo, hipotensão periprocedimento, dissecção arterial e fratura de fio-guia.

AVC hemorrágico: O risco aqui é aumentado por conta de anormalidades hemostáticas adquiridas induzidas pelos trombolíticos; anticoagulantes e/ou regime de antiagregante plaquetário adotado no período periprocedimento.
A hemorragia intracerebral é responsável por 8 a 46% dos AVCs relacionados a procedimento cardíaco, nos poucos registros que fazem distinção entre os subtipos de AVC isquêmico e hemorrágico. Já hemorragia subaracnóidea (HSA) seguindo a cateterismo cardíaco é provavelmente incomum, se não rara, com apenas poucos casos citados na literatura.

Embolismo assintomático: Trata-se de situação mais comum do que o AVC com manifestação clínica, representando até 8% dos pacientes submetidos a cateterismo cardíaco, contra a incidência de menos de 1% de eventos clinicamente sintomáticos, como o encontrado em metanálise do assunto. A ocasião destes eventos possui relevância pois parece estar relacionada a um risco aumentado de progressão para quadros demenciais.

Ilustração dos mecanismos relacionados aos eventos cerebrovasculares decorrentes de procedimentos cardíacos
Ilustração dos mecanismos relacionados aos eventos cerebrovasculares decorrentes de procedimentos cardíacos

Fatores de risco relacionados ao paciente:
• Idade avançada (>75 a 80 anos de idade)
• Hipertensão arterial sistêmica
Diabetes Mellitus
• História prévia de AVC
• Insuficiência renal
• Insuficiência cardíaca
• Gravidade da doença coronariana, incluindo a presença de doença triarterial

Fatores de risco específicos ao procedimento:
• Cateterismo de emergência
• Tempo prolongado de procedimento
• Maior uso de contraste
• Cateterismo cardíaco retrógrado do ventrículo esquerdo em pacientes com estenose aórtica
• Intervenções em enxertos/bypass
• Uso de balão intra-aórtico
• Presença de trombo coronariano intra-arterial

Fatores de risco de hemorragia intracerebral:
• Anticoagulação ou terapia trombolíticos para infarto agudo do miocárdio (IAM)
• ≥75 anos de idade
• Sexo feminino
• Pressão arterial sistólica (PAS) ≥160 mmHg
• Negros
• Baixo peso corporal

Abordagem e Tratamentos

A abordagem inicial aos eventos cerebrovasculares, independente da etiologia, é similar. Sugere-se realizar as seguintes etapas, sem atrasos:

• Ativação do time de resposta ao AVC (ou mobilização para serviço especializado);
• Estabilizar via aérea, respiração e circulação.
• Verificar glicemia, já que sintomas de hipoglicemia podem mimetizar um AVC; corrigir glicose sérica <60 mg/dL [<3.3 mmol/L] de forma rápida.
• Solicitar contagem de plaquetas ou estudos de coagulação se houver suspeita de trombocitopenia ou coagulopatia.
• Determinar início de sintomas ou momento em que o paciente foi visto por último sem sintomas.
• História focada e exame físico ajudam no desenvolvimento do diagnóstico diferencial.
• Realização de exame de imagem de emergência, sendo tomografia (TC) de crânio sem contraste ou ressonância magnética (RM) de encéfalo as preferências. Optar pela modalidade que estiver mais facilmente disponível para realização e interpretação adequada. Complementar, sempre que possível, com estudo neurovascular como angiografia por tomografia ou ressonância. Em caso de dúvida, estudos de perfusão podem ser úteis, porém com cautela de não atrasar o tratamento (caso indicado) para o AVC enquanto obtém mais exames.

O tratamento do AVC isquêmico depende do tempo decorrido desde seu início (comumente denominado de “ictus”). Sugere-se o uso de terapia trombolíticos intravenosa para pacientes que preenchem os critérios (ver tratamento do AVC isquêmico) em até 4,5 horas após o ictus.

No entanto, apesar da evidência de benefício em muitos pacientes, o risco de sangramento é relativamente mais alto nestes pacientes quando comparados com a população geral que sofre AVC isquêmico, por conta do uso recente de terapia antitrombótica agressiva e o potencial de sangramentos relacionados ao procedimento (por exemplo o sangramento retroperitoneal). Recomenda-se que os benefícios e riscos da terapia trombolíticos intravenosa nesses pacientes seja ainda mais cuidadosamente avaliada.

Documentar um tempo de tromboplastina parcialmente ativada (PTT) normal caso o paciente tenha recebido anticoagulação nas últimas 48 horas, antes de considerar a trombólise. O restante do manejo, envolvendo cuidados suportivos gerais, é semelhante ao paciente que sofreu AVC isquêmico por outras etiologias.

No caso do paciente com AVC hemorrágico, o manejo urgente envolve reversão da anticoagulação quando possível; controle pressórico arterial e monitorização da pressão intracraniana, com tratamento caso esteja elevada.

Diagnóstico diferencial

Inclui o acidente isquêmico transitório (AIT); crise epiléptica; enxaqueca; encefalopatia; distúrbios toxico-metabólicos como a hipoglicemia. Em alguns casos, o diagnóstico e reconhecimento dos déficits neurológicos pode ser atrapalhado pelo efeito sedativo das medicações utilizadas para o procedimento ou para outras situações comórbidas.

Uma consideração adicional rara no período periprocedimento é a de cegueira cortical transitória que ocorre induzida pelo contraste, seja iônico ou não-iônico. Ocorre geralmente de minutos a horas após o procedimento, iniciando com turvação visual que rapidamente evolui completamente para cegueira, usualmente associada com dor de cabeça. Adicionalmente pode apresentar-se também com vômitos, confusão, afasia, comprometimento de memória, paresia ou ataxia.

Na TC sem contraste adicional, pode haver a captação remanescente do contraste administrado durante o cateterismo cardíaco, afetando o córtex, particularmente os lobos parieto-occipitais, assim como estruturas profundas como tronco encefálico ou cerebelo. Edema de substância branca simétrico nos hemisférios cerebrais posteriores é outro achado frequente. Em praticamente todos os casos descritos, o déficit neurológico e as anormalidades de imagem gradualmente se resolveram após dias.

Parece tratar-se de uma vasculopatia transitória, com quebra da barreira hematoencefálica, sugerindo que se trate de uma forma de síndrome de encefalopatia posterior reversível (comumente conhecida por sua sigla em inglês de PRES).

Estratégias de Prevenção

Podem ser estratificadas dentre abordagens referentes aos procedimentos; aos dispositivos e à farmacologia:

  • Estratégias para todos os procedimentos cirúrgicos:
  • Reduzir tempo de clampeamento e tempo de bypass cardiopulmonar;
  • Diminuir o número de clampeamentos.
  • Perfusão endovascular anterógrada.
  • Oclusão do balão aórtico endovascular.
  • Objetivar Pressão Arterial Média (PAM) de 80-100 mmHg (menor incidência de eventos cerebrovasculares do que objetivos de PAM mais baixos).
  • Realização de ecocardiograma transesofágico (EcoTE)/epiaórtico intraoperatório.
  • Utilização de filtros de linha arterial.
  • Utilização de oxigenação de membrana.

2. Estratégias específicas para substituição cirúrgica de valva aórtica:

  • a. Angiografia por tomografia, pré-operatório.
  • b. Esvaziar qualquer presença de ar intracardíaco através de cateter de sucção.

3. Estratégias específicas para endertarterectomia de carótida:

  • a. Bloqueio cervical (e não anestesia geral).
  • b. Angioplastia por balão retrógrado.
  • c. Colocação de stent em estenoses cervical ou de carótida comum.

4. Estratégias farmacológicas relacionadas aos procedimentos cirúrgicos:

  • a. Antagonistas da Vitamina K (RNI de alvo 2,5 – 3,5)
  • b. Ácido acetilsalicilico (Perioperativa ou em até 48h do procedimento).
  • c. Estatinas.
  • d. Aprotinina (estudos de menor tamanho sugerem benefício).

5. Estratégia para todas as intervenções:

  • a. Manipulação cautelosa do fio e do guia.

6. Estratégias para stent arterial de carótidas:

  • a. Limitar tempo de filtro.
  • b. Balões de oclusão distal.
  • c. Balões de oclusão proximal.

7. Estratégia para substituição da válvula aórtica transcateter:

  • a. Avanço cuidadoso de dispositivos maiores através do arco aórtico.
  • b. Limitar inflação desnecessária de balão ou pós-dilatação.
  • c. Limitar o tempo de manipulação em dispositivos no ânulo-aórtico.

8. Estratégias farmacológicas relacionadas aos procedimentos intervencionistas:

  • a. Ácido acetilsalicílico.
  • b. Clopidogrel.
  • c. Heparina periprocedimento (objetivo de tempo de coagulação ativada >300 segundos).

Pontos principais

● Procedimentos cardiovasculares diagnósticos ou terapêuticos podem gerar AVC hemorrágico ou isquêmico. A incidência geral de AVC clinicamente evidente durante ou após procedimentos cardíacos está abaixo de 1% na maioria dos estudos, mas pode ser maior em alguns procedimentos intervencionistas, particularmente com a valvuloplastia aórtica. AVC nestas condições está associada a uma morbidade alta e mortalidade igualmente.

● A maioria dos AVCs relacionadas ao cateterismo cardíaco ocorre nas primeiras 24 horas ou durante o procedimento. As manifestações frequentemente incluem distúrbios visuais, afasia, disartria, hemiparesia e alteração do estado mental.

● Aspectos importantes do manejo de qualquer paciente que sofre alterações neurológicas sugestivas de AVC incluem a estabilização de via aérea; respiração e circulação, a ativação de times de resposta ao AVC, imagem cerebral de emergência, determinação do tempo do ictus, e testes laboratoriais como glicemia e medidas para homeostase.

● O diagnóstico diferencial de AVC agudo inclui o acidente isquêmico transitório (AIT), crise epiléptica, crise migranosa, encefalopatia e outras condições metabólicas como a hipoglicemia. Em adição, considerar que no período periprocedimento pode haver uma cegueira cortical induzida pelo contraste.

● Para pacientes elegíveis com AVC isquêmico que possam ser tratados em até 4,5 horas do ictus, sugere-se a terapia trombolítica, seguida por trombectomia mecânica em pacientes selecionados com oclusão de grande vaso.

● Para pacientes elegíveis com AVC isquêmico causada por oclusão de grande artéria na circulação anterior proximal, recomenda-se tratamento com trombectomia mecânica intra-arterial utilizando um stent de segunda geração, iniciada em até 6 horas do início dos sintomas, recebendo o paciente ou não a terapia trombolíticos intravenosa.

● Para pacientes com AVC hemorrágico, o manejo urgente envolve reversão da anticoagulação, controle da pressão arterial sistêmica, e tratamento de hipertensão intracraniana.

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Referências:

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  • Meine TJ, Harrison JK. Should we cross the valve: the risk of retrograde catheterization of the left ventricle in patients with aortic stenosis. Am Heart J 2004; 148:41.

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