Cannabis e dor: da fisiopatologia aos ensaios clínicos

O potencial terapêutico e o resgate do uso milenar colocaram sob a luz das pesquisas científicas e medicinais a relação entre cannabis e dor.

O uso da Cannabis é conhecido há milhares de anos por meio de rituais religiosos, por curandeiros e até para a extração das fibras.

Além disso, o potencial terapêutico, importante aliado ao interesse científico contínuo, fez com que diversos estudos fossem realizados nos últimos anos, na tentativa e prerrogativa de novas descobertas terapêuticas do uso das substâncias derivadas da Cannabis 1.

Cannabis e dor: como funciona?

Estímulos neuronais e não neuronais da dor alteram o sistema endocanabinóide, modulando a condução de dor, mitigando a sensibilização e a inflamação por meio da ativação de receptores canabinóides (molecularmente semelhantes ao THC – tetrahidrocanabinol)2. O funcionamento de todas as interações bioquímicas e farmacológicas dos produtos a base da cannabis são dependentes do sistema endocanabinóide.

Neste caso, estamos falando de receptores e ligadores endógenos, que a partir da semelhança de moléculas (os fitocanabinóides, por exemplo) se ligam aos receptores endógenos e desencadeiam uma cascada de sinalização celular, com consequente ações distintas no organismo2.

Os receptores são conhecidos como CB1 e CB2, distribuídos amplamente nos tecidos, e os ligantes, anandamida (N-araquidonoil etanolamina) e o 2-araquidonoil glicerol (2AG), sendo os endocanabinoides mais estudados2.

Dessa forma, os receptores canabinóides, os endocanabinóides e as enzimas que catalisam a degradação e síntese, constituem o sistema endocanabinóide.

Ação dos receptores no combate da dor

Os receptores CB1 modulam a liberação de neurotransmissores no cérebro e na medula espinhal. Eles estão presentes em neurônios sensoriais nociceptivos e não nociceptivos do gânglio da raiz dorsal e do gânglio trigeminal, bem como em macrófagos, mastócitos e queratinócitos epidérmicos2-6.

Já os receptores CB2 são expressos em níveis consideráveis em células de origem hematopoiética. Poucos receptores CB2 são localizados no encéfalo, medula espinhal e gânglio da raiz dorsal, mas possuem ação sinérgica, aumentando a resposta a danos nos nervos periféricos.

Nesse mesmo mecanismo complexo de sinalização, os endocanabinoides anandamida e 2AG também estão relacionados às vias de COX (ciclooxigenases), sendo fatores determinantes no processo álgico/antiálgico7,8.

Resultado dos estudos sobre cannabis e dor

Os resultados de estudos que avaliam a farmacoterapia com Cannabis para dor demonstram os efeitos complexos da analgesia relacionada à planta.

São diversos ensaios clínicos randomizados e controlados que mostram a Cannabis como uma farmacoterapia com efeitos positivos para a dor9.

Em uma revisão sistemática e meta-análise de canabinóides para uso médico, publicado no periódico JAMA, com 79 estudos e abordando 6.462 pacientes, apresentou indicações da Cannabis medicinal para:

  • Náuseas e vômitos induzidos por quimioterapia;

  • Estímulo de apetite em pacientes com HIV/AIDS;

  • Espasticidade na esclerose múltipla ou paraplegia;

  • Depressão;

  • Transtornos ansiosos;

  • Desordens do sono;

  • Psicose;

  • Glaucoma; e

  • Síndrome de Tourette.

Quando analisado os desfechos relacionados a dor, 28 estudos com 2.454 pacientes foram incluídos na análise. Destaca-se que os ensaios clínicos tiveram diferentes meios do uso da Cannabis (em tinturas orais, spray para mucosa oral, via inalatória), sendo a maioria dos estudos controlado por placebo, sem outras intervenções ou uso de demais medicamentos na abordagem da dor.

A avaliação ainda incluía grupos heterogêneos de dor como a neuropática, dor relacionada ao câncer, dor de origem central, dor induzida por quimioterapia e dor relacionada a neuropatia no paciente com HIV.

Os resultados mostraram que, em comparação com placebo, os canabinóides foram associados a uma maior redução da dor (37% vs. 31%; OR 1,41, IC 95% 0,99 a 2,00) e maior redução média nas classificações numéricas de dor (-0,46, IC 95% -0,80 a 0,11)(10), com nível de evidências moderado para o uso de canabinóides no tratamento da dor crônica, principalmente dor neuropática.

Além disso, fora incluído a avaliação da qualidade de vida dos pacientes, sem diferença estatística após inventário EQ-5D (do inglês EuroQOL- 5 dimension).

Nessa metanálise em questão, o grupo intervenção apresentou maior número de efeitos colaterais a curto prazo, destacando-se os efeitos gastrointestinais (boca seca e diarreia) sonolência, fadiga, vertigem e sintomas de ansiedade e euforia.

Congruente ao resultado positivo obtido, em uma revisão da Cochrane incluindo 16 estudos com 1.750 participantes avaliou o uso da Cannabis medicinal para tratamento da dor.

O estudo comparou os produtos com THC/CBD por mucosa oral, produtos sintéticos, derivados de THC, sendo a maioria dos estudos comparado por placebo, sendo somente um estudo com uso de analgésico opioide como estratégia no controle da dor11.

O desfecho primário definia uma melhora de 50% ou mais no alívio da dor, onde os medicamentos à base de Cannabis puderam aumentar o alívio dos sintomas em relação ao grupo placebo (21% versus 17%).

Em segundo endpoint (alívio da dor de 30% ou mais em comparação com placebo), também notou melhora do controle álgico (39% versus 33%; RD 0,09 (IC 95% 0,03 a 0,15)11.

Com relação aos eventos adversos, os resultados foram semelhantes a meta-análise já citada, com maior prevalência de efeitos colaterais bem como abandono do estudo no grupo Cannabis em relação ao grupo placebo (10% no grupo cannabis e 5% no grupo placebo).

Porém, não houve evidências suficientes para determinar se os medicamentos à base de Cannabis aumentam a frequência de eventos adversos graves em comparação com placebo (RD 0,01 (IC 95% -0,01 a 0,03)11.

Vale reforçar que pelo perfil de biossegurança e efeitos colaterais na maioria dos casos autolimitados e leves, aliado aos resultados positivos no tratamento da dor, podem reforçar o tratamento desses pacientes com cannabis.

Aplicação na prática clínica

Em pacientes com proposta de tratamento e abordagem da dor, utiliza-se geralmente terapia CBD/THC ratio 1:1. Entretanto, alguns estudiosos e opiniões de experts também sugerem a tentativa da terapia com CBD isolado caso o paciente apresente contraindicações ao uso de THC (como em paciente agitados, com potencial de euforia)12.

Recomenda-se início com baixas dosagens, com titulação gradual conforme resposta terapêutica. A estratégia de step-up, com uma dosagem inicial geralmente baseada por peso/dia, com progressão a cada 3/5 dias pode ser uma maneira favorável, principalmente para pacientes com maior probabilidade de efeitos colaterais, mesmo esses sendo na grande maioria autolimitados e leves.

Em pacientes idosos ou frágeis, a titulação pode ser mais lenta, ao contrário de pacientes que já tenham consumido produtos à base de Cannabis anteriormente, os quais usualmente demanda dosagens maiores com progressões mais rápidas com o uso da medicação 13.

Autor:

Dr. Pedro AlvarengaGraduado em Medicina pelo Centro Universitário de Belo Horizonte (2017), concluiu residência em Medicina Interna (2020) pela Fundação Hospitalar do Estado de Minas Gerais (FHEMIG) e Especialização em Endocrinologia e Metabologia pela Santa Casa de Belo Horizonte (2022). Possui mestrado em Medicina Molecular (2019) pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Preceptor nos programas de residência médica do Complexo Hospitalar de Contagem e Complexo de Especialidades HAC/HJK da FHEMIG.

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