As doenças cardiovasculares (DCV) emergiram como as principais causas de morte no mundo durante o século XX, especialmente na segunda metade. Este fenômeno foi influenciado por vários fatores. Ao mesmo tempo em que se observou o avanço da medicina, a melhoria das condições de vida e a implementação de programas de saúde pública que reduziram significativamente a incidência e a mortalidade por doenças infecciosas, foi identificado também mudanças significativas no estilo de vida, como padrões alimentares, sedentarismo, aumento da prevalência do tabagismo e outros fatores de risco como hipertensão arterial e obesidade.
Nas décadas de 1990 e 2000, a pesquisa cardiovascular deu grande ênfase ao controle das doenças isquêmicas do coração, com particular atenção ao desenvolvimento de novos antitrombóticos. Também surgiam cada vez mais evidências do papel do tratamento anti-hipertensivo e da redução do LDL-colesterol na redução do risco cardiovascular. Mesmo com a adoção desses novos tratamentos, pacientes com doença cardiovascular estabelecida ainda apresentavam alta incidência de novos eventos adversos, como infarto do miocárdio e AVC. Reduzir o chamado risco residual passou a ser motivo de uma nova “cruzada” para milhares de pesquisadores.
Por outro lado, embora já soubéssemos que diabetes e obesidade eram importantes fatores de risco cardiovascular, ainda não dispúnhamos de ferramentas eficazes para gerenciar adequadamente essas condições. No caso do diabetes mellitus tipo 2, a meta era buscar o controle da glicemia para prevenir complicações microvasculares, como retinopatia, nefropatia e neuropatia, como demonstrado pelo estudo UKPDS. A obesidade, enquanto doença sistêmica multifatorial, também tinha arsenal terapêutico limitado, e os resultados em termos de perda de peso eram muito tímidos, ou difíceis de serem obtidos.
A noção de que o tratamento do diabetes e da obesidade poderia ter um impacto direto e significativo na redução dos eventos cardiovasculares só se tornou mais evidente com o desenvolvimento de novas terapias nos últimos anos. A introdução de medicamentos como os inibidores de SGLT2 e os agonistas do GLP-1, que oferecem benefícios além do controle glicêmico, como efeitos cardiovasculares e renais positivos, mudou o paradigma do tratamento do diabetes em relação à prevenção cardiovascular. Particularmente em relação a esses últimos, temos testemunhado uma verdadeira revolução no manejo de pacientes com sobrepeso e obesidade em termos de redução do risco cardiovascular.
Abre-se um novo horizonte na cardiologia: a era do Cardiometabolismo. O conceito de cardiometabolismo abrange a inter-relação entre as condições metabólicas, como diabetes e obesidade, e as doenças cardiovasculares. Tornou-se ainda mais evidente que essas condições não são apenas problemas metabólicos, mas também têm implicações significativas para a saúde cardiovascular. Além disso, muitas pesquisas têm mostrado que existem mecanismos patológicos comuns tanto às condições metabólicas quanto cardiovasculares. E isso tem favorecido o desenvolvimento de novos medicamentos que possam abordar simultaneamente ambos os aspectos de saúde. Abrem-se novas perspectivas de colaboração interdisciplinar, onde cardiologistas, endocrinologistas e outros especialistas estão cada vez mais próximos, partilhando objetivos cada vez mais comuns.
Assistimos recentemente a mais um importante capítulo desta nova era: o estudo SELECT. Apresentado durante o congresso da American Heart Association 2023, e publicado simultaneamente no New England Journal of Medicine, este estudo mostrou como um agonista do receptor da GLP1 pode mudar a história natural e reduzir o risco residual em pacientes com doença cardiovascular.
O estudo SELECT avaliou o impacto da semaglutida na redução do risco cardiovascular em pacientes com sobrepeso ou obesidade, mas sem diabetes. Trata-se de um ensaio clínico multicêntrico, duplo-cego, randomizado, controlado por placebo, que incluiu 17.604 indivíduos com idade ≥ 45 anos, que possuíam doença cardiovascular preexistente e índice de massa corporal (IMC) de ≥ 27 kg/m², sem histórico de diabetes. Os participantes foram randomizados para receberem semaglutida subcutânea semanal na dose alvo de 2,4 mg (n = 8,803), ou placebo (n = 8,801). O tempo médio de acompanhamento foi de 39,8 meses.
Durante um acompanhamento médio de 39,8 meses, a semaglutida mostrou-se superior ao placebo, reduzindo o risco de morte cardiovascular, infarto do miocárdio ou AVC em 20% (6,5% vs. 8,0%; HR 0,80, IC 95% 0,72-0,90, p < 0,001).
Quanto aos desfechos secundários, houve redução na mortalidade por todas as causas (4,3% vs. 5,2%; HR 0,81, IC 95% 0,71-0,93), mas não na mortalidade cardiovascular. A incidência do desfecho composto de insuficiência cardíaca (morte cardiovascular ou hospitalização por insuficiência cardíaca) diminuiu 18% (3,4% vs. 4,1%; HR 0,82, IC 95% 0,71-0,96).
Além disso, reforçando o aspecto cardiometabólico desse agonista do receptor da GLP-1, a semaglutida foi associada a reduções significativas no peso corporal, circunferência da cintura, níveis de colesterol e triglicerídeos, e melhora na pressão arterial.
Em suma, o campo emergente do Cardiometabolismo, ilustrado pelo estudo SELECT, representa um marco na cardiologia moderna, ao demonstrar que uma medicação de ampla ação metabólica como a semaglutida é capaz de reduzir o risco residual em pacientes com doença cardiovascular estabelecida e sobrepeso. Com a integração de conhecimentos em cardiologia e metabolismo, a abordagem terapêutica para doenças cardiovasculares está sendo redefinida. Assim, o Cardiometabolismo não é apenas uma nova área de pesquisa, mas um convite à colaboração entre diversas especialidades médicas para promover uma saúde cardiovascular mais eficaz e abrangente.