A Síndrome Inflamatória Multissistêmica relacionada à Covid-19 foi primeiro descrita em crianças (MIS-C) e recentemente estão descrevendo relatos de casos neonatais (MIS-N). Essa síndrome ocorre 4 a 5 semanas após a infecção por SARS-CoV2. A MIS-C predispõe a tromboembolismo inclusive pulmonar (TEP). Os casos neonatais com MIS-N apresentam principalmente manifestações cardiológicas, infiltrado pulmonar em “vidro fosco” e aumento de marcadores inflamatórios, ainda não tinham relatado caso neonatal suspeito de MIS-N com TEP. Em outubro de 2021, Bakhle e colaboradores publicaram um relato de caso neonatal indiano com suspeita de MIS-N (conforme os critérios propostos por Pawar e colaboradores em 2021, que descreveu 20 casos de MIS-N) e TEP. Neste artigo, vamos comentar os pontos principais desse relato de caso.
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Relato de caso
Neonato do sexo masculino nasceu com 37 semanas de cesárea. Sua mãe primípara teve quadro leve de Covid-19 na 29ª semana de gestação, fez isolamento em casa e uso de antipirético. Ao nascimento, a mãe teve PCR (reação de cadeia da polimerase) negativo para SARS-CoV2, não houve dosagem de anticorpos ou PCR para esse vírus no cordão umbilical.
Com 8 dias de vida, o neonato foi admitido com febre, letargia, desconforto respiratório, leucocitose (31.200/mm³ com 54% de neutrófilos), com proteína C reativa e procalcitonina elevadas, e infiltrado reticulonodular bilateral em 2/3 inferiores bilateralmente. Foram iniciados antibioticoterapia de amplo espectro e oxigenoterapia via cânula nasal. O PCR para SARS-CoV2 do neonato foi negativo assim como as culturas de sangue (2 amostras), urina e líquor foram negativas. O paciente manteve picos de febre, desconforto respiratório e dependência de oxigênio. Diante da história gestacional de Covid-19 e ausência de evidência atual de infecção, ampliaram a investigação com os seguintes exames obtendo os respectivos resultados no 12º dia de vida do neonato:
- Sorologia para COVID com IgM negativo e IgG positivo;
- Marcadores inflamatórios com leucocitose, proteína C reativa e procalcitonina elevadas;
- D-dímero elevado (4.894 ng/mL);
- Tomografia computadorizada de tórax com nodulações múltiplas agrupadas bilaterais pulmonares, de diferentes tamanhos e a maioria com cavitação sugerindo trombos (TEP) infectados.
Diante da suspeita de TEP com infecção secundária, procederam à tomografia computadorizada com contraste de corpo inteiro, que excluiu trombose de outros órgãos. Além dessa tomografia, dosaram beta-HCG e alfafetoproteína que tiveram valores normais para excluir neoplasia. A investigação para tuberculose pulmonar foi negativa.
O neonato em questão preencheu critérios de MIS-N propostos por Pawar e colaboradores em 2021 descritos na tabela 1 (idade, sorologia positiva para Covid-19, critério clínico, leucocitose, proteína C reativa e procalcitonina elevadas, e ausência de outro diagnóstico que justificasse seu quadro). Então, optaram por administrar Imunoglobulina endovenosa 1 g/kg/dia por 3 dias com desaparecimento da febre, desconforto respiratório e demais sintomas, e suspensão da suplementação de oxigênio. O paciente recebeu alta com aleitamento materno exclusivo. No seguimento dos primeiros 3 meses de vida, apresentou desenvolvimento e ganho ponderal normais.
Tabela 1 — Critérios de inclusão propostos por Pawar e colaboradores em 2021 para síndrome inflamatória multissistêmica neonatal (MIS-N) secundária à exposição ou infecção materna por SARSCoV-2 (esses critérios foram obtidos pela modificação dos critérios de MIS-C do Centre of Disease Control e ressalva da American Academy of Pediatrics que os neonatos podem não ter febre e a fonte de infecção primária ser a mãe ao invés da criança) |
(1) Momento da apresentação: neonatal (< 28 dias de vida) |
(2) Laboratório ou evidências epidemiológicas de infecção materna por SARS-CoV-2
· Teste de SARS-CoV-2 positivo por RT-PCR, sorologia (IgG ou IgM) ou antígeno durante a gravidez; · Sintomas consistentes com infecção por SARS CoV-2 durante a gravidez; · Exposição a Covid-19 com SARS CoV-2 confirmado infecção durante a gravidez; · Evidência sorológica (IgG positiva específica para SARS CoV-2, mas não IgM) no recém-nascido; |
(3) Critérios clínicos
· Doença grave que requer hospitalização; E · Dois ou mais sistemas orgânicos afetados [(cardíaco, renal, respiratório, hematológico, gastrointestinal, pele, neurológico, instabilidade de temperatura (febre ou hipotermia)]; OU · Anormalidades de condução AV cardíaca; OU · Dilatação coronária ou aneurismas (sem envolvimento de um segundo sistema orgânico). |
(4) Evidência laboratorial de inflamação
· Um ou mais de dos seguintes: proteína C reativa, velocidade de hemossedimentação (VHS), fibrinogênio, procalcitonina, dímero D, ferritina, LDH ou IL-6 elevados; neutrófilos elevados ou linfócitos reduzidos; albumina baixa. |
(5) Nenhum diagnóstico alternativo (como asfixia ao nascimento – pH do cordão ≤ 7,0 e índice de Apgar ≤ 3 em 5 min; cultura de sangue confirmada por sepse viral ou bacteriana; lúpus materno resultando em anormalidades de condução AV neonatal; presença desses achados indicando um o diagnóstico alternativo exclui MIS-N). |
Fonte: Pawar R, Gavade V, Patil N, Mali V, Girwalkar A, Tarkasband V, Loya S, Chavan A, Nanivadekar N, Shinde R, Patil U, Lakshminrusimha S. Neonatal Multisystem Inflammatory Syndrome (MIS-N) Associated with Prenatal Maternal SARS-CoV-2: A Case Series. Children (Basel). 2021 Jul 2;8(7):572. doi: 10.3390/children8070572. PMID: 34356552; PMCID: PMC8305422. |
Discussão e conclusão
Diversos relatos de MIS-N já foram descritos na literatura com neonatos com choque, arritmias, trombose, hipertensão pulmonar persistente, insuficiência respiratória, alterações neurológicas e hematológicas. Esse relato de caso diferencia-se por ter TEP como complicação. Não foi mencionado se o mesmo foi submetido à anticoagulação. O paciente teve ótima resposta à imunoglobulina e não evoluiu com sequelas a curto prazo.
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Ainda é necessário que os critérios diagnósticos de MIS-N desenvolvidos por Pawar e colaboradores a partir dos critérios de MIS-C sejam validados por grandes associações e sociedades científicas, ou outros critérios sejam elaborados. É fundamental que os neonatologistas fiquem atentos para a possibilidade de MIS-N em seus pacientes e mais conhecimento seja acumulado sobre essa síndrome para permitir que sejam elaboradas diretrizes terapêuticas .
Referências bibliográficas:
- Bakhle A, Sreekumar K, Baracho B, Sardessai S, Silveira MP. Cavitary lung lesions in a neonate: Potential manifestation of COVID-19 related multisystem inflammatory syndrome. Pediatr Pulmonol. 2021 Oct 29. doi: 10.1002/ppul.25732.
- Pawar R, Gavade V, Patil N, Mali V, Girwalkar A, Tarkasband V, Loya S, Chavan A, Nanivadekar N, Shinde R, Patil U, Lakshminrusimha S. Neonatal Multisystem Inflammatory Syndrome (MIS-N) Associated with Prenatal Maternal SARS-CoV-2: A Case Series. Children (Basel). 2021 Jul 2;8(7):572. doi: 10.3390/children8070572.