Casos de trombose e trombocitopenia em vacinas da Oxford/AztraZeneca preocupam?

Como parte do processo de farmacovigilância, é esperado que eventos adversos relacionados a vacinas sejam reportados. A maioria consiste em efeitos locais e sistêmicos leves, mas eventos mais raros e inesperados podem acontecer. Recentemente, casos de trombose e trombocitopenia associados à administração da vacina ChAdOx1 nCov-19 (Vaxzevria e Covishield), produzida pela AztraZeneca em parceria com …

Como parte do processo de farmacovigilância, é esperado que eventos adversos relacionados a vacinas sejam reportados. A maioria consiste em efeitos locais e sistêmicos leves, mas eventos mais raros e inesperados podem acontecer.

Recentemente, casos de trombose e trombocitopenia associados à administração da vacina ChAdOx1 nCov-19 (Vaxzevria e Covishield), produzida pela AztraZeneca em parceria com a Universidade de Oxford, chamaram a atenção mundial, levantando dúvidas sobre a segurança dessa opção de vacina.

Mas quais as características desses casos, quais seus reais riscos e qual seu manejo?

vacina contra Covid-19

Os casos iniciais

Duas séries de casos até o momento foram publicadas no The New England Journal of Medicine. A primeira descreve 5 casos de profissionais de saúde entre 32 e 54 anos que desenvolveram trombose em lugares atípicos e trombocitopenia diagnosticados de 7 a 10 dias após vacinação com a ChAdOx1 nCov-19. Destes, 4 tiveram hemorragia cerebral e 3 evoluíram para óbito. 

A segunda publicação descreve 11 pacientes com idades entre 22 e 49 anos, sendo 9 mulheres, com pelo menos um evento trombótico ou hemorrágico detectado entre 5 a 16 dias após vacinação. Entre os eventos trombóticos, 9 pacientes apresentaram trombose venosa cerebral, 3 apresentaram trombose de veia esplênica, 3 apresentaram TEP e 4, outros tipos de trombose. Na série, foram relatados 6 óbitos e 5 casos de coagulação intravascular disseminada.

Avaliação laboratorial

Em ambas as séries, todos os pacientes apresentaram valores elevados de D-dímero e plaquetopenia. Evidências de trombofilia foram raras, com 1 paciente apresentando doença de von Willebrand, anticorpos anticardiolipina e fator V de Leiden e 1 paciente apresentando anticorpos antifosfolipídeos detectáveis.

Valores de INR e PTTa foram normais, assim como os componentes do complemento, na primeira série descrita. Nenhum paciente apresentava sinais de hemólise e as sorologias para SARS-CoV-2 foram negativas, o que foi considerado como indicativo de que casos de Covid-19 prévio seriam improváveis.

Na segunda série de casos, alguns indivíduos apresentaram evidências de coagulação intravascular disseminada com uma combinação de D-dímero muito elevado e uma ou mais alterações nos valores de INR, PTT ou fibrinogênio.

Leia também: Anticoagulação na Covid-19: orientações da Sociedade Brasileira de Trombose e Hemostasia

Síndrome de trombose com trombocitopenia

A associação temporal desses casos à vacinação com ChAdOx1 nCov-19 levantou a possibilidade de evento adversos vacinal grave, levando à investigação por parte da Organização Mundial de Saúde. Após revisão, a OMS caracterizou esses eventos como componentes de um novo tipo de evento adverso: a síndrome de trombose com trombocitopenia (STT).

A definição de caso de STT ainda está em construção, mas o documento preliminar define os casos de trombose ou tromboembolismo confirmados, prováveis e possíveis.

 

Classificação Critérios
Trombose/tromboembolismo confirmado Exames de imagem com achados compatíveis com trombose/tromboembolismo (Doppler, TC com contraste ou angioTC, veno ou arteriografia por RM, ECO, cintilografia de ventilação/perfusão, angiografia convencional)

OU

Procedimento que confirme presença de trombo (ex.: trombectomia)

OU

Exame histopatológico consistente com trombose/tromboembolismo incluindo biópsia ou autópsia

Trombose/tromboembolismo provável Síndromes clínicas específicas: TVP, TEP, AVC ou IAM

OU

Sintomas clínicos inespecíficos: edema, dor, isquemia, ausência de pulsos, cefaleia

E

Presença de fatores de risco: história de imobilização, presença de cateter vascular, cirurgia ou trauma recentes, obesidade, trombose prévia, câncer, uso de contraceptivos orais, gestação, idade > 65 anos, história familiar de trombose, insuficiência cardíaca, doença inflamatória intestinal ou outra condição inflamatória


E

Exames de imagem sugestivos, mas sem evidências definitivas de trombose/tromboembolismo (Rx de tórax, ECO, TC sem contraste) OU D-dímero acima do valor superior da normalidade para a idade


E


Ausência de etiologia alternativa 

Trombose/tromboembolismo possível Síndromes clínicas específicas: TVP, TEP, AVC ou IAM

OU

Sintomas clínicos inespecíficos: edema, dor, isquemia, ausência de pulsos, cefaleia

E

Presença de fatores de risco: história de imobilização, presença de cateter vascular, cirurgia ou trauma recentes, obesidade, trombose prévia, câncer, uso de contraceptivos orais, gestação, idade > 65 anos, história familiar de trombose, insuficiência cardíaca, doença inflamatória intestinal ou outra condição inflamatória


E


Ausência de etiologia alternativa

 

Adaptado de Brighton Collaboration (WHO 2021)

Fisiopatologia

Os mecanismos responsáveis pela síndrome de trombose com trombocitopenia ainda não são totalmente conhecidos, mas o estudo dos casos iniciais ajuda a formular hipóteses.

A semelhança clínica com casos de trombocitopenia induzida por heparina (HIT) motivou a pesquisa de anticorpos anti-PF4 nos pacientes descritos. Em todos os casos, valores elevados de anticorpos IgG anti-PF4 foram detectados.

Além das duas séries de casos iniciais, um grupo britânico analisou o soro de 23 indivíduos com suspeita de STT, com os resultados publicados na NEJM. Semelhante às outras descrições, a presença de anticorpos anti-PF4 foi altamente prevalente (22/23 pacientes) e testes para trombofilia também foram negativos nessa população.

Nos últimos anos, outros fatores que não formulações de heparina foram identificados como capazes de deflagrar a formação de anticorpos anti-PF4 e induzir uma condição de trombocitopenia e estado de hipercoagulabilidade semelhante a HIT clássica. Drogas polianiônicas, infecções bacterianas e virais e cirurgias de joelho já foram associadas ao início dessa trombocitopenia induzida por heparina autoimune.

Diferente dos casos de HIT, pacientes com trombocitopenia induzida por heparina autoimune não apresentam exposição prévia a derivados de heparina e tendem a ter uma trombocitopenia intensa, incidência aumentada de coagulação intravascular disseminada e eventos trombóticos atípicos. Segundo os autores do estudo britânico, esses achados são mais semelhantes aos de pacientes com HIT quando reexpostos à heparina.

O mecanismo pelo qual a vacinação com a ChAdOx1 nCov-19 elicita a produção de anticorpos anti-PF4 ainda não é conhecido. Embora somente tenham sido descritos casos coma vacina ChAdOx1 nCov-19, a OMS reconhece que não é possível excluir que STT seja um evento adversos relacionado a vacinas que tenham adenovírus como vetor viral. Por esse motivo, outras vacinas com a mesma plataforma, como a vacina da Johnson & Johnson, também serão monitoradas para a ocorrência de eventos semelhantes.

O que muda na prática clínica?

Apesar de preocupante e potencialmente grave, a presença de STT foi identificada em muitos poucos casos considerando o tamanho da população vacinada até o momento. Dados do Reino Unido sugerem um risco aproximado de 4 casos a cada 1.000.000 de adultos vacinados (1 caso a cada 250.000). A taxa calculada para a União Europeia é de aproximadamente 1 a cada 100.000.

Os eventos adversos são classificados em muito raros, raros, incomuns, comuns e muito comuns de acordo com sua frequência estimada. Considerando os dados descritos até a presente data, STT pode ser considerada um evento muito raro. O risco de desenvolvimento de STT após vacinação contra SARS-CoV-2 não parece ser maior do que o risco geral na população. Portanto, nenhuma recomendação foi feita contra o uso dessas vacinas, embora a OMS sugira que os países realizem uma análise de risco-benefício, considerando a epidemiologia local (incluindo incidência e mortalidade de casos de Covid-19), faixa etária da população alvo e disponibilidade de outras opções de vacina.

Classificação de eventos adversos conforme frequência

Classificação Frequência
Muito raros  < 0,01%
Raros  ≥ 0,01% a < 0,1%
Incomuns  ≥ 0,1% a < 1%
Comuns  ≥ 1% a < 10%
Muito comuns  ≥ 10%

Não foram identificados fatores de risco para o desenvolvimento de STT de forma inequívoca. Análises iniciais sugerem risco maior em indivíduos jovens, mas os dados ainda precisam ser confirmados. Apesar de mais casos terem sido descritos em mulheres, a OMS chama a atenção para o fato de a maioria das pessoas vacinadas serem mulheres e que casos também foram descritos em homens. 

Para identificação da síndrome, os profissionais de saúde devem estar atentos para o desenvolvimento de sinais e sintomas sugestivos de trombose em locais específicos como abdômen e SNC, como cefaleia nova, intensa e persistente, dor abdominal intensa e dispneia, iniciados 4 a 20 dias após vacinação com vacina com adenovírus como vetor viral.

Diante de um caso suspeito, exames de imagem para investigação de trombose/tromboembolismo devem ser solicitados de acordo com o local suspeito. Hemograma para pesquisa de plaquetopenia, dosagem de D-dímero e exames de prova de coagulação também devem fazer parte da investigação. Quando disponível, a solicitação de anticorpos anti-PF4 pode auxiliar no diagnóstico.

Embora não haja tratamento totalmente estabelecido, recomenda-se o uso de imunoglobulina nos casos de STT. O uso de corticoide, como metilprednisolona e prednisolona, em dose imunossupressora (1mg/kg) também pode ser considerado como terapia adjuvante. Pela semelhança com casos de HIT, não se recomenda o uso de derivados de heparina, devendo-se dar preferência a outros tipos de anticoagulantes. De forma semelhante, a transfusão de plaquetas não está indicada.

Todos os casos suspeitos de STT devem ser notificados à sala de vacinação para devida investigação de evento adverso vacinal.

Mensagens práticas

  • STT é um novo tipo de evento adverso vacinal caracterizado pela presença de trombocitopenia e predisposição a eventos trombóticos. Até o momento, sua ocorrência só foi associada à administração da vacina ChAdOx1 nCov-19 (Oxford/AztraZeneca).
  • A ocorrência de STT é um evento muito raro, sendo menor do que a ocorrência de eventos trombóticos associada a outros fatores conhecidos, como uso de anticoncepcionais orais ou tabagismo. Não há recomendação de restrição ao uso dessa vacina pelo risco de STT até o momento, embora análise de risco-benefício deva ser feita.
  • Desenvolvimento de cefaleia, dor abdominal, dispneia ou outros sinais e sintomas que levem à suspeita de trombose/tromboembolismo no período de 4 a 20 dias após administração de dose da vacina deve ser considerado como alerta para a presença de STT.
  • Exames de imagem, hemograma, dosagem de D-dímero e exames de coagulação são exames complementares que fazem parte da investigação da síndrome.
  • Para o tratamento de STT, deve-se considerar o uso de Ig, corticoides e anticoagulantes não derivados de heparina.
  • Até maior conhecimento sobre a fisiopatogenia da síndrome, recomenda-se não transfundir plaquetas e evitar o uso de derivados de heparina como anticoagulantes.
  • Casos suspeitos de STT devem ser notificados para investigação e caracterização como evento adverso vacinal.

 

Referências bibliográficas:

 

Avaliar artigo

Dê sua nota para esse conteúdo

Selecione o motivo:
Errado
Incompleto
Desatualizado
Confuso
Outros

Sucesso!

Sua avaliação foi registrada com sucesso.

Avaliar artigo

Dê sua nota para esse conteúdo.

Você avaliou esse artigo

Sua avaliação foi registrada com sucesso.

Baixe o Whitebook Tenha o melhor suporte
na sua tomada de decisão.