CBMI 2020: Qual o fluido ideal para pacientes graves?

A polêmica sobre qual o fluido ideal para utilização em pacientes graves é antiga, no CBMI 2020 fez-se uma revisão dos principais estudos.

A polêmica ao redor de qual o fluido ideal para utilização em pacientes graves é antiga. Esse tema desafiador coube ao Dr. Luciano Azevedo, professor livre docente da USP, que fez uma revisão dos principais estudos do tema no XXV Congresso Brasileiro de Medicina Intensiva (CBMI 2020). A despeito do tema da mesa ser “Desafios Hemodinâmicos na COVID-19”, ele ressaltou que a fluidoterapia nestes pacientes segue a mesma evidência dos tempos pré-pandemia.

A história da utilização de fluidos para ressuscitação hemodinâmica se mistura com a história das principais guerras da humanidade. A primeira descrição do sistema circulatório data do ano de 1628, e o primeiro relato de um paciente com choque hemorrágico após ser atingido por projétil de arma de fogo foi descrito em 1731. Desde então, foram feitos esforços na tentativa de criar o melhor fluído para reposição volêmica, inicialmente em pacientes vítimas de trauma e cólera, e posteriormente extrapolado para pacientes sépticos.

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Durante a CBMI 2020 foi debatido qual seria o melhor fluido para pacientes graves

Soluções cristaloides e opções

A solução de Ringer foi criada em 1882 por Sydney Ringer para perfundir corações de sapos utilizados em seus estudos, adicionando cálcio, potássio e sódio em água destilada. Posteriormente essa solução foi modificada por Alexis Frank Hartmann em 1932, com adição de lactato de sódio, passando a se chamar Ringer lactato, ou solução de Hartmann. Em função das dificuldades logísticas da transfusão de hemoderivados a soldados feridos na Segunda Guerra Mundial, essas soluções ganharam destaque na ressuscitação de pacientes.

Com o tempo, diversas soluções, além dos cristaloides (soro fisiológico e ringer lactato), foram surgindo com o intuito de aumentar o tempo de permanência dos fluidos no espaço intravascular, como os amidos e coloides. Destes, os amidos foram eliminados da prática clínica após os estudos 6S e CHEST, ambos publicados no NEJM em 2012, demonstrarem aumento de mortalidade e necessidade de hemodiálise em pacientes que receberam esse fluido, em comparação com o grupo que utilizou cristaloides.

Os próximos a serem comparados aos cristaloides foram as soluções contendo albumina, os chamados coloides. Os estudos SAFE e ALBIOS avaliaram a utilização de Albumina 20% (em associação a cristaloides) ou 4% (em substituição aos cristaloides), respectivamente. No entanto, não houve diferenças em relação a mortalidade, disfunção orgânica, necessidade de diálise, dias de ventilação mecânica, ou tempo de permanência em UTI, entre os grupos. Como o custo das soluções coloides é superior ao custo dos cristaloides, seu uso ficou reservado apenas para situações especiais (ex: hepatopatias descompensadas).

Comparando soluções cristaloides

Por fim, chegou o momento dos cristaloides: soro fisiológico, ringer lactato, e cristaloides balanceados (Plasma-Lyte®️), serem comparados entre si. Antes de mais nada, é importante salientar a diferença de composição entre eles.

Figura 1: Comparação entre a composição dos diferentes tipos de cristalóides e o plasma humano (reproduzido de5: Kellum JA. Abnormal saline and the history of intravenous fluids. Nat Rev Nephrol. 2018 Jun;14(6):358-360. doi: 10.1038/s41581-018-0008-4. PMID: 29654298.)

A figura acima reforça que, a despeito do nome, o soro fisiológico (SF 0,9%) difere significativamente da composição do plasma, lhe rendendo o apelido de “soro não-fisiológico”. O excesso de cloreto presente no SF 0,9%, em comparação com os cristaloides balanceados (ringer lactato e plasma-lyte®️), causa mais acidose hiperclorêmica, além de supostamente acarretar disfunção renal por vasoconstrição arteriolar. A comparação entre o SF 0,9% e as soluções cristaloides balanceadas foi avaliada em dois grandes estudos de 2018, publicados no NEJM, chamados SMART e SALT-ED.

Estudos comparativos

O SMART foi conduzido em 15.802 pacientes, randomizados por cluster, em 5 UTIs de um hospital universitário americano. A intervenção foi a administração de SF 0,9% ou cristaloides balanceados (ringer lactato ou plasma-lyte®️), em um desenho com múltiplos crossovers, onde a cada mês o fluido administrado pela UTI envolvida era alternado entre estas duas intervenções.

O estudo SALT-ED foi unicêntrico, envolvendo 13.347 pacientes admitidos em uma unidade de emergência americana. Também utilizou um desenho com múltiplos crossovers, onde em determinado mês do ano, todos os paciente admitidos recebiam o mesmo fluido (SF 0,9% ou cristaloide balanceado), alternando o tipo do fluido no mês subsequente, e assim em diante.

O desfecho primário do SMART foi o desfecho composto “major adverse kidney events within 30 days” (MAKE30), que engloba morte, necessidade de diálise, ou disfunção renal persistente (aumento de creatinina acima de 2x o valor basal). A despeito de ser um desfecho composto, o que aumenta o poder do estudo para detectar diferenças, todos os resultados são eventos clinicamente significativos, relacionados ao paciente.

Saiba mais: Pancreatite: Ringer Lactato é superior ao soro fisiológico na hidratação

O desfecho primário do SALT-ED foi dias-livres de hospital, tendo como um dos desfechos secundários o mesmo MAKE30. Ambos estudos demonstraram redução significativa do MAKE30 (desfecho primário do SMART e secundário do SALT-ED) em pacientes que utilizaram cristaloides balanceados. Não houve diferença nos dias livres de hospital (desfecho primário do SALT-ED) ou dias livres de UTI (desfecho secundário do SMART). Também não houve diferença entre os grupos quando avaliados os componentes do MAKE30 individualmente (morte, diálise, ou disfunção renal persistente).

Conclusão

A despeito da redução absoluta de risco do MAKE30 ser aparentemente modesta (1%), isso representa a nível mundial uma redução anual de 2 milhões de eventos adversos renais5. Atualmente o preço do SF 0,9% e Ringer lactato são equivalentes. Assim, estes estudos reforçam a necessidade de favorecer o uso de ringer lactato como solução de escolha na UTI e Pronto Socorro, seja para ressuscitação volêmica, ou para diluição de antibióticos, sedação ou drogas vasoativas. O SF 0,9% fica então reservado para situações específicas, como pacientes com alcalose metabólica.

É importante salientar que as soluções balanceadas são as preferidas, mesmo nos pacientes com hipercalemia, ainda que possuam potássio em sua formulação. Isso porque a acidose hiperclorêmica provocada pelo SF 0,9% possui maior potencial de provocar hipercalemia do que o próprio potássio contido no ringer lactato, por exemplo.

Ainda na discussão entre SF 0,9% e cristaloides balanceados, continuamos aguardando a publicação de dois estudos, o brasileiro BASICS8 e o internacional PLUS9 (ANZICS). Ambos objetivam comparar o Plasma-Lyte 148®️ com SF 0,9%, para avaliar se a solução balanceada consegue reduzir a mortalidade em 90 dias, em comparação ao uso de soro fisiológico. Aguardamos as cenas dos próximos capítulos nessa história centenária.

To be continued….

Estamos acompanhando o CBMI 2020. Fique ligado!

Veja mais do evento:

Referências bibliográficas:

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