CBMI 2021: ventrículo direito — o ventrículo esquecido

O objetivo desse texto é discutir alguns aspectos sobre diagnóstico e tratamento da disfunção do ventrículo direito.

Diante de um paciente com choque, habitualmente raciocinamos em torno da fisiopatologia da falência de ventrículo esquerdo (VE). No entanto, deixamos de lado a interdependência dos ventrículos direito e esquerdo, que não só funcionam em série, mas também compartilham a mesma cavidade pericárdica.

O objetivo desse texto, com o apoio da apresentação do Congresso Brasileiro de Medicina Intensiva (CBMI 2021), é discutir alguns aspectos sobre diagnóstico e tratamento da disfunção do ventrículo direito, sem qualquer pretensão de exaurir o tema, em função de sua grande complexidade.

Leia também: Uma revisão sobre a displasia arritmogênica do ventrículo direito

CBMI 2021 ventrículo direito - o ventrículo esquecido

Funcionamento do ventrículo direito

O ventrículo direito (VD) funciona de forma substancialmente diferente do VE. A estrutura tridimensional do VE é relativamente simples, em forma de ogiva, e sua contração ocorre principalmente em dois sentidos, longitudinal (da base em direção ao ápice) e transversal (em direção ao centro da cavidade).

A morfologia do VD é mais complexa, apresentando formato de “meia-lua”, abraçando o VE. Assim, boa parte da fração de ejeção do VD ocorre graças a contração do VE. Além disso, a contração do VD ocorre de forma longitudinal e transversal, mas também em torsão. Isso torna extremamente mais complexa a tarefa de estimar sua função.

Figura 1 (retirado da referência 1): Reconstruções tridimensionais do VD ilustrando sua forma complexa em um sujeito normal (A). A remodelação do VD em situação de disfunção pode resultar em profunda alteração de sua forma, com dilatação do VD por sobrecarga crônica de volume ou pressão (B). A superfície vermelha representa o ventrículo esquerdo (VE), e a superfície azul o VD. Legendas: P – válvula pulmonar; T – válvula tricúspide; LV – ventrículo esquerdo; RV – ventrículo direito.

Causas de disfunção do Ventrículo Direito

A disfunção do VD pode ser crônica ou aguda. Pacientes com disfunção crônica de VD podem se apresentar com choque em função de descompensação do equilíbrio hemodinâmico frágil, com o qual convivem. Assim, essa diferenciação na prática é muito difícil, e nenhum parâmetro ecocardiográfico isoladamente consegue fazer a distinção. A determinação às vezes é feita apenas retrospectivamente, após reversão da causa de base.

A espessura de parede do VD, mesmo sob sobrecarga aguda, em até 48 horas começa a aumentar (normal: 3,3 ± 0,6 mm), de forma que não é um parâmetro confiável. No entanto, condições mais crônicas apresentam hipertrofia de maior monta (10-11 mm), com aparecimento de trabeculações. Em contrapartida, o cor pulmonale agudo em geral apresenta pressão sistólica de artéria pulmonar (PSAP) < 60 mmHg.

Podemos encontrar disfunção de VD aguda, ou crônica agudizada, em diversas situações, como:

  • Hipertensão pulmonar primária e secundária;
  • Sepse;
  • Tromboembolismo pulmonar;
  • Infarto de ventrículo direito;
  • Ventilação mecânica (principalmente se: PEEP elevado, hipóxia e hipercapnia);
  • Falência do ventrículo esquerdo;
  • Doenças do pericárdio.

Diagnóstico da disfunção de Ventrículo Direito com ecocardiograma

Tradicionalmente o diagnóstico de disfunção de ventrículo direito (VD) era feito de forma invasiva, através da análise do cateter de Swan-Ganz. No entanto, na prática atual esse diagnóstico é realizado através do ecocardiograma transtorácico (EcoTT), e o cateter de Swan-Ganz é reservado a situações específicas, em centros especializados.

Conforme citado anteriormente, a estrutura e a contração do VD são mais complexas que o VE, assim, não podemos confiar apenas em uma medida única, isolada, da função de VD. Idealmente devemos realizar mais de um método e analisar os resultados em conjunto, dentro do contexto clínico do paciente. Vamos descrever alguns, mas não todas, as possíveis formas de avaliar a função do VD.

Podemos avaliar a disfunção sistólica do VD, com uso do EcoTT, através dos seguintes métodos (note que alguns valores de corte variam conforme a referência):

  • Análise visual;
    • A avaliação da função de VD, assim como o VE, pode ser feita de forma qualitativa, visualmente, por operadores experientes, com boa correlação com medidas quantitativas formais;
  • TAPSE (excursão sistólica do plano anular da tricúspide);
    • Janela: Apical 4 câmaras;
    • Modo-M (aspecto lateral do anulo da tricúspide);
    • Normal: > 17,5 mm.
Figura 2 (retirada de coreultrasound.com): Janela apical 4 câmaras com aplicação do modo M no ânulo da valva tricúspide para obtenção do TAPSE.
  • S’ (velocidade tecidual de excursão sistólica);
    • Janela: Apical 4 câmaras;
    • Doppler tecidual (aspecto lateral do ânulo da valva tricúspide);
    • Normal: > 9,5 cm/s.
Figura 3 (retirada de coreultrasound.com): Janela apical 4 câmaras, com aplicação de doppler tecidual no ânulo da valva tricúspide para obter o S’.
  • FAC (fractional area change) < 35%;
    • Janela apical 4 câmaras;
    • Avaliamos a área da cavidade ao final da diástole e ao final da sístole, determinando a sua variação;
    • Apesar de parecer com o Simpson para determinar fração de ejeção do VE, aqui observamos apenas uma dimensão (área) em uma janela isolada, ao invés do volume. No Simpson utilizamos duas janelas ortogonais do VE (apical 4 câmaras e apical 2 câmaras);
  • Análise do fluxo da via de saída do ventrículo direito;
    • Corte paraesternal eixo curto (PSAX) a nível da válvula pulmonar;
    • Doppler pulsátil (PW): colocado imediatamente proximal ou distal a válvula pulmonar;
    • Nessa janela diversas medidas podem ser realizadas, conforme a seguir. Observe abaixo um padrão de fluxo normal:
Figura 4 (retirado da referência 2): Janela PSAX demonstrando fluxo normal no doppler pulsátil na via de saída do VD.

1. “Early systolic notching” (Sugere Disfunção aguda de VD)

  • Fluxo com incisura sugere disfunção aguda de VD, conforme a figura abaixo:
Figura 5 (retirada de coreultrasound.com): Janela paraesternal eixo curto (PSAX) a nível das valvas aórtica e pulmonar. Janela ajustada para visualização da via de saída do VD, com doppler pulsátil posicionado imediatamente proximal a válvula pulmonar. O fluxo apresenta uma incisura sugestiva de disfunção aguda de VD.

2. TAP (tempo de aceleração pulmonar) < 80 mseg

  • Tempo que demora do início ao pico da velocidade do fluxo, na via de saída do VD;
  • Tempos curtos sugerem sobrecarga aguda do VD.
Figura 6 (retirada de 5minsono.com): Na janela PSAX, com doppler pulsátil na via de saída do VD, observamos o tempo que leva do início ao pico de velocidade do fluxo.

3. Observações no uso dessa janela: A PSAX está sujeita a diversas limitações e variações interexaminador:

  • A qualidade da janela ruim atrapalha as medidas;
  • Dificuldade de alinhamento do jato com o doppler. O jato da via de saída não é uniforme e tende a ser mais rápido ao longo da borda interna da via de saída de VD (RVOT), em função de sua curvatura natural;
  • Na análise do contorno do espectro do doppler pulsátil (PW), devemos utilizar o limite externo do envelope;
  • Ajuste o sweep para medir adequadamente os curtos intervalos de tempo encontrados no PW.

A geometria complexa do VD impede a avaliação acurada dos volumes intracavitários. Assim, observamos a disfunção diastólica do VD avaliando o seu grau de dilatação em relação ao seu formato habitual, e em relação ao VE.

Podemos avaliar a disfunção diastólica do VD, com uso do EcoTT, através dos seguintes métodos:

  • Avaliação do formato do ápex de VD:
    • Dilatação com mudança do formato de meia-lua para um formato oval.
Figura 7 (arquivo pessoal): Corte apical 4 câmaras, demonstrando dilatação importante do VD, com mudança do apex para um formato arredondado.
  • Relação entre a área diastólica final do VD e do VE;
    • Janela apical 4 câmaras ou subcostal 4 câmaras;
    • Avaliamos da relação entre a área diastólica final do VD (RVEDA) e VE (LVEDA):

Figura 8 (arquivo pessoal): Janela apical 4 câmaras demonstrando relação VD/VE > 1 (dilatação grave)

Tratamento da disfunção de VD

Não existem grandes trabalhos envolvendo o impacto de diferentes terapias em pacientes com disfunção aguda de ventrículo direito. Assim, grande parte do manejo clínico é baseado no racional fisiopatológico ou em estudos pequenos. A busca do diagnóstico de base envolvido na disfunção do VD é fundamental. Todas as demais terapias que discutiremos envolvem: evitar a piora da disfunção e suporte hemodinâmico até correção da causa de base.

Algumas prioridades na sua abordagem são:

● Correção agressiva de Hipoxemia, Acidose, e Hipercapnia

Esses três fatores aumentam de forma independente e sinérgica a resistência vascular pulmonar. Assim, a sua correção alivia a pós-carga do ventrículo direito.

● Promover balanço hídrico negativo

A curva de Frank Starling do VD é diferente da que conhecemos para o VE, de forma que ele atinge débito máximo com pressões de enchimento menores. Além disso, a dilatação das câmaras direitas, sob sobrecarga de volume, comprime o VE, restringindo seu enchimento diastólico, e consequentemente seu volume sistólico e débito cardíaco. Apesar das dificuldades na predição da volemia do paciente, a promoção de balanço hídrico negativo, se possível, ajuda a manter as pressões de enchimento do VD menores. Assim mantemos um bom débito de VD, sem comprometer o enchimento diastólico do VE.

● Drogas vasoativas (5)

A droga vasoativa ideal para pacientes com disfunção de ventrículo direito deveria: ter ação inotrópica; aumentar a pressão arterial sistêmica média (PAM), fundamental para a perfusão do VD; reduzir a resistência vascular pulmonar (RVP). A noradrenalina (em doses < 0,5 mcg/kg/min) e a vasopressina (em doses < 0,03 UI/min) são capazes de aumentar a PAM sem aumento da RVP. A noradrenalina também possui efeito inotrópico positivo.

Saiba mais: CHEST 2021: como escolher a melhor PEEP na beira leito?

A dobutamina apresenta ação inotrópica positiva, e promove vasodilatação sistêmica via receptor β2, no entanto, aumenta RVP em doses acima de 10 mcg/kg/min. A milrinona possui efeito de aumento do inotropismo, associado à vasodilatação sistêmica e pulmonar. Deve ser dada atenção, durante seu uso efeito, para evitar hipotensão sistêmica excessiva. Isso porque a perfusão coronariana do VD ocorre na sístole e diástole, de forma que esta câmara é particularmente sensível a situações de hipotensão. Qualquer uma dessas drogas pode ser usada, pesando seus riscos e benefícios.

Figura 9 (retirada da referência 5): Drogas vasoativas usadas na disfunção aguda de VD e seus efeitos hemodinâmicos. Legendas: α1, β1 e β2: receptores adrenérgicos; D: receptor dopaminérgico; V1: receptor de vasopressina; AVP: arginina vasopressina; IC: índice cardíaco; PVR: resistência vascular pulmonar; SVR: resistência vascular sistêmica; HR: frequência cardíaca. Efeitos: + afinidade baixa a moderada; ++ afinidade moderada-alta; – efeito neutro.

● Titulação da PEEP

Uma PEEP excessivamente elevada comprime os capilares intraalveolares, aumentando a resistência vascular pulmonar. Da mesma forma, uma PEEP excessivamente baixa induz atelectasia, com compressão com capilares pulmonares extra alveolares (intersticiais). A resposta da resistência vascular pulmonar depende do equilíbrio entre estes dois processos. Apesar da dificuldade em estimar a resistência vascular pulmonar à beira leito, podemos testar diferentes valores de PEEP, avaliando seu impacto na hemodinâmica do paciente.

● Posição Prona (3)

Além de sua indicação formal em pacientes com síndrome do desconforto respiratório agudo e PaO2/FiO2 ≤ 150, a posição prona pode ser realizada em pacientes refratários às medidas anteriores. Sua realização está associada a riscos importantes em pacientes com instabilidade hemodinâmica, assim, só deve ser tentado em casos selecionados, em centros com experiência.

● Óxido nítrico (NO) inalatório (4)

O NO age promovendo vasodilatação. A ideia do seu uso inalatório é atingir apenas vasos em contato com alvéolos bem ventilados, de modo a otimizar a relação ventilação/perfusão. Seu uso também é capaz de reduzir a resistência vascular pulmonar, reduzindo a pós carga do VD. No entanto, apenas metade dos pacientes nessa situação respondem à terapia, mesmo com doses até 40 ppm.

● Suporte mecânico (Figura 10)

O paciente com disfunção de VD refratária as demais medidas deve ser transferido para um centro de referência para avaliação de suporte extracorpóreo. Paciente candidatos a essa medida as utilizam como ponte até melhora da causa de base (ex: miocardite viral) ou ponte para transplante cardíaco.

Figura 10 (retirada da referência 1): Opções de suporte circulatório mecânico para disfunção aguda do ventrículo direito (VD). Legendas: LA – átrio esquerdo; LE – ventrículo esquerdo; PA – artéria pulmonar; RA – átrio direito; RVAD – dispositivo de assistência ventricular direita; VA- ECMO – oxigenação por membrana extracorpórea veno-arterial.

Mensagem Final

A compreensão das particularidades da falência do ventrículo direito (VD) é fundamental no manejo desses pacientes. Todo paciente com choque deve ser avaliado com EcoTT para avaliação desse diagnóstico diferencial. O tratamento inicial se baseia em correção de hipoxemia, hipercapnia, e acidose, além de manutenção de um balanço hídrico negativo. O uso de drogas vasoativas pode ser necessário como suporte hemodinâmico até o tratamento definitivo da causa de base. Algumas opções como posição prona, óxido nítrico inalatório, e dispositivos de suporte mecânico podem ser utilizados em centros de referência.

Veja mais do CBMI 2021:

Referências bibliográficas:

  1. Konstam MA, Kiernan MS, Bernstein D, Bozkurt B, Jacob M, Kapur NK, Kociol RD, Lewis EF, Mehra MR, Pagani FD, Raval AN, Ward C; American Heart Association Council on Clinical Cardiology; Council on Cardiovascular Disease in the Young; and Council on Cardiovascular Surgery and Anesthesia. Evaluation and Management of Right-Sided Heart Failure: A Scientific Statement From the American Heart Association. Circulation. 2018 May 15;137(20):e578-e622. doi: 10.1161/CIR.0000000000000560.
  2. Mohlkert LA, Right Heart Structure, Geometry and Function Assessed by Echocardiography in 6-Year-Old Children Born Extremely Preterm-A Population-Based Cohort Study. J Clin Med. 2020 Dec 31;10(1):122. doi: 10.3390/jcm10010122.
  3. Vieillard-Baron A, Charron C, Caille V, Belliard G, Page B, Jardin F. Prone positioning unloads the right ventricle in severe ARDS. Chest. 2007 Nov;132(5):1440-6. doi: 10.1378/chest.07-1013.
  4. Bhorade S, Christenson J, O’connor M, Lavoie A, Pohlman A, Hall JB. Response to inhaled nitric oxide in patients with acute right heart syndrome. Am J Respir Crit Care Med. 1999 Feb;159(2):571-9. doi: 10.1164/ajrccm.159.2.9804127.
  5. Grignola JC, Domingo E. Acute Right Ventricular Dysfunction in Intensive Care Unit. Biomed Res Int. 2017;2017:8217105. doi: 10.1155/2017/8217105.

Avaliar artigo

Dê sua nota para esse conteúdo

Selecione o motivo:
Errado
Incompleto
Desatualizado
Confuso
Outros

Sucesso!

Sua avaliação foi registrada com sucesso.

Avaliar artigo

Dê sua nota para esse conteúdo.

Você avaliou esse artigo

Sua avaliação foi registrada com sucesso.

Baixe o Whitebook Tenha o melhor suporte
na sua tomada de decisão.

Especialidades