Cetoacidose diabética (CAD) na pandemia: Covid-19 ou mudanças no estilo de vida?

Seria o aumento da incidência de quadros clínicos de cetoacidose diabética (CAD) em crianças devido a pandemia de Covid-19?

A Covid-19 foi e está sendo causadora de uma pandemia sem precedentes, levando diversas pessoas ao desenvolvimento de síndrome respiratória aguda grave (SRAG), complicações pós-infecciosas e óbito. Em 30 de janeiro de 2020, essa doença foi decretada como uma emergência de Saúde Pública pela Organização Mundial de Saúde (OMS). Dentro desse contexto mundial, pediatras puderam perceber que a frequência de crianças e adolescentes que chegavam na emergência e recebiam o diagnóstico de cetoacidose diabética (CAD) foi elevada. No entanto, sob o prisma da pandemia, a carência de estudos estatísticos significativos torna essa afirmação limitada a suposições e especulações. Seria real o aumento da incidência desse quadro clínico de CAD devido a Covid-19?

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Cetoacidose diabética (CAD) na pandemia: Covid-19 ou mudanças no estilo de vida?

Cetoacidose diabética (CAD)

A CAD é conhecida como um conjunto de alterações clínico-laboratoriais decorrente da ação insulínica insuficiente e aumento da produção de hormônios contrarreguladores à insulina em resposta a alguma situação de estresse, sendo caracterizada por ser a descompensação aguda mais grave de diabetes mellitus (DM) em crianças e adolescentes portadores dessa comorbidade.

Nesse contexto pandêmico, um estudo publicado na revista “Diabetes, Metabolics Syndrome, Obesity: Targets and Therapy” teve como objetivo analisar e comparar as características clínicas, laboratoriais e a gravidade da CAD em crianças antes e após o surto de Covid-19, com o intuito de identificar os efeitos indiretos na incidência de CAD entre esses dois períodos distintos.

Metodologia do estudo

A pesquisa utilizou uma amostra de 19 crianças entre 0 e 18 anos de idade com CAD que foram atendidas na emergência de dois hospitais universitários na província de Jeonbuk, Coreia, durante os primeiros seis meses dos anos de 2017 a 2020. Os dados coletados abrangeram informações como idade, altura, peso, sintomas clínicos, tipos de DM e achados laboratoriais.

A gravidade da CAD foi baseada na presença de lesão renal aguda, acidente vascular cerebral e nível de consciência alterado. Já os critérios utilizados para o diagnóstico de CAD nesses serviços de emergência foram os seguintes: glicemia maior ou igual a 200 mg/dL; nível de bicarbonato menor ou igual a 15 mmol/L e/ou pH venoso menor ou igual a 7,30 e cetonúria significativa por meio de teste reagente de urina. No que diz respeito ao tipo de DM desenvolvido pelos pacientes, a classificação foi feita de acordo com a dosagem sérica do peptídeo C no momento do atendimento na emergência.

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O presente estudo, sendo caracterizado como retrospectivo, utilizou como método a análise dos prontuários desses pacientes pediátricos com diagnóstico de hiperglicemia ou CAD no pronto-socorro. Sendo assim, as características clínicas, laboratoriais e as taxas de complicações foram comparadas entre os anos de admissão (2017 a 2020).

A amostra do estudo foi composta por 6 pacientes do sexo masculino (31,6%) e 13 do sexo feminino (68,4%) com altura média de 147,32 ± 20,05 cm e peso médio de 45,35 ± 18,73 kg.

Achados

Analisando os dados clínicos dos pacientes, foi observado que, durante o período de pandemia de Covid-19, a maioria deles apresentou três sintomas principais de DM: polidipsia, poliúria e perda de peso, respectivamente nas taxas de 100%, 100% e 85,7%. Além disso, a taxa de poliúria foi significativamente maior no período em vigência da Covid-19 em relação à época pré-pandemia (p < 0,033). No entanto, as taxas de náuseas, vômitos e alteração do estado mental não diferiram entre os anos de internação. Sintomas como a sonolência foram identificados em cinco pacientes. Torpor foi observado em um indivíduo. Os demais participantes estavam conscientes e nenhum deles encontrava-se em coma durante a admissão. Em relação ao diagnóstico de DM, quatro tinham diagnóstico prévio e 15 foram diagnosticados na internação.

Além disso, os pesquisadores observaram que não existiram diferenças nas características antropométricas e nas taxas de complicações quando comparados os períodos antes e durante a pandemia de Covid-19. No entanto, a frequência de polidipsia foi maior no período da Covid-19, com significância estatística, de forma que todos os sete pacientes admitidos durante a pandemia (100%) apresentavam esse sintoma e foram diagnosticados com DM.

Já em relação aos dados laboratoriais, o nível médio do peptídeo C foi de 0,29 em 2018, sendo inferior ao valor normal de 0,5, mas sem significância estatística. Os níveis médios de glicose sérica e hemoglobina glicada de 778,0 ± 455,02 mg/dL e 13,5% ± 0,84%, respectivamente, foram os mais altos em 2017, sem diferença significativa entre os anos de admissão (p > 0,05). A acidose mais grave ocorreu em 2018, tendo como parâmetro o pH arterial médio mais alto de 7,09 ± 0,1 e o nível médio de bicarbonato mais baixo de 4,72 ± 2,17 mEq/L. Entretanto, o hiato aniônico foi maior em 2017 (34,5 ± 14,69), seguido por 2018 (31,28 ± 10,42). O valor médio de cetonas na urina estava acima de +3 em todos os anos e os níveis médios de creatinina, taxa de filtração glomeular e sódio corrigido não mostraram diferenças significativas entre os 4 anos analisados pelo estudo.

No que concerne as complicações, o referente estudo comparou as taxas de complicações específicas em 2020 com as de outros anos de admissão com o objetivo de avaliar as mudanças nesses valores durante a pandemia de Covid-19. Os valores de insuficiência renal aguda foram de 33,3% e 57% nos períodos pré-Covid-19 e Covid-19, respectivamente. Edema cerebral e infarto cerebral, considerados as complicações mais graves da CAD, ocorreram em apenas um paciente em 2020. Todos os seis (50%) pacientes que exibiam estado mental alterado antes da pandemia de Covid-19 estavam sonolentos e todos retomaram o nível basal de consciência após o tratamento. Não houve mortes durante o período de estudo de quatro anos.

Embora o número de pacientes pediátricos internados no pronto-socorro tenha diminuído devido a pandemia (em mais de 50% de 2019 para 2020), o número de crianças e adolescentes com CAD nesses dois hospitais universitários em Jeonbuk apresentou uma elevação maior que o dobro da taxa média esperada para o período de quatro anos na região do estudo. Somado a isso, a incidência de CAD na população estudada excedeu a média esperada, a despeito de uma redução populacional constante, de 2017 a 2020, no local.

Conclusão

O estudo em questão tem algumas limitações, como, por exemplo, uma amostra total insuficiente (n=19), com um número de participantes em cada ano muito pequeno, variando de 3 a 7, consequentemente proporcionando maiores desvios-padrão. Outrossim, devemos estar atentos ao extrapolar seus resultados para nossa prática médica e realidade, já que não é um estudo reprodutível na população brasileira devido a disparidade sociocultural entre os países Brasil e Coreia. A despeito deste fato, o artigo traz à tona questões de extrema importância e suscita discussões e reflexões ao redor do tema CAD e Covid-19. O referido estudo traz também uma questão importante sobre sua amostragem escolhida, pelo fato de todos os pacientes pediátricos incluídos na pesquisa não terem sido testados para o SARS-CoV-2, ou seja, a presença de infecção pelo novo coronavírus não foi um dado avaliado pelo estudo. Sendo assim, a hipótese levantada seria o aumento de casos de CAD graças a mudanças de estilo de vida das crianças e adolescentes. Ao mesmo tempo, outros trabalhos, como um estudo realizado em Daegu, na Coreia, em abril de 2020, relatou dois casos de crise hiperglicêmica aguda após infecção pela Covid-19 em pacientes com DM preexistente, o que iria de encontro a outra explicação para o aumento de casos de CAD durante a pandemia.

A grande questão paira sobre o fato de descobrir se o aumento de casos de CAD em crianças e adolescentes durante a pandemia de Covid-19 está diretamente associado à infecção pelo novo coronavírus ou às mudanças no estilo de vida. Sabe-se, como fundamento teórico, que o SARS-CoV-2 pode se ligar aos receptores da enzima conversora de angiotensina 2 (ECA2) nas células beta-pancreáticas, levando a alterações pleiotrópicas no metabolismo da glicose, o que explicaria a fisiopatologia e a relação da descompensação diabética devido a ação direta do vírus nas células humanas. Já mudanças no estilo de vida, como restrição de atividades físicas, aulas online e alterações na dieta, podem acabar contribuindo para o aumento de glicemia e evoluindo, consequentemente, para complicações como a CAD.

Em suma, deduzimos que não está claro se a Covid-19 está relacionada diretamente ao desenvolvimento de CAD ou se existem outros vieses que justifiquem o aumento de casos dessa complicação durante a pandemia atual. Entretanto, é imprescindível ficar atento para o diagnóstico precoce de DM na população pediátrica, em especial nessa época, a fim de evitar quadros de descompensação (como a CAD) e orientar aqueles com diagnóstico prévio de DM sobre a importância da adesão ao tratamento.

Autores:

Texto produzido por Mariana Silva de Morais (discente de Medicina na Faculdade Souza Marques), com supervisão de:

Referências bibliográficas:

  • Han MJ, Heo JH. Increased Incidence of Pediatric Diabetic Ketoacidosis After COVID- 19: A Two-Center Retrospective Study in Korea. Diabetes Metab Syndr Obes. 2021;14:783- 790. doi: 10.2147/DMSO.S294458

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