Cirrose na emergência: como manejar as principais complicações (parte 4)

Neste último artigo da série, abordaremos disfunção renal e síndrome hepatorrenal, que são complicações relativamente comuns em pacientes com cirrose.

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Nos artigos anteriores, discutimos hemorragia digestiva alta varicosa, peritonite bacteriana espontânea e encefalopatia hepática. Neste último artigo da série, abordaremos disfunção renal e síndrome hepatorrenal, que são complicações relativamente comuns em pacientes com cirrose, e  são temas que geram muitas dúvidas entre médicos e estudantes de medicina.

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Disfunção Renal na cirrose

Disfunção renal (acute kidney injury – AKI) é uma piora da função renal traduzida por elevação da creatinina sérica (Cr) em ≥0,3 mg/dL em ≤48h ou, na ausência de dosagem com menos de 48h, aumento de 50% da Cr basal do paciente que se saiba ou presuma tenha ocorrido nos últimos sete dias.

* Creatinina basal: Cr estável dos últimos 3 meses ou a mais próxima à admissão se ≥3 meses.

Como se classifica

  • AKI 1: ≥0,3 mg/dL em ≤48h ou ≥1,5 — 2,0x da Cr basal
  • AKI 2: ≥2,1 — 3,0 x da Cr basal
  • AKI 3: ≥3,1 x da Cr basal ou Cr ≥4,0 mg/dL com elevação de ≥0,3 mg/dL ou início de diálise

Importante: note que o débito urinário não é utilizado como critério para AKI na cirrose. Embora seja um dado extremamente importante na história e no acompanhamento, frequentemente esses pacientes já são oligúricos com altíssima avidez pelo sódio pela vasodilatação esplâncnica que possuem e a estratégia terapêutica não deve se modificar para buscar um valor específico de diurese – maior risco de iatrogenia por overtreatment.

Qual a causa

A maior parte (80%) dos episódios de AKI na cirrose é funcional (pré-renal e síndrome hepatorrenal) relacionada às alterações hemodinâmicas da cirrose avançada. Entre as causas estruturais figuram necrose tubular aguda (NTA), nefropatia induzida por contraste e glomerulonefrite.

Leia mais: Amamentação está associada com redução de doença hepática gordurosa?

A cirrose avançada provoca um estado de vasodilatação progressiva e redução do volume arterial efetivo, que torna esses pacientes sensíveis a situações que podem agravar a hipovolemia relativa à qual estão submetidos, como o uso de diuréticos e excesso de lactulose (diarreia), e a situações que possam piorar o estado de vasodilatação, como infecção bacteriana, principalmente PBE.

Manifestações

Geralmente oligossintomática, redução da diurese, piora do edema periférico e da ascite são as manifestações mais comuns. Pode vir acompanhada de outra descompensação da cirrose (HDA, PBE) e pode, eventualmente, manifestar-se com síndrome urêmica.

Como manejar:

  1. Suspender drogas nefrotóxicas e/ou que podem agravar hipovolemia ou diminuir fluxo sanguíneo renal, como diuréticos, AINEs, lactulose (se diarreia). Os betabloqueadores são um ponto controverso devido à importância da manutenção: em geral opta-se pela suspensão se o paciente estiver hipotenso. Evitar contraste nesse momento. Considerar a realização de EDA se piora dos níveis hematimétricos ou história sugestiva de hemorragia digestiva;
  2. Expansão volêmica com albumina 1g/kg/dia durante 2 dias (máximo 100g/dia), se AKI 2 ou 3;
  3. Investigar e causar causas possíveis de descompensação: paracentese diagnóstica (evitar nesse momento retirar muito volume para não agravar a situação), rastreio infeccioso, EAS, spot urinário e USG renal para investigar causas estruturais. Atenção ao valor de bilirrubina, porque >20mg/dL pode causar nefrose colêmica (bile cast nephropathy). Considerar NTA se presença de choque;

Qual a resposta esperada: considera-se resposta adequada quando o paciente retorna para Cr até 0,3mg/dL da basal.

Síndrome Hepatorrenal (SHR)

O que é: distúrbio renal funcional secundário à cirrose e à hipertensão porta grave, na ausência de outros fatores de lesão renal identificáveis. É potencialmente reversível. É classificada em dois tipos:

  • Tipo 1 – rapidamente progressiva, pior prognóstico, manifesta-se com oligoanúria progressiva
  • Tipo 2 – insidiosa, evolui em meses, manifesta-se com ascite refratária/intratável. Atualmente é vista por alguns especialistas como uma disfunção renal funcional crônica, por isso também tem sido denominada non-AKI-SHR, por preencher os critérios de SHR, mas não o de AKI.

O que predispõe: ascite é condição sine qua non para desenvolvimento da SHR; outras condições predisponentes são infecções bacterianas, principalmente a PBE, hepatite alcoólica grave e paracentese de grande volume sem expansão plasmática adequada.

Diagnóstico

A SHR é um diagnóstico de exclusão e que só pode ser realizado após 48h da admissão do paciente, pois requer um teste de expansão volêmica com albumina.

Os critérios diagnósticos são:

  • Cirrose com ascite
  • AKI 2 ou 3
  • Ausência de resposta após 48h de suspensão de diuréticos e expansão plasmática com albumina (1g/kg/dia, até o máximo de 100g/dia) – retorno para Cr até 0,3mg/dL da basal
  • Ausência de choque
  • Ausência de doença parenquimatosa renal: proteinúria >500mg/24h, hematúria >50 hemácias/campo e/ou alterações renais à ultrassonografia
  • Ausência de tratamento atual ou recente com drogas nefrotóxicas
    Manejo: as medidas gerais já foram discutidas na parte de disfunção renal. Essa seção será restrita a discutir tratamento farmacológico, TIPS, terapia de substituição renal e indicação de transplantes.
  • Drogas vasoativas + albumina: já foram 48h de albumina 1g/kg/dia; quando se faz o diagnóstico de SHR, a albumina deve ser reduzida para 20 a 40g/dia (independentemente do peso) e associada uma droga vasoativa (terlipressina, noradrenalina ou octreotide + midodrina).
    -Terlipressina (1ª escolha): 0,5 – 1mg a cada 4 – 6h, podendo subir até 2mg a cada 4 – 6h caso a redução da Cr <25% após 2 dias. Outra opção interessante e recém publicada no guideline de cirrose descompensada é fazer a infusão contínua de 2mg/dia. Dessa forma, a redução na pressão portal se mantém mais constante, e por reduzir a dose diária de terlipressina são reduzidos os efeitos colaterais. A diluição fica: Terlipressina 1mL + SF0,9% 99mL IV em bomba infusora a 8,3ml/h. Importante: essa solução só tem estabilidade para 12h, de modo que deve ser trocada a cada 12h. Terlipressina pode ser infundida em acesso periférico.
    -Noradrenalina: não há dose definida, sendo que o alvo é aumentar a pressão arterial média em 10 a 15mmHg (o estudo que aprovou usou de 0,5 a 3 mg/h).
    -Octreotide + Midodrina: resultado inferior aos anteriores, só deve ser considerado como opção se os terlipressina e noradrenalina indisponíveis.
    O tratamento deve ser mantido até a resposta completa, ou seja, retorno da Cr até 0,3mg/dL da basal ou até 14 dias, se resposta incompleta.
  • TIPS: o TIPS pode melhorar a função renal, entretanto, pacientes com SHR tipo 1 frequentemente possuem contraindicação ao procedimento devido à função hepática já muito deteriorada, com encefalopatia hepática. Os pacientes com SHR tipo 2 e ascite refratária são bons candidatos ao TIPS se não possuirem EH, com melhora da função renal após o procedimento.
  • Terapia de substituição renal: deve ser considerada nos pacientes com SHR não respondedores aos vasoconstritores, como ponte para o transplante hepático (TxH), sendo as mesmas indicações de diálise (HD) que para outras causas de insuficiência renal. Nos pacientes que não são candidatos ao transplante a decisão de iniciar a HD deve ser individualizada para evitar tratamento fútil e distanásia.
  • Transplante hepático e transplante duplo fígado-rim: o transplante hepático é o tratamento definitivo para a SHR, inclusive sendo a Cr um dos parâmetros de bastante peso no cálculo do MELD, maior ainda se diálise 2x/semana, o que sobe bastante a posição no ranking da fila do TxH. Entretanto, alguns pacientes podem permanecer ainda algum tempo com elevação da Cr pós-cirúrgica e até mesmo necessitar de HD no pós TxH. O transplante duplo fígado-rim pode ser considerado nos pacientes com cirrose e doença renal crônica avançada ou nos pacientes com SHR que permaneceram em HD por ≥4 semanas.

Profilaxia

Como a principal causa de SHR é a peritonite bacteriana espontânea, a profilaxia está muito relacionada a ela.

  • Durante episódio de PBE: albumina 1,5 g/kg no 1º dia e 1 g/kg no 3º dia.
  • Após 1º episódio de PBE: norfloxacino 400 mg/dia como profilaxia secundária da PBE.

Extra:

✔︎ E o NGAL? Queridinho em discussões teóricas atualmente, sinceramente não incluí no texto porque ainda não é uma realidade na prática clínica. Neutrophil gelatinase-associated lipocalin é um biomarcador produzido principalmente no fígado, mas também é expresso em células tubulares renais durante uma lesão aguda, seja ela isquêmica, tóxica ou infecciosa. Alguns estudos sugerem que a quantificação do NGAL na urina pode ajudar a diferenciar entre SHR, lesão pré-renal e doença renal aguda parenquimatosa, mas parece haver sobreposição nos valores de referência.
✘ Críticas à definição de SHR e aos critérios diagnósticos: desde que foi descrita, a SHR é considerada um distúrbio funcional renal dada a reversibilidade com vasoconstritores e com o transplante. Entretanto, ao longo do tempo foram sendo observados casos que não regrediam pós-Tx. Na verdade, nunca se provou a ausência de lesão histológica por biopsia renal. Outra questão, é que hoje se sabe que a fisiopatologia da SHR envolve não somente a parte hemodinâmica, como também uma cascata de reações inflamatórias e citocinas, o que ajuda a explicar a relação com a PBE. Por fim, faz parte dos critérios diagnósticos a ausência de doença parenquimatosa renal, mas um paciente com doença renal crônica e cirrose não pode ter SHR? Hoje sabemos que, sim, pode. Talvez o que falte no critério seja definir lesão parenquimatosa aguda (que justifique a piora de função renal agudamente).

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Referências:

  • Amin, Ahmed Adel et al. Epidemiology, Pathophysiology, and Management of Hepatorenal Syndrome. Seminars in Nephrology, Volume 39, Issue 1, 17-30. doi: 10.1016/j.semnephrol.2018.10.002
  • Angeli, Paolo et al. Diagnosis and management of acute kidney injury in patients with cirrhosis: Revised consensus recommendations of the International Club of Ascites. Journal of Hepatology, Volume 62, Issue 4, 968-974. doi: 10.1016/j.jhep.2014.12.029
  • Angeli, Paolo et al. EASL Clinical Practice Guidelines for the management of patients with decompensated cirrhosis. Journal of Hepatology, Volume 69, Issue 2, 406-460. doi: 10.1016/j.jhep.2018.03.024
  • Terra, Carlos et al. Recommendations of the brazilian society of hepatology for the management of acute kidney injury in patients with cirrhosis. Arq. Gastroenterol., São Paulo, v. 55, n. 3, p. 314-320, Sept. 2018. doi: 10.1590/s0004-2803.201800000-71
  • Wong, F., Angeli, P. (2017), New diagnostic criteria and management of acute kidney injury. Journal of Hepatology, 66: 860-861. doi: 10.1016/j.jhep.2016.10.024

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