CLASSIC trial: qual o impacto da restrição de fluidos no choque séptico?

Estudo investigou se em pacientes com choque séptico na UTI, uma estratégia conservadora de fluidos resultou em menor mortalidade.

A ressuscitação volêmica inicial é um dos pilares no cuidado ao paciente séptico. De acordo com as recomendações da Surviving Sepsis Campaign (2021), recomenda-se a ressuscitação volêmica inicial com 30 ml/kg de cristaloides nos pacientes com sepse e evidência de hipoperfusão.

Uma maior quantidade de volume intravenoso está associada a piores desfechos em pacientes na unidade de terapia intensiva com sepse e choque séptico. Eventos adversos como piora da função renal, insuficiência respiratória e maior mortalidade estão associados a essa prática. Além disso, o ANDROMEDA SHOCK trial evidenciou que nos pacientes com choque séptico, por volta de duas horas, apenas 25% dos pacientes continuavam fluidorresponsivos.

Quanto de fluidos administrar após a ressuscitação inicial? Devemos seguir uma estratégia liberal ou conservadora de fluidos?

CLASSIC trial qual o impacto da restrição de fluidos no choque séptico

Resultados do CLASSIC Trial

Foi publicado, em 17 de junho de 2022, no New England Journal of Medicine, o trial Conservative versus Liberal Approach to Fluid Therapy of Septic Shock in Intensive Care (CLASSIC). Trata-se de ensaio clínico internacional e randomizado, envolvendo 31 UTIs na Europa (Dinamarca, Noruega, Itália, Bélgica, Reino Unido, entre outros), no período de Novembro de 2018 a Novembro de 2021.

Pergunta central do estudo: em pacientes com choque séptico na UTI, uma estratégia conservadora de fluídos comparada ao cuidado padrão resultou em menor mortalidade em 90 dias?

População do estudo

Foram incluídos pacientes com idade ≥ 18 anos, classificados como choque séptico (conforme SEPSIS-3), que haviam recebido no mínimo 1 L de fluidos nas 24 horas anteriores, com início do choque dentro de 12 horas antes do screening para inclusão.

Leia também: Volume de líquido intravenoso na primeira hora de choque séptico e mortalidade em crianças

Foram excluídos quadros de choque séptico iniciados > 12 horas antes do screening, sangramento ameaçador à vida, queimaduras com > 10% da superfície corpórea total e gestantes.

Foram randomizados um total de 1.554 pacientes, na proporção 1:1, para os seguintes grupos:

  • Fluido restrito – 770 pacientes;
  • Cuidado padrão – 784 pacientes.

Em relação às características do baseline de ambos os grupos, a principal fonte de infecção foi a gastrointestinal, seguida da respiratória. A mediana do volume total de fluidos intravenosos administrados nas 24 horas prévias à randomização foi 3,2 L vs. 3 L, nos grupos restrito e padrão, respectivamente. Valores de lactato, uso de droga vasoativa e suporte respiratório eram similares entre os grupos.

Intervenções

No grupo restrito, fluidos poderiam ser administrados em quatro situações:

  1. Em caso de hipoperfusão severa, evidenciada por:
  • Lactato > 4 mmol/L;
  • PAM < 50 mmHg (com ou sem vasopressores/inotrópicos);
  • Mottling acima da região da patela;
  • Débito urinário < 0,1 ml/kg (apenas dentro das primeiras 2 horas pós-randomização);
  • Se qualquer um desses critérios fosse preenchido, 250 mL a 500 mL de bólus de fluidos poderia ser administrado seguido de reavaliação;
  1. Perdas hídricas documentadas como perdas por drenos ou gastrointestinais;
  2. Para correção de desidratação ou distúrbios eletrolíticos (no cenário de contraindicação ao uso da via enteral);
  3. Ainda nos casos de contraindicação ao uso da via enteral, para garantia de aporte hídrico total de 1L em 24 horas (fluidos relacionados à diluição de drogas e nutrição eram contabilizados como entrada hídrica, assim como as diluições medicamentosas foram revisadas para garantir o menor volume possível).

Em relação ao grupo controle (cuidado padrão), não havia limite superior para uso de fluidos, a administração de fluidos endovenosos deveria ser feita com base nas recomendações da Surviving Sepsis Campaign, assim como em casos de reposição de perdas, correção de desidratação e distúrbios eletrolíticos. Fluidos também poderiam ser administrados em cenários de manutenção por demanda de protocolos dos centros.

O manejo comum a ambos os grupos envolveu a utilização de apenas cristaloides isotônicos (o uso de albumina só foi permitido após paracentese abdominal), assim como medidas gerais para o choque séptico (antibioticoterapia adequada, noradrenalina como vasopressor, controle do foco…).

Resultados

Em relação ao desfecho primário (mortalidade em 90 dias), foi observado 42,3% no grupo fluido restrito vs. 42,1% no grupo cuidado padrão, com diferença absoluta ajustada de 0,1 (IC 95% -4,7 a 4,9), p = 0,96.

Assim como em relação ao desfecho primário, não houve diferença significativa nos desfechos secundários pesquisados (eventos adversos graves, dias livres de suporte de vida, entre outros).

Pontos de observação

Ambos os grupos receberam uma quantidade considerável de fluidos, aproximadamente 3 litros antes da randomização.

 Em relação aos grupos, podemos observar que houve similaridade em relação à diferença entre os balanços hídricos de ambos os grupos:

  • A diferença total de fluidos administrados no dia 5 foi de apenas 2 L (8,8 L vs. 10,8 L) com diferença de aproximadamente 800 mL no balanço hídrico cumulativo no dia 5.

Tal fato evidencia que o cuidado padrão adotado nas UTIs do estudo já era algo restritivo em relação a fluidos, não apresentando padrão tão diferente do que foi adotado no grupo controle.

Saiba mais: Fórum de Sepse 2022: início precoce do uso de vasopressina no choque séptico

Sendo assim, os grupos intervenção e controle apresentaram abordagens muito próximas, dificultando a observação de diferenças significativas nos desfechos. Resultados diferentes poderiam ter sido obtidos em cenários nos quais uma maior quantidade de fluidos intravenosos é utilizada no cuidado padrão.

Conclusão dos autores

Em pacientes adultos internados em UTI com choque séptico, a restrição de fluidos IV não resultou em menor mortalidade em 90 dias, comparado ao grupo com estratégia padrão de fluidos.

Mensagens Práticas

  • O estudo em questão avaliou a estratégia de fluidos após a ressuscitação volêmica inicial, ou seja, como lidamos com o balanço hídrico dos pacientes com choque séptico em UTI;
  • Chama atenção que os grupos tiveram uma diferença relativamente pequena em relação ao balanço hídrico cumulativo no dia 5;
  • O fato acima evidencia que a estratégia do grupo padrão já tinha tendência restritiva, refletindo a prática nos países europeus envolvidos;
  • Para a minha prática clínica, o estudo reforça que uma estratégia mais restritiva de balanço hídrico é, no mínimo, segura para o paciente com choque séptico;
  • Após a ressuscitação volêmica inicial, optar por guiar a ressuscitação volêmica por métodos dinâmicos de fluido responsividade e ter atenção ao balanço hídrico (principalmente nas fases de descalonamento e retirada de fluidos).

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Referências bibliográficas: Ícone de seta para baixo
  • Meyhoff TS, Hjortrup PB, Wetterslev J, et al. Restriction of Intravenous Fluid in ICU Patients with Septic Shock [published online ahead of print, 2022 Jun 17]. N Engl J Med. 2022;10.1056/NEJMoa2202707. DOI: 10.1056/NEJMoa2202707

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