Comissão do The Lancet avalia financiamento da APS no Brasil

A comissão internacional analisou os modelos de APS de diversos sistemas de saúde do mundo, incluindo o Brasil.

A revista The Lancet Global Health, através de sua Comissão Internacional sobre Financiamento da Atenção Primária à Saúde, publicou um estudo analisando os modelos de Atenção Primária (APS) de diversos sistemas de saúde do mundo. O Brasil foi um dos países estudados, juntamente com Chile, China, Estônia, Etiópia, Filipinas, Gana, Índia e Nova Zelândia. O estudo de caso da APS brasileira tem mais de 60 páginas e traz considerações sobre a Estratégia de Saúde da Família (ESF), os diferentes modos de financiamento utilizados no país ao longo dos anos e as potenciais consequências das atuais políticas nesse âmbito.

O estudo destaca a importante expansão da APS no Brasil após a redemocratização e a criação do SUS no fim da década de 80, apontando a ESF como “um dos maiores e mais inovadores sistemas de APS no mundo”. Acompanhando essa escala de crescimento, o mecanismo de financiamento público conhecido como Piso da Atenção Básica (PAB), iniciado em 1998, foi considerado efetivo ao manter uma transferência de recursos estável do Ministério da Saúde diretamente para os municípios. O PAB possuía dois componentes: o valor fixo, proporcional ao tamanho da população atendida pela APS em cada cidade; e o variável, que visava encorajar os municípios a aderirem diretrizes e programas prioritários do governo (como saúde bucal, saúde indígena, consultório na rua etc). Entre 1998 e 2020, a cobertura da APS no Brasil aumentou de 2.054 equipes para 43.286, cobrindo 63,3% da população, ainda que de maneira desigual (40,7% em São Paulo e 99,7% no Piauí).

Ao longo do tempo, no entanto, percebe-se uma sobrecarga dos municípios com relação ao financiamento da APS, devendo eles, por lei, aplicar 15% de seus recursos para a saúde, enquanto o governo federal, sem a mesma obrigatoriedade, diminui a sua contribuição. Com esse aumento da responsabilidade municipal, ampliam-se as desigualdades entre as cidades mais ricas e as mais pobres, contribuindo para a dificuldade de alocação de médicos e outros profissionais de saúde no interior e em locais remotos. Ajustes no componente variável do PAB de acordo com o PIB de cada município e o programa Mais Médicos foram duas estratégias tentadas no sentido de corrigir essas iniquidades; contudo não foram capazes de resolvê-las completamente.

A crise econômica vivida pelo país nos últimos anos também aparece como um ponto de destaque no estudo, já que afetou diretamente a capacidade de financiamento da APS. A emenda constitucional nº 95, de 2016, que congelou gastos públicos por 20 anos, somada a outras medidas de austeridade fiscal, limitou os recursos destinados à saúde e tornou mais difícil o monitoramento da participação federal nas transferências aos municípios. A comissão alerta para o risco de diminuição do financiamento da APS em nome de um maior direcionamento dos recursos à atenção especializada e hospitalar.

Em 2019, foi lançado o Previne Brasil, novo modelo de financiamento da APS que substitui o PAB. O valor transferido aos municípios passa a ser por “capitação”, baseado no número de pessoas cadastradas em cada equipe, ajustado por critérios socioeconômicos. Essa mudança de mecanismo é considerada arriscada pela comissão do estudo, principalmente em momentos de pandemia e de crise econômica, quando a estabilidade na transferência de recursos é crucial e pode acabar sendo perdida. Nesse sentido, municípios com menor capacidade gerencial, estrutural e de recursos humanos podem acabar sendo os mais penalizados, ameaçando os avanços alcançados pelo PAB.

Outra característica do Previne Brasil é o pagamento por desempenho, que vincula a transferência de mais recursos no caso de atingimento de alguns indicadores de performance (como acompanhamento adequado de diabetes, número de consultas de pré-natal, etc.). Entretanto, esses valores são direcionados ao município e não diretamente às equipes, diferente de como é feito em vários países desenvolvidos. Isso poderia comprometer a eficácia dessa estratégia ao não recompensar diretamente o profissional.

Sobre as perspectivas futuras, o estudo aponta que substituir um modelo anterior de sucesso em um momento crítico como o atual pode não ser a melhor estratégia, quando justamente são maiores as necessidades de um financiamento consistente e que o mecanismo de capitação provavelmente poderia ser mais exitoso em aumentar a eficiência de gastos caso fosse combinado com o modelo do PAB.

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Referências bibliográficas: Ícone de seta para baixo
  • Massuda A, Malik AM, Lotta G, Siqueira M, Tasca R, Rocha R. Brazil’s Primary Health Care Financing: Case study. Lancet Global Health Commission on Financing Primary Health Care. Working Paper No. 1. 2022