Como interpretar um hemograma: o que o clínico deve saber – Parte I

A interpretação do hemograma deve estar fortemente vinculada à entrevista clínica e exame físico para melhor elucidação da suspeita clínica. 

Como interpretar corretamente o hemograma? Os contadores automatizados disponíveis, hoje em dia, utilizam-se de métodos como espectofotometria, impedância de abertura, fluorescência, reações citoquímicas, dentre outros, para análise das células no sangue periférico.

Leia também: Como interpretar um hemograma: o que o clínico deve saber – Parte II

Quando se observa uma transgressão do padrão normal, geralmente os dispositivos possuem um método de alerta (“flags”) para levantar a suspeita de que o material deve ser avaliado por um profissional habilitado em hematoscopia.

Entendemos, então, que o aparelho automatizado pode apresentar resultados discrepantes ou até mesmo “se confundir” na discriminação das células. Dessa forma, a checagem também é operador dependente, o que pode gerar viéses na análise. Valores de referência são adotados a partir dos resultados de 95% da população saudável, com dois desvios padrão para cima ou para baixo dos limites superiores e inferiores da normalidade.

Portanto, valores fora dessa faixa podem ser normais no paciente avaliado, como é o caso da Leucopenia Familiar ou da Leucopenia Constitucional. É importante, ainda, destacarmos que a interpretação do hemograma deve estar fortemente vinculada à entrevista clínica e exame físico para melhor elucidação da suspeita clínica.

Como interpretar um hemograma: série vermelha

Maturação mieloide e linfoide

Para melhor entendimento das alterações do hemograma, sugerimos a consulta às figuras abaixo em caso de dúvidas. O conhecimento do processo de maturação das células da medula óssea traz maior clareza para os processos fisiopatológicos que acometem as diferentes linhagens.

Maturação da série vermelha

Fonte: https://cadernodefarmacia.blogspot.com/2012/11/eritropoiese.html
Medicinanet.com.br (Hematopoiese simplificada com interleucinas responsáveis pela multiplicação celular)

Série vermelha

  • Pode se encontrar falsamente elevada em casos de hiperleucocitose, plaquetas gigantes.
  • Falsamente reduzidas: Aglutininas ligadas às hemácias, presença de crioglobulinas ou hemólise in vitro (erro de coleta ou pré-analítico).

Hematócrito – (Htc)

  • O hematócrito em geral deve estar próximo a um valor correspondente a 3x o nível de hemoglobina.
  • Valores muito superiores ao mencionado acima podem indicar um grau de hemoconcentração e desidratação.
  • O contrário também é verdadeiro, e observamos hematócritos com valores muito reduzidos em casos de hemodiluição.

Leia também: A possível interferência das crioaglutininas na série vermelha do hemograma

Hemoglobina – (Hb) 

  • Estima a concentração sérica de hemoglobina a partir da análise dos glóbulos vermelhos.
  • Falsamente aumentadas: leucocitose, hiperbilirrubinemia, paraproteinemia, carboxihemoglobina, hiperlipidemia.
  • A elevação da hemoglobina, dentro do contexto clínico adequado, deve levantar algumas hipóteses. Dentre elas, destacamos: Policitemia Vera (poliglobulia primária – etiologia mieloproliferativa) e nas poliglobulias secundárias (ex: tumores produtores de eritropoetina, quadros de hipoxemia crônica, etc). Tais assuntos serão melhor abordados em capítulos específicos.

Volume Corpuscular Médio –  (VCM) 

  • Avalia o tamanho das hemácias.
  • Elevado: Alcoolismo, Hepatopatias, Anemias hiperproliferativas (ex. hemolíticas intravasculares ou extravasculares) devido ao aumento na taxa de reticulócitos em sangue periférico (esse costumam ser maiores que as hemácias e confundidos pelo contador automatizado como sendo a segunda). Aglutinação de hemácias, hiperglicemia, Esferocitose, Anemia Perniciosa e megaloblástica também são diagnósticos diferenciais. Uso de medicamentos (ex: Hidroxiureia e Carbamazepina).

Hemoglobina Corpuscular Média – (HCM) ou Concentração de Hemoglobina Corpuscular Média – (CHCM)

  • Avalia a “coloração” das hemácias, ou seja, a concentração da hemoglobina no interior das células.
  • Elevados: aumento do turbilhonamento plasmático, esferocitose hereditária, presença de hemoaglutinação
    Reduzidos: Anemia Ferropriva, Talassemias, Anemia Falciforme
  • O tamanho das hemácias pode ser normal e estar associado a diminuições da hemoglobina, como nos casos das anemias hemolíticas de instalação subaguda/aguda e nas anemias de doença crônica.

Red Blood Cells (RBC) distribution width – (RDW)

  • Este parâmetro avalia a diferença de tamanho entre as hemácias. Quanto maior o RDW, maior a diferença entre essas células. É importante notar que condições com reticulocitose ou aumento de células vermelhas nucleadas no sangue periférico cursam com RDW alto. Quanto mais aguda for a alteração, maior será o RDW.
  • Também chamado de Índice de Anisocitose, que significa tamanho diferente das hemácias.
  • Aumentam: classicamente Anemias Carenciais, como ferropriva e megaloblástica/macrocítica. Casos pós-transfusionais, principalmente se o paciente apresentar essas condições subjacentes, também podem alterar esse parâmetro.
  • Normal: Talassemias, Anemia de Doença Crônica (o grau inflamatório persistente faz com que a medula produza hemácias de tamanho mais uniforme).
  • Atenção: Condições com hemólise e reticulocitose, hiper/hipotireoidismo, doença hepática, podem cursar com alteração do RDW a depender geralmente do tempo de instalação.

Esquizócitos

  • São fragmentos de hemácias contidos na amostra analisada. Podem ser observados em casos de anemia intravascular. São importantes para o diagnóstico de anemias microangiopáticas / microangiopatias trombóticas, como é o caso da Síndrome Hemolítico Urêmica típica e atípica (SHU/SHUa) e da Púrpura Trombocitopênica Trombótica (PTT). Outra causa comum é a presença de valvas cardíacas mecânicas e anemias trombóticas associadas à neoplasia / pós-transplante / associada a Coagulação Intravascular Disseminada (CIVD).
  • Em contagem > 1% na lâmina avaliada, deve levantar a possibilidade de Anemias Microangiopáticas. Em contagens inferiores a esse valor, a história clínica pode sugerir os demais diagnósticos diferenciais mencionados acima.

Células Vermelhas Nucleadas (Eritroblastos policromáticos, ortocromáticos, pró-eritroblastos, eritroblastos basofílicos) 

  • No período neonatal são comuns sem apontar para qualquer patologia;
  • Em geral aparecem em ocasiões de estresse medular: anemias hemolíticas, neoplasias mieloproliferativas, neoplasia sólida metastática para medula óssea e hipóxia.
  • Reação leucoeritroblástica: observado, por exemplo, na mielofibrose.

Acantócitos

  • Células vermelhas irregulares e espiculadas;
  • Associadas com: Doenças Hepáticas, Abetalipoproteinemia, pacientes pós-esplenectomia.

Pontilhado basofílico

  • Inclusões basofílicas pontuais;
  • Associados a Talassemias, Toxicidade Exógena

Corpúsculos de Heinz (“Bite cells” / células mordidas)

  • Células defeituosas associadas principalmente a deficiência de G6PD, hemólise induzida por droga, pós-esplenectomia.

Corpúsculos de Howell-Jolly

  • São inclusões nas hemácias que correspondem a RNA residual;
  • Estão associados principalmente a pacientes pós-esplenectomia, anemia hemolítica aguda, anemia megaloblástica

Corpúsculos de Pappenheimer

  • Siderossomos contendo grande quantidade de íons férricos;
  • Associados a Anemia Sideroblástica (Anemia Refratária com Sideroblastos em Anel ou Síndrome Mielodisplásica com sideroblastos em anel) e sobrecarga de ferro (sobrecarga transfusional, hematopoiese medular ineficaz).
  • Sideroblastos em anel são células vermelhas nucleadas anormais, com grande acúmulo de ferro ao redor do núcleo. Coloração de Perls ou Azul da Prússia é utilizada para identificar tais achados.

Esferócitos

  • Esferocitose herediária, anemias hemolíticas autoimunes.

Estomatócitos

  • Defeitos de membrana;
  • Associados a estomatocitose hereditária ou são achados artefatuais.

Hemácias em Alvo (codócitos) 

  • Doenças hepáticas, pós-esplenectomia, Hemoglobinopatia C (HbC), Talassemias

Hemácias em Lágrima (dacriócitos) 

  • Mielofibrose, mielofitíase (infiltração medular por tumor sólido).
*No próximo artigo, vamos falar sobre a Série Branca.

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Referências bibliográficas: Ícone de seta para baixo
  • American Society of Hematology Self-Assessment Program; Edited by Adam Cuker, MD, MS; Jessica K. Altman, MD; Aaron T. Gerds, MD; Ted Wun, MD, FACP Seventh Edition, 2019.
  • Williams Manual of Hematology, 9th edition. McGrawHill Education.

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