Como prever mau prognóstico em pacientes pós-PCR?

Muito conhecida em Urgências/Emergências e Terapia Intensiva, a parada cardiorrespiratória (PCR), é confusa para muitos profissionais.

A situação de parada cardiorrespiratória (PCR), conhecida de todas as áreas médicas e em especial das Urgências/Emergências e Terapia Intensiva, é paradoxalmente ainda muito confusa para muitos profissionais. O atendimento com as manobras de ressuscitação (RCP), em si, não costumam ser problema, apesar de que muitos profissionais admitem ter dificuldade em seguir uma linha de raciocínio e de verdadeiramente coordenar o evento durante o estresse emocional que o acompanha. Mais do que isso, o momento que talvez gere mais dúvida é o que vem em seguida, quando a circulação espontânea é reestabelecida. “O que fazer agora? Devo fazer tomografias em todo mundo? O paciente retornou à circulação com sequelas ou não?” São algumas dúvidas comuns.

A grande maioria desses pacientes evolui para necessidade de intubação orotraqueal (IOT) durante a ressuscitação, o que quer dizer que eles retornarão à circulação muito provavelmente sob efeito de sedação. Claramente, isso gera fatores de confusão considerando que as sequelas neurológicas pós-PCR são comuns, porém o nível neurológico está falseado pelo uso de sedativos. Mesmo nos casos em que a RCP é curta, com retorno rápido à circulação espontânea, a demora no despertar pode deixar a equipe com as mesmas dúvidas: “Trata-se de uma sequela? Ou de uma encefalopatia transitória pela isquemia? Poderia ser um estado de mal não-convulsivo?”.

Não à toa, vários estudos têm tentado definir quais exames, clínicos ou complementares, podem ajudar os profissionais a predizer com maior confiabilidade se o paciente tem bom ou mau prognóstico após uma PCR. Isso é importante por permitir não só prever quais pacientes provavelmente evoluirão com sequelas e, portanto, poderiam ser elegíveis para cuidados paliativos e restrição de medidas geradoras de sofrimento, mas, também, por permitir acessar precocemente potenciais doadores de órgãos nos casos em que a morte encefálica (ME) é esperada. Um estudo publicado no Intensive Care Medicine, em 2020, fez uma extensa revisão de pesquisas a fim de sanar essas e outras dúvidas.

A pesquisa foi estruturada como uma revisão sistemática, incluindo estudos que avaliassem preditores como exame clínico, exames laboratoriais, imagem e/ou eletrofisiologia registrados dentro de até 7 dias após uma PCR com ressuscitação bem sucedida em pacientes que voltassem à circulação espontânea ainda comatosos. É importante ressaltar que os estudos usados foram todos em adultos (no caso, pessoas > 16 anos) e usando como definição de “comatoso” o valor da Escala de Coma de Glasgow (ECG) igual a 8 ou menos. Já o mau desfecho após uma PCR foi definido como déficit neurológico grave, estado vegetativo persistente ou morte cerebral, identificados através dos escores Cerebral Performance Category (CPC) de 3 a 5 ou a escala de Rankin de 4 a 6. Nessa revisão, foram aceitos apenas ensaios clínicos (nem todos randomizados), sendo excluídas outras revisões ou coortes da lista. [1]

PCR

Critérios preditores de mau prognóstico

O estudo identificou bons preditores em todas as seguintes categorias estudadas:

Exame clínico: a ausência do reflexo pupilar bilateralmente após 48h da recuperação da circulação espontânea, a ausência do reflexo córneo-palpebral bilateralmente após 4 dias e a ausência de reflexos de tronco (como o óculocefálico e o de tosse) após 48h da PCR tiveram praticamente 0% de falsos positivos (FP) em todos os estudos avaliados. O reflexo motor de extensão ou sua ausência completa ao estímulo doroso teve alta sensibilidade para o mau prognóstico neurológico, mas com uma taxa de FP mais alta (em torno de 5%), mesmo após 7 dias da PCR. Já o status mioclônico identificado, com menos de 24h da recuperação ou mesmo quando surgido em até 7 dias, também previu com boa acurácica os desfechos negativos, com FP próximos a 0%.

Marcadores biológicos: nessa categoria, foram estudados alguns marcadores sorológicos que não são amplamente disponíveis pelo Brasil: a enolase neurônio-específica (NSE), proteína S-100B, proteína ácida fibrilar glial (GFAP), proteína tau sérica e neurofilamento de cadeia leve (NFL). Valores elevados de todos esses elementos medidos em até 72h do evento estiveram associados a mau prognóstico neurológico praticamente sem falsos positivos. Porém, a maioria deles apresentou baixa sensibilidade, o que quer dizer que eles poderiam estar em valores normais mesmo em pacientes que posteriormente fechavam diagnóstico de alguma lesão neurológica persistente e grave. Logo, os valores alterados falam a favor do desfecho negativo, mas seus valores normais não necessariamente servem para descartá-lo. Dentre esses investigados, a dosagem do NFL foi o que teve melhor sensibilidade.

Eletrofisiologia: nessa parte, foram avaliados exames de potenciais evocados (SEP) e eletroencefalogramas (EEG). Essa categoria de exames tem sido frequentemente os mais usados para acessar de fato a atividade basal cerebral e se ela é compatível ou não com uma sequela mais grave. Dentre exames de potenciais evocados avaliados, os que apresentaram maior taxa de resultados positivos com FP praticamente de 0% foram os potenciais evocados somatossensoriais N20 de baixa frequência (N20 SSEP) presentes em um lado e ausentes em outro, os SEP auditivos de tronco encefálico ausentes, os SEP dolorosos ausentes e SEP visuais ausentes. A maioria desses testes foi avaliada em torno de 72h após a recuperação da circulação espontânea. Já relativo aos exames de EEG, a atividade isoelétrica e a atividade supressa, especialmente quando associadas a descargas rítmicas ou mesmo crises epilépticas evidentes, se relacionaram ao desfecho ruim com praticamente nenhum FP (no caso das crises epilépticas, especificamente, o FP foi baixo mas não nulo: 2,6%). Em alguns casos, dois ou mais padrões de EEG podem surgir sobrepostos, em alguns casos formando padrões denominados como malignos ou altamente malignos, ambos com alto acurácia para predição de má evolução neurológica com FP próximos a 0%

Exames de imagem: é comum e intuitiva a realização de exames de imagem em pacientes pós-PCR que evoluam com arresponsividade. Nas tomografias de crânio (TC), o surgimento de edema cerebral em até 7 dias da recuperação da circulação espontânea esteve associado ao pior desfecho com baixos índices de FP, mesmo sendo um achado comum em outras várias condições clínicas. Porém, o cálculo da razão entre volume de substância cinzenta x substância branca (GWR) foi o que mostrou maior precisão na previsão de mau prognóstico. Esse critério foi considerado muito útil nessa revisão por já se encontrar alterado nas primeiras 2h após o evento em pacientes que posteriormente evoluiriam com sequelas neurológicas. Porém, os valores de referência variaram muito de um estudo para o outro, inviabilizando a definição de um número específico, sendo necessários mais estudos para melhor definição desses critérios. Já na ressonância nuclear magnética (RNM), as aferições do coeficiente aparente de difusão (CAD) e do gradiente eco (GRE) foram os mais usados nesses casos. O CAD sofreu do mesmo problema do GWR, com muitos valores de corte variados ao longo dos estudos analisados. Já o GRE de 3 apresentou sensibilidade > 80% e FP de 0% na maioria das pesquisas. Outra modalidade de exames ganhando cada vez mais reconhecimento atualmente são o USG e a TC de nervo óptico para definição da espessura da sua bainha. Quando usados os valores de corte de 6,21 mm e 7,0 mm, respectivamente, o FP foi de 0% já dentro de 1h após a RCP bem sucedida. [1]

Como interpretar os critérios?

Apesar de tantos estudos direcionados para definir e otimizar esses critérios, ainda existem poucos guidelines ou mesmo algoritmos sugerindo como usá-los, o que deixa a análise ainda muito subjetiva e a critério de quem analisa. Quantos critérios positivos devo usar para fechar um provável mau-prognóstico? Quais fatores de confusão devem ser eliminados primeiro?

Em um guideline lançado em 2021 pela European Resuscitation Council e pela European Society of Intensive Care Medicine, que detalha cuidados pós-PCR recomendados pelas evidências mais fortes, as sociedades envolvidas montaram alguns fluxogramas que ajudam a facilitar esse tipo de análise [2]:

* RCE: Recuperação à circulação espontânea / EEG: Eletroencefalograma / N20 SSEP: Potenciais evocados somatossensoriais N20 de baixa frequência / NSE: Enolase específica do neurônio / TC: Tomografia computadorizada / RNM: Ressonância nuclear magnética

Como podemos observar, neste fluxograma sugerido, apesar de várias avaliações serem passíveis de serem iniciadas logo após as primeiras 24h da ressuscitação, a maioria dos critérios (inclusive os clínicos) são considerados mais confiáveis após 72h do retorno à circulação espontânea. Os autores do guideline sugerem desencadear o fluxo a partir dos critérios clínicos e, com dois ou mais dos demais critérios positivos, o caso é considerado de provável prognóstico reservado, e as equipes assistentes orientadas a manter a vigilância para possível evolução para morte encefálica e início precoce para as medidas de desospitalização ou manutenção de viabilidade orgânica e posterior captação em caso de ME real. No caso, o algoritmo sugere o uso da enolase específica do neurônio (NSE), ao invés do NFL (que seria teoricamente mais sensível), provavelmente pela maior disponibilidade daquele nos serviços que dispõem de alguma das opções. [2]

Para uma visão mais geral do processo, o mesmo artigo encaixa esse algoritmo dentro de outro fluxograma que adaptamos a seguir:

* RCE: Recuperação à circulação espontânea / PCR: Parada cardiorrespiratória / TC: Tomografia computadorizada / ME: Morte encefálica / RMI: Restrição de medidas invasivas / CP: Cuidados paliativos

No fluxograma completo, a última etapa sempre envolve a comunicação das comissões de transplante e doação de órgãos do serviço em questão, considerando o alto risco de evolução para ME nos casos de mau prognóstico e a sensibilidade do fator tempo no processo de captação e transplantante de órgãos.

A importância da estimativa do prognóstico neurológico em pacientes pós-PCR vem neste mesmo sentido: prever e programar as próximas condutas visando não só redução de custos e uso racional de recursos (especialmente em momentos críticos como o da atual pandemia de COVID-19), mas também evitar medidas potencialmente lesivas e geradoras de sofrimento para pacientes que evoluam com sequelas (elegíveis, em sua maioria, para cuidados paliativos). Ainda são necessários novos estudos para definir algoritmos de neuroprognóstico mais precisos, porém os achados apresentados até então servem de direção para um melhor cuidado dos pacientes vítimas de PCR por qualquer motivo.

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