Como realizar o protocolo de morte encefálica e a manutenção do potencial doador de órgãos – Parte I: O diagnóstico

O CFM divulgou em dezembro do ano passado uma atualização dos critérios usados para o diagnóstico de morte encefálica no Brasil.

Após quase 20 anos de hiato, o Conselho Federal de Medicina (CFM) divulgou em dezembro do ano passado uma atualização dos critérios usados para o diagnóstico de morte encefálica no Brasil, com alguns pontos de mudanças importantes, substituindo a resolução nº 1.480/97 pela nº 2.173/17, sob a ótica do que determina a lei nº 9.434/97 e o decreto presidencial n 9.175/17, que regulamentam o transplante de órgãos e tecidos no Brasil.

O objetivo da atualização foi deixar o processo de diagnóstico mais seguro do ponto de vista a garantir por meio de comprovação técnica junto à central de transplante estadual, a capacitação do médico que realiza o exame, bem como permitir que pacientes que tenham lesão unilateral de base de crânio, ocular ou auditiva, possam seguir com o processo de diagnóstico desde que justificado no termo, o que antes não era permitido, onde a presença de uma lesão, mesmo que unilateral, inviabilizaria o processo de diagnóstico.

O conceito de morte encefálica permaneceu como a presença da perda completa e irreversível das funções de encefálicas (cérebro e cerebelo) em decorrência de uma lesão catastrófica não passível de tratamento clínico ou cirúrgico, culminando com um diagnóstico de óbito e processo de diagnóstico será composto de dois exames clínicos, um teste de apneia e um teste confirmatório.

morte encefálica

Avaliação inicial e pré-requisitos

Tudo começa com o processo de triagem. Suspeitamos de evolução para morte encefálica quando nos deparamos com um paciente que apresenta-se pupilas fixas e não reativas, em Glasgow 3T, sem drive respiratório e sem outros reflexos de pares cranianos na ausência de drogas depressoras do sistema nervoso central e de outros fatores de confundimento. Diante de uma lesão neurológica grave com esses achados, consideramos o paciente como um possível doador de órgãos.

Ainda em relação ao processo de diagnóstico, uma lesão causadora do coma deve ser estabelecida pela avaliação clínica e confirmada por exames de neuroimagem ou por outros métodos diagnósticos. A incerteza da presença de uma lesão irreversível, ou da sua causa, impossibilita a determinação de ME. É imprescindível que haja um exame de imagem como a tomografia, documentando uma lesão catastrófica compatível com evolução para morte encefálica, obtida após o estado de coma do paciente e após 6 horas de observação hospitalar ou 24h em casos de encefalopatia hipóxico-isquêmica. Por exemplo, se o paciente entrou no serviço com um acidente vascular encefálico pequeno e um Glasgow de 12, mas no terceiro dia de evolução cursa comatoso e com suspeita de morte encefálica, uma nova tomografia deve ser obtida.

Avaliados os pré-requisitos para ser um possível doador, são avaliados os fatores de
confundimento ou pré-requisitos que precisam ser descartados antes de cada uma das quatro etapas do
processo, fazendo-se necessário obter:

  • Saturação de oxigênio acima de 94%
  • Temperatura central acima de 35º
  • Pressão arterial sistólica acima de 100 mmHg e\ou PAM acima de 65 mmHg
  • Ausência de efeito de drogas depressoras do sistema nervoso central
  • Ausência de lesão suspeita ou confirmada de coluna cervical

A lista dos medicamentos depressores do sistema nervoso central e do tempo de espera de cada um pode ser vista nesta diretriz. Em relação aos distúrbios hidro-eletrolíticos como a hipernatremia, não são contra-indicações uma vez que sejam desenvolvidas após o coma e como consequência, não causa dele. Uma vez que todos os fatores possíveis de confundimento são afastados, o primeiro exame clínico é feito e caso seja positivo, estaremos diante de um potencial doador de órgãos. Um segundo exame clínico pode ser realizado após a primeira hora em relação ao primeiro exame em adultos e crianças acima de dois anos de idade. Em
crianças com menos de dois anos o intervalo mínimo de tempo entre os dois exames clínicos variará conforme a faixa etária:

  • Sete dias completos (recém-nato a termo) até dois meses incompletos será de 24 horas
  • De dois a 24 meses incompletos será de doze horas;
  • Acima de dois anos de idade o intervalo mínimo será de uma hora.

O exame clínico

Um ponto importante da mudança diz respeito aos tempos de espera. Atualmente, é necessário garantir no mínimo seis horas de observação intra-hospitalar e tratamento pleno, tempo este estendido para 24 horas em caso de encefalopatia hipóxico-isquêmica e deverá assim, ser aguardado um período mínimo de 24 horas após a parada cardiorrespiratória ou reaquecimento na hipotermia terapêutica, antes de iniciar a determinação de ME.

Após este período de observação, um médico capacitado deve dar início ao protocolo de abertura. Serão considerados especificamente capacitados médicos com no mínimo um ano de experiência no atendimento de pacientes em coma e que tenham acompanhado ou realizado pelo menos dez determinações de ME ou curso de capacitação para determinação em ME. Um dos médicos especificamente capacitados deverá ser especialista em uma das seguintes especialidades: medicina intensiva, medicina intensiva pediátrica, neurologia, neurologia pediátrica, neurocirurgia ou medicina de emergência. Na indisponibilidade de qualquer um dos especialistas anteriormente citados, o procedimento deverá ser concluído por outro médico especificamente capacitado.

Os médicos incluídos no processo não podem estar relacionados às equipes de captação e
implante de órgãos, bem como o executor do exame complementar deve assinar pessoalmente o laudo
no termo de declaração de morte encefálica.

Os procedimentos a serem realizados nos testes dos pares cranianos seguem abaixo:

1) Ausência do reflexo fotomotor: As pupilas deverão estar fixas e sem resposta à estimulação luminosa intensa (lanterna), podendo ter contorno irregular, diâmetros variáveis ou assimétricos.

2) Ausência de reflexo córneo-palpebral: Ausência de resposta de piscamento à estimulação direta do canto lateral inferior da córnea com gotejamento de soro fisiológico gelado ou algodão embebido em soro fisiológico ou água destilada.

3) Ausência do reflexo oculocefálico: Ausência de desvio do(s) olho(s) durante a movimentação rápida da cabeça no sentido lateral e vertical. Não realizar em pacientes com lesão de coluna cervical suspeitada ou confirmada.

4) Ausência do reflexo vestíbulo-calórico: Ausência de desvio do(s) olho(s) durante um minuto de observação, após irrigação do conduto auditivo externo com 50 a 100 ml de água fria (± 5 °C), com a cabeça colocada em posição supina e a 30°. O intervalo mínimo do exame entre ambos os lados deve ser de três minutos. Realizar otoscopia prévia para constatar a ausência de perfuração timpânica ou oclusão do conduto auditivo externo por cerume.

5) Ausência do reflexo de tosse: Ausência de tosse ou bradicardia reflexa à estimulação traqueal com uma cânula de aspiração.

Na presença de alterações morfológicas ou orgânicas, congênitas ou adquiridas, que impossibilitam a avaliação bilateral dos reflexos fotomotor, córneo-palpebral, oculocefálico ou vestíbulo-calórico, sendo possível exame em um dos lados, e constatada ausência de reflexos do lado sem alterações morfológicas, orgânicas, congênitas ou adquiridas, dar-se-á prosseguimento às demais etapas para determinação de ME. A causa dessa impossibilidade deverá ser fundamentada no prontuário e no termo de declaração de morte encefálica.

O teste de apneia

Em relação ao teste de apneia, passou-se a necessitar de uma paO2 idealmente acima de 200 mmHg sob FiO2 de 100% e uma PaCO2 obrigatoriamente entre 35 mmHg para ser considerada válida como pré-teste. Em alguns casos selecionados com hipoxemia refratária, o cenário pode ser discutido com a Central Estadual de Transplantes para melhor definição do processo. O teste será considerado positivo se houver a ausência de movimentos respiratórios espontâneos, após a estimulação máxima do centro respiratório pela hipercapnia (PaCO2 superior a 55 mmHg) com dez minutos de apneia obtida pela desconexão do ventilador mecânico e instalação de uma cânula de aspiração conectada à fonte de O2 a 6 L\min. Após esse período, uma nova gasometria é coletada.

Caso ocorra hipotensão (PA sistólica < 100 mmHg ou PA média < que 65 mmHg), hipoxemia significativa ou arritmia cardíaca, deverá ser colhida uma gasometria arterial e reconectado o respirador, interrompendo-se o teste. Se o PaCO2 final for inferior a 56 mmHg, após a melhora da instabilidade hemodinâmica, deve-se refazer o teste.

O teste confirmatório

No Brasil é obrigatória a realização de exames complementares para demonstrar, de forma inequívoca, a ausência de perfusão sanguínea ou de atividade elétrica ou metabólica encefálica e obtenção de confirmação documental dessa situação. O resultado do exame deve ser registrado pelo profissional executor no prontuário e no termo de declaração de morte encefálica, respeitando os mesmos pré-requisitos dos exames clínicos e do teste de apneia. A escolha do exame complementar leva em consideração a situação clínica e as disponibilidades locais, devendo ser justificada no prontuário.

Os exames possíveis validados são obrigatoriamente os abaixo:

  • Angiografia cerebral
  • Eletroencefalograma
  • Doppler transcraniano
  • Cintilografia de perfusão cerebral

Qualquer um dos exames acima citados que documente a ausência de fluxo sanguíneo ou atividade cerebral podem ser usados, mas existem particularidades. Por exemplo, em pacientes com fratura de calota craniana devemos dar preferência para o eletroencefalograma, pelo risco de falso negativo nos exames de fluxo. Já nos casos de intoxicações exógenas ou uso de barbitúricos, devemos dar preferência para os exames de fluxo pelo risco de resultado falso positivo.

Uma vez que o paciente realize os quatro exames, respeitando os pré-requisitos e com adequado registro no prontuário, ele é declarado como falecido por morte encefálica, sendo usada como hora legal do óbito o horário da realização do último exame, seja ele clínico, de apneia ou o confirmatório. Ele passa então a ser chamado de doador elegível de órgãos e a comissão de transplantes do serviço avaliará junto com a Central de Transplantes do Estado a viabilidade do doador, bem como a liberação para a entrevista. Nos casos de inviabilidade para a entrevista ou de negativa familiar para a doação, os aparelhos são desligados após a comunicação da família e o corpo é entregue.

Referências bibliográficas:

  • Conselho Federal de Medicina (CFM). Resolução CFM nº 1.480/1997. Define critérios para
    diagnóstico de morte encefálica [Internet]. Brasília (DF): CFM; 1997. [citado 2019 Jul 10]. Disponível
    em: http://www. portalmedico.org.br/resolucoes/CFM/1997/1480_1997.html.
  • Conselho Federal de Medicina. Resolução CFM nº 2173, de 23 de novembro de 2017. Define os
    critérios do diagnóstico de morte encefálica [Internet]. Brasília (DF): CFM; 2017. [citado 2019 Jul
    10]. Disponível em: https://sistemas.cfm.org.br/normas/visualizar/resolucoes/BR/2017/2173.
  • Westphal, Glauco Adrieno, Veiga, Viviane Cordeiro e Franke, Cristiano Augusto Determinação da
    morte encefálica no Brasil. Revista Brasileira de Terapia Intensiva [online]. 2019, v. 31, n. 3
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  • Westphal, Glauco Adrieno et al. Diretrizes para avaliação e validação do potencial doador de
    órgãos em morte encefálica. Revista Brasileira de Terapia Intensiva [online]. 2016, v. 28, n. 3
    [Acessado 21 Fevereiro 2022] , pp. 220-255. Disponível em: <https://doi.org/10.5935/0103-507X.20160049>. ISSN 1982-4335. https://doi.org/10.5935/0103-507X.20160049

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