Controle da miopia com atropina, lentes de contato gelatinosas ou ortoceratologia: os benefícios superam os riscos? 

O aumento da prevalência de miopia, em particular as altas miopias, está levando ao aumento dos casos de deficiência visual associada.

A prevalência global de miopia estimada no mundo é de 50% nos anos 2050 na ausência de medidas de intervenção efetivas. O aumento da prevalência de miopia, em particular as altas miopias, está levando ao aumento dos casos de deficiência visual associada a miopia. Dentre outras questões a maculopatia miópica é uma crescente causa de déficit visual. O início da maculopatia é mais precoce do que outras complicações, ocorrendo em torno da quinta década de vida. Na Europa e na China a perda visual por maculopatia miópica já é mais comum que as alterações oculares relacionadas ao diabetes.

Esses fatores estimularam o grande interesse mundial em diminuir a progressão da miopia, com tratamentos como a atropina, lentes oftálmicas, lentes de contato dual focus, lentes de contato multifocais e ortoceratologia (uso de lentes de contato durante o sono). O método preferido varia de país para país. A regulamentação tem seu papel, apesar da maioria dos tratamentos para controle de miopia nos Estados Unidos ser off-label. A lente MiSight (CooperVision) é aprovada para controle de miopia.

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Advogados do controle da miopia dizem não ser ético não oferecer o controle da miopia, enquanto profissionais de organizações como o Colégio de Optometristas do Reino Unido dizem não existir evidência suficiente para sustentar o uso massivo do controle da miopia. Muitos tem medo associado ao risco potencial de infecções oculares no uso de lentes de contato em crianças. Será que os benefícios de reduzir a progressão da miopia justificam os riscos potenciais associados aos tratamentos? Toda análise risco benefício deve considerar uma população específica ou um indivíduo específico. Um artigo publicado no dia 4 de maio de 2021 na Ophthalmology analisa os riscos X benefícios dos tratamento de controle de miopia. Nem todo paciente com fator de risco para uma condição irá desenvolver a condição, portanto o número de pacientes necessário para tratar (NNT) pode ser muito alto em determinada condição e é recíproco em relação a redução de risco absoluta (ARR).

Exemplo: Ocular Hypertension Treatment Study (OHTS) 

Probabilidade cumulativa em 5 anos de desenvolver glaucoma: 

Tratados: 4.4%

Não tratados: 9.5%

ARR = redução de risco de 5.1% 

NNT = 19.6

Necessário tratar 20 pacientes por 5 anos para prevenir 1 caso de Glaucoma. 

Diminuir a progressão de miopia em uma dioptria pode ser benéfico na diferença de -3 para -4 dioptrias, mas seria mais benéfico na diferença entre -7 e -8 já que a redução de risco absoluta é maior pois nessa faixa ocorrem as maiores complicações relacionadas a miopia. O NNT é menor em altos míopes. O risco benefício deve considerar todos os elementos, como a efetividade da intervenção na diminuição da progressão da miopia, o risco de perda visual associada a miopia, o valor da miopia e os riscos específicos da modalidade de tratamento. Outra questão é que as complicações do tratamento da miopia ocorrem por vezes muitas décadas antes das causas de déficit visual associado a miopia.

Controle da miopia com atropina, lentes de contato gelatinosas ou ortoceratologia: os benefícios superam os riscos? 

Riscos e efeitos colaterais do controle da miopia

  1. Óculos bifocais, progressivos ou com design óptico inovador: São usados há 60 anos. O uso de lentes com design inovador não aumentou o risco no uso. O risco é baixo e contempla os riscos com acidentes com os óculos que podem estar associados a diminuição do campo visual periférico. Os óculos progressivos podem aumentar o risco de queda em 2x em adultos mas não se sabe se isso se aplica a crianças.
  2. Colírio de atropina: Agente antimuscarínico que causa dilatação da pupila e perda da acomodação. Os sintomas associados de fotofobia e dificuldades na visão de perto variam de acordo com a concentração. Isso pode ser diminuído por lentes fotocromáticas, multifocais ou ambas. No estudo ATOM2, entre crianças recebendo atropina 0,5%, 0,1% e 0,01% foi necessário óculos progressivos fotocromáticos em 70%, 61% e 6% respectivamente. No estudo LAMP com baixas doses de atropina a necessidade de lentes progressivas ou fotocromáticas não variou entre as 400 crianças que receberam concentrações de 0,01, 0,025 e 0,05% ou as que receberam placebo. Entre 30 e 40% necessitaram de óculos fotocromáticos incluindo placebo. O principal efeito colateral nos trials foi conjuntivite alérgica que ocorreu em 3-7% das crianças em cada braço, inclusive naqueles que receberam placebo no estudo LAMP, sugerindo que o conservante ou outro excipiente das soluções possa ser o causador. Os efeitos sistêmicos da atropina são bem documentados e incluem pele e boca seca, cansaço, irritabilidade ou delirium, taquicardia e flush Um número grande de trials que utilizaram atropina para controle de miopia ou para tratamento de ambliopia envolvendo centenas de crianças não relataram efeitos adversos sistêmicos com o uso de atropina tópica. Não foram discutidos os riscos associados ao aumento da luz na retina associada a midríase, se haveria um aumento da chance de desenvolver degeneração macular, mas essa continua sendo uma possibilidade teórica. Esse risco teórico poderia ser mitigado pelo fato da miopia ser um fator protetor para a degeneração macular relacionada a idade possivelmente por termos um olho maior. Existiria também uma teoria de que se poderia induzir uma presbiopia precoce devido a cicloplegia parcial prolongada mas são apenas relatos anedóticos. Uma revisão de 7 anos em Taiwan, onde a atropina foi utilizada por anos, não teve nenhum relato relacionado a esses efeitos colaterais. Com certeza é uma área em que mais estudos são necessários mas o risco de déficit visual associado a atropina tópica, particularmente em baixas concentrações, parece ser muito baixo. A prescrição de óculos fotocromáticos ou lentes gelatinosas pode ser necessária em altas concentrações.
  3. Lentes de contato gelatinosas: Eventos inflamatórios podem envolver a córnea, conjuntiva e tecidos periorbitários os eventos infiltrativos corneanos incluindo a ceratite, o olho vermelho associado ao uso de lentes de contato e as úlceras periféricas ocorrem numa taxa entre 300 e 400 casos a cada 10 mil pacientes ano em adultos. Não são considerados ameaçadores da visão e são manejados com a suspensão do uso de lentes de contato. A ceratite infecciosa é menos comum com uma incidência em torno de 20 a cada 10 mil pacientes ano em adultos utilizando lentes durante o dia e a noite e entre 2 e 4 a cada 10 mil utilizando as lentes durante o dia. Independente da incidência, menos de 15% dos casos de ceratite microbiana resultam em perda visual. Em relação ao uso de lentes de contato gelatinosas para controle da miopia três variáveis importantes influenciam no risco de eventos infiltrativos corneanos e ceratite microbiana que são o armazenamento o material e a idade do paciente. Muitas lentes de contato desenhadas para controle de miopia, mas não todas, são de descarte diário. O benefício de eliminar o armazenamento das lentes como um fator de risco é importante. Existe uma grande associação de infecção com higiene pobre do estojo e uso incorreto das soluções de limpeza, o que é reduzido utilizando se lentes de descarte diário (ou uso único). Além disso o material das lentes foi muito discutido nos últimos 20 anos. O silicone hidrogel permite maior transmissão de oxigênio que o hidrogel. O terceiro ponto é a idade, um fator de risco não linear para eventos adversos. Um estudo retrospectivo mostrou que o risco de eventos infiltrativos aumentaria de forma não linear em pacientes em torno de 21 anos e depois diminui novamente, com pico entre 15 e 25 anos. Os eventos infiltrativos são menores em crianças de 8 a 12 anos (97 em 10000) do que em 13 a 17 anos (335 em 10000). A incidência de ceratite microbiana a cada 10 mil pacientes ano variou muito de acordo com a idade: 0 entre 8 e 12 anos, 15 entre 13 e 17 anos, 33 entre 18 e 25 anos e 7 entre 26 e 33 anos. A baixa taxa de eventos infiltrativos em pacientes de 8 a 12 anos nesse estudo retrospectivo usando lentes de contato gelatinosas é suportado por outros estudos prospectivos. Uma revisão de 9 estudos prospectivos com 1.800 pacientes ano de usuários entre 7 e 19 anos com a maioria dos estudos com pelo menos um ano de duração demonstrou 14 eventos infiltrativos que representaram uma incidência de 78 a cada 10 mil pacientes ano. Nenhum dos estudos reportou nenhum caso de ceratite microbiana. Outro estudo retrospectivo com 800 pacientes ano também não encontrou casos de ceratite microbiana. Um trial recente com aproximadamente 900 pacientes ano de uso em crianças reportou um caso presumido de ceratite infecciosa. Em resumo, a incidência de eventos infiltrativos e ceratite microbiana em crianças de 12 anos ou menos (nas quais o controle de miopia deve ser iniciado) não é maior que a observada em adultos. É ainda bem menor que o pico observado entre 18 e 25 anos. Pode ser que o envolvimento dos pais em crianças menores nos cuidados tenha grande importância e que o fato desse já ser um grupo pré-selecionado de forma mais criteriosa ao uso de lentes de contato diminua também os riscos.
  4. Ortoceratologia: Os estudos relacionados a efeitos adversos são mais escassos. Mesmo nos estudos epidemiológicos de larga escala não foram reportados casos de ceratite microbiana em usuários de ortoceratologia. Isso reflete uma proporção muito pequena ainda de pacientes utilizando essa modalidade de tratamento, mais do que o baixo risco. A ortoceratologia ainda representa 28% de todas as lentes de contato rígidas prescritas entre menores de 2005 a 2009.Nos EUA, as lentes de contato rígidas representam 11% das adaptações em menores de 15 anos. Estudos recentes mostram um pequeno aumento nas adaptações de ortoceratologia a partir de 2017, mas ainda representando em torno de 1% de todas as adaptações. Em 2008 a Academia Americana de Oftalmologia publicou sobre a segurança da ortoceratologia no controle da miopia. Existem 38 relatos de caso ou séries de caso não comparativas, representando mais de 100 casos de ceratite infecciosa. Essa revisão porém não é capaz de identificar a incidência de complicações associadas ao uso noturno da ortoceratologia ou os fatores de risco para várias complicações. A única estimativa vem de um estudo retrospectivo aprovado pelo FDA. 200 adaptadores de lentes de contato foram selecionados randomicamente e disponibilizaram data de adaptação, idade do paciente e duração do follow-up de 50 pacientes adaptados. Foram questionados se esses pacientes experimentaram episódios de dor ocular que necessitou de visita ao médico. Os pacientes foram procurados e foi investigado o tratamento com outros médicos. Foram avaliados 1.317 pacientes representando 2.599 pacientes ano de uso. Foram 50 episódios de dor ocular, 8 com evento infiltrativo (6 crianças). Desses casos 2 foram julgados como ceratite microbiana. A incidência de ceratite microbiana foi de 14 por 10 mil pacientes ano em crianças. Resumidamente a incidência em crianças foi similar a modalidade de uso estendido de lentes gelatinosas em adultos.

Saiba mais: Academia Americana de Oftalmologia alerta para riscos de lente de contato sem prescrição

Considerando essas evidências, o risco de perda visual com atropina e óculos é considerado nulo e a maioria do risco estaria associado ao uso de lentes de contato. O uso noturno da ortoceratologia carrega em crianças um risco similar ao uso de lentes de forma estendida (diurno e noturno) em adultos. Já o uso de lentes gelatinosas de descarte diário durante o dia no caso das lentes MiSight parece mitigar o risco.

Benefícios potenciais de se controlar a miopia:

  • melhor acuidade visual não corrigida e corrigida;
  • melhor qualidade de vida relacionada a visão;
  • menor dependência da correção de grau;
  • miopias mais altas, córneas mais finas, poderiam tornar o paciente um candidato pior para cirurgia refrativa pelo risco aumentado de ectasia pós-cirúrgica;
  • O principal: redução do risco de doenças oculares que levam a cegueira!

Miopia e o risco de alterações que levam a cegueira

  1. Maculopatia miópica: Em todos os estudos a prevalência de maculopatia miópica aumenta exponencialmente em níveis maiores de miopia. Cada dioptria de miopia aumenta a prevalência de maculopatia em 58%. Desta forma, controlar a miopia em 1D já reduz o desenvolvimento de maculopatia em 37%. Apesar do risco ser maior em um míope de -6 do que num míope de -3, diminuir a progressão em 1 dioptria durante a infância pode diminuir o risco em 37% em ambos. 39% dos pacientes com maculopatia tem visão igual ou pior que 20/40 de visão. O risco de perda visual também é dependente da idade, erro refrativo e grau da maculopatia miópica;
  2. Catarata: A associação entre miopia e catarata subcapsular posterior é Cada dioptria a mais de miopia aumenta a prevalência de catarata subcapsular posterior em 21%;
  3. Descolamento de retina: Enquanto a incidência global de DR é de 0,01% ao ano, três estudos já estabeleceram a incidência aumentada de DR em miopia. A cada dioptria maior de miopia, a incidência de DR aumenta em 30%;
  4. Glaucoma: Indivíduos com miopia tem aproximadamente duas vezes mais risco de desenvolver glaucoma de ângulo aberto. Cada dioptria a mais de miopia aumenta a prevalência de glaucoma em 20%. O comprimento axial maior é independentemente associado a maior prevalência de glaucoma. Cada milímetro a mais no comprimento axial está associado a prevalência de glaucoma 26% maior.

Tideman et al publicaram o maior estudo que relaciona miopia e déficit visual em geral analisando 15.404 adultos. O risco cumulativo de déficit visual aumenta entre 24 e 31% por dioptria de miopia aumentada. De acordo com esse estudo um míope de 3 dioptrias experimenta uma média de 4,42 anos de déficit visual enquanto um míope de 8 dioptrias teria em média 9,55 anos de déficit visual. Controlar a miopia em um paciente destinado a ser -3 e deixá-lo com uma miopia de -2 pode diminuir em média 0,84 anos de déficit visual. No caso de tornar um míope com grau de -7 (que seria -8 caso não tratasse), salvaria 1,22 anos de déficit visual. A redução de miopia necessária para prevenir um ano de déficit visual é de 1,38 (no caso com -3 dioptrias presumidas) e de 0,82 (no caso com -8).

Comparando os riscos e benefícios do controle da miopia 

O estudos clínicos sugerem que 1 dioptria de controle é possível já que houve 0,73 dioptrias de redução na progressão no tratamento de 3 anos com as lentes MiSight, 0,71 D de redução com três anos de óculos bifocais executivos e 0,82 dioptrias de redução com dois anos de atropina 0.01%. Esses resultados sugerem que a redução de 1 dioptria é possível e que talvez devamos realmente pensar no tratamento por 5 anos. O modelo acima demonstra que uma dioptria de controle pode prevenir entre 0.74 e 1.22 anos (9 a 15 meses) de déficit visual em miopias entre -3 e -8. Comparando se os anos de déficit visual que podem estar associados ao uso de lentes de contato, principalmente associados a ceratite microbiana, que representaria 0,0053 a 0,1323 anos por paciente, conclui se que o benefício do controle de miopia de longe é superior aos riscos do uso de lentes de contato por 5 anos para atingir 1 dioptria de controle da miopia. Mesmo na maior incidência dos estudos de ceratite microbiana (25 a cada 10 mil), 38 pacientes precisam ser expostos para induzir 5 anos de déficit visual. Em contraste apenas 4,11 a 6,75 pacientes precisam ter seu nível de miopia reduzido em 1 dioptria para prevenir 5 anos de déficit visual. Uma consideração importante é que os valores relacionados a deficiência visual pela miopia são bilaterais, enquanto os estimados para a perda de visão associada ao uso de lentes de contato são monoculares e correspondem a perda de duas linhas de acuidade visual. Casos bilaterais são muito raros.

O modelo do artigo sugere que os benefícios potenciais do tratamento de controle da miopia superam os riscos.

Referências bibliográficas:

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