Covid-19: como a identificação de fenótipos pode ajudar no manejo da doença?

Um ponto bastante preocupante da pandemia de Covid-19 diz respeito à ventilação mecânica destes pacientes. Como identificar o tipo de fenótipo pode ajudar?

Um ponto bastante preocupante da pandemia de Covid-19 diz respeito à ventilação mecânica destes pacientes. Recentemente, o Surviving Sepsis Campaign recomendou que pacientes com pneumonia por Covid-19 sejam tratados de maneira semelhante a outros pacientes com insuficiência respiratória aguda na UTI.

Porém, apesar de a pneumonia pelo novo coronavírus cumprir critérios da definição de Berlim para SDRA, apresenta-se com algumas particularidades, como hipoxemia grave frequentemente associada com complacência do sistema respiratório quase normal. Essa combinação quase nunca é vista em outras formas de SDRA grave.

Os pacientes com Covid-19 gravemente hipoxêmicos, apesar de compartilharem a mesma etiologia, podem se apresentar de maneira bastante diferente uma da outra: respiração normalmente (hipoxemia “silenciosa”) ou notavelmente dispneica; bastante sensível ao óxido nítrico ou não; hipocapnia profunda ou normo/hipercápnico; e responsivo à posição de prona ou não. Ficou evidente que a mesma doença tem várias faces.

Um editorial publicado Intensive Care Medicine tentou nos ajudar no raciocínio para o manejo destes casos e vamos compartilhar os principais pontos da publicação neste post.

médico de terapia intensiva segurando prancheta antes de atender paciente com Covid-19

Fenótipos da Covid-19

Segundo os autores, com base em observação, puderam estabelecer diferentes padrões de Covid-19 na emergência, que dependem de três fatores:

  1. A gravidade da infecção, a resposta do hospedeiro, a reserva fisiológica e comorbidades;
  2. A capacidade de resposta ventilatória do paciente a hipoxemia;
  3. O tempo decorrido entre o início da doença e a observação no hospital.

A interação entre esses fatores leva ao desenvolvimento de um espectro de doenças relacionadas ao tempo dentro de dois “fenótipos” primários: tipo L e tipo H.

Leia também: Coronavírus: sequência rápida ou sequência atrasada na intubação?

Entendendo o tipo L

Caracteriza-se por baixa elastância (ou seja, alta complacência), baixa ventilação/perfusão, baixo peso pulmonar e baixa recrutabilidade.

Vamos entender melhor cada característica:

  • Elastância baixa: a complacência quase normal indica que a quantidade de gás no pulmão é quase normal;
  • Baixa ventilação/perfusão (VA/Q): como o volume de gás é quase normal, a hipoxemia pode ser melhor explicada pela perda de regulação da perfusão e pela perda da vasoconstricção por hipóxia. Portanto, nesta fase, a pressão da artéria pulmonar deve estar próxima normal;
  • Baixo peso pulmonar: apenas densidades de vidro fosco estão presentes na tomografia computadorizada, localizadas principalmente subpleuralmente e ao longo das fissuras pulmonares. Consequentemente, o peso pulmonar é apenas moderadamente aumentado;
  • Baixa capacidade de recrutamento pulmonar: a quantidade de tecido não aerado é muito baixa e, consequentemente, a capacidade de recrutamento é baixa.

Para exemplificar melhor, o autor fez a seguinte cadeia de eventos:

 

A transição entre os fenótipos

Os pacientes do tipo L podem permanecer inalterados por um período e depois melhorar ou piorar a possível característica que determina a evolução da doença.

Um fator que contribui para a piora, além da gravidade da própria doença, é a profundidade da pressão intratorácica negativa associada ao aumento do volume corrente em respiração espontânea. A equação é a seguinte:

Pressão intratorácica negativa + aumento da permeabilidade pulmonar 

=

Edema intersticial pulmonar

Com o tempo, o aumento do edema aumenta o peso pulmonar, a pressão sobreposta e as atelectasias dependentes. Quando o edema pulmonar atinge uma certa magnitude, o volume de gás no pulmão diminui e o volume corrente gerado para uma dada pressão inspiratória diminui.

Nesta fase, aparece a dispneia, que leva ao agravamento da Lesão Pulmonar Autoinfligida pelo Paciente (P-SILI). Então começamos a ver a transição do tipo L para o tipo H, que pode ser devido à evolução da pneumonia Covid-19, por um lado, e à lesão atribuível à alta tensão de ventilação por outro.

Entendendo o tipo H

Tipo H, caracterizado por elevada elasticidade, alto shunt da direita para a esquerda, alto peso pulmonar e alta recrutabilidade.

Esclarecendo as características:

  • Elastância alta: a diminuição do volume de gás devido ao aumento do edema é responsável pelo aumento elastância pulmonar;
  • Alto shunt da direita para a esquerda: isso se deve à fração do débito cardíaco que perfunde o fluxo não aerado de tecido que se desenvolve nas regiões dependentes do pulmão devido ao aumento do edema e pressão sobreposta;
  • Peso pulmonar alto: a análise quantitativa da tomografia computadorizada mostra um aumento notável no peso do pulmão (> 1,5 kg), na ordem de magnitude da SDRA grave;
  • Recrutabilidade pulmonar alta: a quantidade aumentada de tecido não aerado está associada, como em casos graves SDRA, com maior capacidade de recrutamento.

O padrão tipo H se encaixa perfeitamente nos critérios severos da SDRA: hipoxemia, infiltrados bilaterais, diminuição da complacência do sistema respiratório, aumento do peso pulmonar e possibilidade de recrutamento.

Veja também: Comportamento clínico de pacientes críticos com Covid-19

Resumindo os fenótipos

O tipo L é um padrão em vidro fosco, com pouca ação gravitacional, que predomina nas fases iniciais da doença. Por isso, a complacência é boa, não precisa de PEEP tão alta, não responde ao recrutamento e, às vezes, nem à prona. A hipoxemia é marcante e é provável que haja grande componente de shuntagem. Com o tempo, a forma clássica H, de SDRA, aparece, com padrão pior nas bases/dorso pulmonar, com boa resposta à pronação e PEEP alta.

Como tratar os diferentes fenótipos?

Agora que já entendemos cada modelo, o autor nos propõe os tratamentos oferecidos aos tipos L e H.

  1. O primeiro passo para reverter a hipoxemia é através do aumento da FiO2 para o qual o paciente do tipo L responder bem, particularmente se ainda não estiver com dispneia.
  2. Nos pacientes do tipo L com dispneia, existem várias opções não invasivas: cânula de alto fluxo nasal (HFNC), pressão positiva contínua nas vias aéreas (CPAP) ou ventilação não invasiva (VNI). Nesta fase, a medida (ou estimativa) do balanço da pressão esofágica inspiratória é crucial. A PEEP alta, em alguns pacientes, pode diminuir as oscilações de pressão pleural e interromper o ciclo vicioso que agrava a lesão pulmonar. Entretanto, alta PEEP em pacientes com complacência normal pode ter efeitos prejudiciais na hemodinâmica. Em qualquer caso, as opções não invasivas são questionáveis, pois podem estar associadas a altas taxas de falhas e intubação tardia, em uma doença que normalmente dura várias semanas.
  3. A magnitude das oscilações das pressões pleurais inspiratórias pode determinar a transição do tipo L para o fenótipo tipo H. À medida que as oscilações da pressão esofágica aumentam acima de 15 cmH2O, o risco de lesão pulmonar aumenta e portanto, a intubação deve ser realizada o mais rápido possível.
  4. Uma vez intubados e profundamente sedados, os pacientes do tipo L, se hipercapnicários, podem ser ventilados com volumes superiores a 6 mL/kg (até 8-9 mL/kg). Como a alta complacência resulta em tolerabilidade à tensão sem o risco de VILI (Ventilator-Induced Lung Injury). A posição prona deve ser usada apenas como uma manobra de resgate, as condições pulmonares são “muito boas” para a efetividade da posição prona, que se baseia em melhor redistribuição de estresse e tensão. A PEEP deve ser reduzida para 8-10 cmH2O, dada a que a recrutabilidade é baixa e o risco de falha hemodinâmica aumenta em níveis mais altos. A intubação precoce pode evitar a transição para o fenótipo tipo H.
  5. Pacientes do tipo H, devem ser tratados como SDRA grave, incluindo PEEP mais alta, se compatível com hemodinâmica, posição prona e suporte extracorpóreo.

Take-home message

No manejo de casos de Covid-19, é importante identificarmos os pacientes tipo L e tipo H e a tomografia computadorizada pode ajudar bastante nesta questão. Se não estiver disponível, sinais implícitos, como, por exemplo, a elastância do sistema respiratório e a recrutabilidade, podem ser utilizados.

No início da doença, use mais FiO2 e limite a driving pressure a 15 cmH2O. Se evoluir com padrão H, aumente a PEEP e prone o paciente – mas sempre de olho para manter ventilação protetora!

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Referências bibliográficas:

  • Gattinoni L. et al. COVID-19 pneumonia: different respiratory treatment for different
    phenotypes? (2020) Intensive Care Medicine; DOI: 10.1007/s00134-020-06033-2
  • Beloncle F et al. Accuracy of P0.1 measurements performed by ICU ventilators: a bench study. Annals of Intensive Care volume 9, Article number: 104 (2019)

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