Covid-19 em imunossuprimidos — parte II: como a doença age em indivíduos com HIV?

Outra forma de imunossupressão prevalente é a infecção pelo HIV, e apesar da escassez de dados sobre a associação à Covid-19, este é um fator de risco.

Outra forma de imunossupressão prevalente é a infecção pelo vírus HIV. Diferente de indivíduos em uso de drogas imunossupressoras, pessoas vivendo com HIV podem apresentar imunossupressão pela destruição de linfócitos T-CD4, comprometendo a capacidade de resposta do sistema imune a diferentes patógenos. Além disso, indivíduos infectados parecem apresentar um estado de inflamação crônica.

O advento da terapia antirretroviral (TARV) de alta potência mudou a história natural da infecção. O tratamento adequado e regular permite restauração da contagem de linfócitos T-CD4 e grande aumento na expectativa de vida. Entretanto, pacientes com imunossupressão grave e que iniciam tratamento de forma tardia, podem, mesmo em uso regular de medicação, não apresentar recuperação significativa de células T-CD4.

Leia também: Covid-19 em imunossuprimidos – parte I: como a doença age em receptores de transplante de órgãos?

Infecção pelo vírus HIV é um fator de risco para Covid-19

Covid-19 em pacientes com HIV

Existem dados escassos sobre a associação de Covid-19 e HIV na literatura, embora pessoas convivendo com HIV sejam frequentemente colocadas como pertencendo ao grupo de indivíduos com maior risco de desenvolvimento de doença grave por SARS-CoV-2. Ao mesmo tempo em que o estado de inflamação e imunossupressão nessa população levam à preocupação em relação a piores desfechos, a ação in vitro de alguns antirretrovirais levou à hipótese de que pessoas em uso de TARV poderiam ter algum nível de proteção contra a infecção.

Alguns estudos de coorte procuram avaliar os desfechos clínicos e características da Covid-19 em pacientes com infecção pelo HIV.

Estudo com pacientes com HIV e Covid-19 hospitalizados

O primeiro estudo avalia os dados de uma coorte de pacientes com HIV hospitalizados com Covid-19, comparando-os com controles não infectados pelo HIV que também foram hospitalizados com Covid-19. Foram identificados 88 pacientes com infecção pelo HIV. A média de idade foi de 61 anos e, entre os pacientes HIV positivos, a proporção de tabagistas e de indivíduos com DPOC, cirrose ou neoplasia foi maior do que entre os controles. A gravidade da apresentação de Covid-19 foi semelhante entre os pacientes HIV e seus controles. A maior parte dos pacientes apresentava carga viral indetectável e contagem de linfócitos T-CD4 > 200 células/mm³.

Não houve diferença significativa entre os grupos em relação à necessidade de admissão em CTI. Desfechos desfavoráveis foram comuns, mas proporcionalmente semelhantes aos do grupo controle: 18% necessitaram de VM no grupo com HIV vs. 23% no grupo controle e 21% vs. 20% de mortalidade, respectivamente. Após ajuste de variáveis demográficas, presença de DPOC, tabagismo e valores basais de ferritina e leucograma, a presença de infecção pelo HIV não esteve associada a maior risco de morte.

Comparando os pacientes HIV que evoluíram para óbito com os que sobreviveram, os únicos fatores com diferença estatística encontrados foram ser receptor de transplante de órgão sólido como fator de risco e, como fator protetor, o uso de inibidores de transcriptase reversa análogos de nucleosídeo.

Saiba mais: Coronavírus e pacientes hematológicos: o que precisamos saber

Estudo em centro espanhol

Vizcarra et al. (2020), por sua vez, publicaram na JAMA os dados referentes a uma coorte prospectiva de pacientes HIV em um centro de referência espanhol. Dos 2.873 pacientes com infecção por HIV acompanhados no hospital em questão, 51 foram diagnosticados com Covid-19, resultando em uma taxa de infecção de 1,8%. Como, de acordo com a política de testagem vigente na época do estudo, a pesquisa de SARS-CoV-2 por meio de RT-PCR não foi realizada em casos leves, 69% dos casos foram laboratorialmente confirmados, o que resultou em uma taxa de infecção confirmada de 1,2%, enquanto 31% permaneceram como casos suspeitos. A proporção considerável de casos sem confirmação laboratorial impediu uma comparação fidedigna com as taxas de infecção da população geral.

A média de idade dos pacientes com confirmação laboratorial foi discretamente menor do que na população geral (53,6 anos vs. 59,7 anos, respectivamente) e a maioria dos casos ocorreu em indivíduos entre 50 e 59 anos de idade.

Quando comparados com os pacientes HIV não infectados por SARS-CoV-2, os pacientes do centro com diagnóstico de Covid-19 não apresentavam diferenças significativas em relação a idade, nadir de células CD4, proporção de indivíduos em uso de TARV ou esquema de TARV utilizado. Entretanto, os pacientes que apresentaram Covid-19 tinham maior IMC médio e maior prevalência de doenças crônicas concomitantes.

Apresentação

Os sintomas de apresentação mais comuns foram tosse seca, febre, dispneia e fadiga, com uma duração média de 6 dias de sintomas até procura por atendimento médico. A maioria dos pacientes (55%) foi hospitalizada, enquanto 45% foram tratados de forma ambulatorial. Setenta e cinco por cento dos pacientes foram classificados como tendo doença leve ou moderada e 25%, como tendo doença grave, definida como presença de febre ou infecção respiratória suspeita com FR > 30 irpm, sO2 ≤ 93% em ar ambiente ou SARA. Não houve diferença nas características clínicas, tratamentos ou desfechos clínicos entre pacientes com contagem de células T-CD4 maiores ou menores do que 200 células/mm³.

Seguimento e Mortalidade

Durante o acompanhamento, 6 pacientes (12%) tornaram-se críticos, necessitando de admissão em CTI, com 5 necessitando de intubação e ventilação mecânica invasiva. Os autores destacam que, desses 6 pacientes, 4 apresentaram nadir de células CD4 < 200 células/mm³ e 2 tinham mensuração recente de linfócitos T-CD4 na mesma faixa.

A taxa de mortalidade geral foi de 4%, mais baixa do que a encontrada na população geral espanhola à época, porém comparativamente mais elevada quando somente a faixa etária entre 50 e 59 anos foi considerada. Entre os doentes críticos, a taxa de mortalidade foi de 33%. Não houve diferença significativa em relação a idade, sexo, presença de comorbidades, esquema de TARV ou tempo de infecção pelo HIV entre os que apresentaram doença crítica e os demais. Os pacientes que morreram apresentavam carga viral indetectável e contagem de células CD4 de 137 e 636 células/mm³.

Revisão sistemática

Por fim, uma revisão sistemática publicada por Cooper et al. (2020), após pesquisa na literatura, incluiu 8 artigos que avaliavam a relação da infecção por HIV e o curso da Covid-19. Em relação a pacientes com HIV bem controlado, i.e., pacientes com carga viral indetectável e níveis normais de linfócitos T-CD4, não houve diferença na apresentação clínica da infecção por SARS-CoV-2, com a presença de sintomas típicos como tosse, febre, dispneia e fadiga. A maioria dos estudos avaliados não mostrou diferença nas taxas de mortalidade por Covid-19 entre pacientes HIV bem controlados e a população geral. Já em relação a pacientes com contagem de CD4 < 200 células/mm³, os dados dos estudos incluídos na revisão não puderam esclarecer de forma inequívoca se há ou não maior propensão dessa população para o desenvolvimento de piores desfechos clínicos

Mensagens práticas:

  • Não parece haver diferenças significativas entre as características e desfechos clínicos da Covid-19 entre indivíduos infectados ou não pelo vírus HIV, especialmente nos que apresentam bom controle imunovirológico.
  • A apresentação clínica mais frequente nessa população foi com sintomas típicos de Covid-19, semelhante à população geral.
  • Faltam dados em relação ao prognóstico de Covid-19 em pacientes com infecção não controlada pelo HIV.

Referências bibliográficas:

  • Sigel K, Swartz T, Golden E, et al. Covid-19 and People with HIV Infection: Outcomes for Hospitalized Patients in New York City. Clin Infect Dis. 2020 Jun 28;ciaa880. doi: 1093/cid/ciaa880
  • Vizcarra P, Pérez-Elías MJ, Quereda C, Moreno A, Vivancos MJ, Dronda F, Casado JL. Description of Covid-19 in HVI-infected individuals: a single-centre, prospective cohort. JAMA. 2020 May 28. org/10.1016/S2352-3018(20)30164-8
  • Cooper TJ, Woodward BL, Alom S, Harky A. Coronavirus disease 2019 (Covid-19) outcomes in HIV/AIDS patients: a systematic review. HIV Medicine. 2020. doi: 10.1111/hiv.12911

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