Covid-19 na infância: por que a maioria das crianças infectadas são oligoassintomáticas?  

A infecção pela Covid-19 na infância tem se comportado de maneira distinta, com um número menor de infectados e a maioria assintomática.

A infecção pelo vírus SARS-CoV-2 na infância tem se comportado de maneira distinta da observada em adultos. O número de crianças acometidas é menor e, além disso, a maioria das crianças permanece assintomática ou desenvolve sintomas brandos. Descobrir a causa destas diferenças tem motivado pesquisadores em todo mundo. O artigo Coranavirus Disease 2019: Understanding Immunopathogenesis Is the “Holy Grail” to Explain Why Children Have Less Severe Acute Disease sugere que, para respondermos essa questão, precisamos compreender a imunopatogênese da doença pelo coronavírus de 2019 (Covid-19). Trata-se de uma carta ao editor da revista Pediatric Critical Care Medicine com pontuações relevantes referentes a uma publicação anterior — Coronavirus Disease 2019 in Critically Ill Children: A Narrative Review of the Literature, de Ong e colaboradores.

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Pesquisadores tentam entender os motivos do comportamento da Covid-19 na infância, com muitas crianças senso assintomáticas

Entendendo melhor a revisão bibliográfica de Ong e colaboradores

Nesse trabalho, Ong e colaboradores apresentaram possíveis justificativas para as diferenças observadas nas manifestações clínicas de adultos e crianças e trouxeram recomendações para o manejo de pacientes pediátricos graves com necessidade de internação em Unidade de Terapia Intensiva (UTI).

De acordo com os autores da revisão bibliográfica, a gravidade da Covid-19 em adultos está relacionada a uma desregulação imune que culmina com a chamada “tempestade de citocinas”. Linfopenia, aumento de neutrófilos e elevados níveis de citocinas foram observados em adultos que necessitaram de internação em UTI. Por outro lado, as crianças não parecem apresentar tendência semelhante à desregulação imune: marcadores inflamatórios (PCR e D-dímero) foram mais baixos e linfopenia foi encontrada em somente 3,5% das crianças internadas, contrapondo os 70,3% de adultos hospitalizados que apresentaram linfopenia.

Ong e colaboradores defenderam que as crianças parecem ser menos susceptíveis ao SARS-CoV-2 como consequência da expressão diferenciada dos seus receptores da enzima conversora de angiotensina-2 (ACE2). Os receptores ACE2 são utilizados pelo SARS-CoV-2 para penetrar nas células alvo em humanos. No entanto, diferentemente de trabalhos anteriores que demonstraram menor expressão destes receptores na infância, estes autores apresentaram outras possíveis explicações:

  • A presença destes receptores como fator protetor para a lesão pulmonar;
  • A redução da expressão dos ACE2 com a idade, evidência demonstrada em modelos experimentais em pulmão de rato.

Os autores reconhecem, entretanto, que a variação da expressão e atividade dos ACE2 com a idade e seu impacto na doença são importantes lacunas de conhecimento na compreensão da Covid-19 na infância. Além disso, também destacam a importância da coinfecção do SARS-CoV-2 na infância com outros patógenos respiratórios como Influenza A/B, vírus sincicial respiratório e Micoplasma.

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Contribuições da carta ao editor de Lanziotti e colaboradores

Os autores da carta ao editor reforçam que, embora os dados trazidos pela revisão sejam importantes para a compreensão das diferenças observadas entre crianças e adultos infectados, é de extrema importância entender o motivo pelo qual crianças apresentam menos linfopenia, neutrofilia, marcadores inflamatórios mais baixos e menor desregulação imune. Uma possível explicação seria a potenciação dependente de anticorpos (do inglês antibody depedent enhancement, sigla ADE).

Nesta resposta imunológica, os anticorpos formam um complexo com o vírus, facilitando e intensificando sua entrada na célula e perpetuando inflamação, tempestade de citocinas e linfopenia. Este mecanismo imunopatogênico é mediado por células B de memória e anticorpos pré-existentes e é bem descrito em outras doenças como a dengue. Apesar da proteína de superfície do SARS-CoV-2 apresentar pouca homologia com outros coronavírus humanos envolvidos em endemias anteriores, existem outras proteínas virais que podem apresentar elevada semelhança. Tal fato torna possível que indivíduos tenham altos títulos de anticorpos capazes de formar os complexos imunes com o SARS-CoV-2.

A ADE poderia explicar o maior nível de marcadores inflamatórios e a linfopenia nos casos mais graves. Os autores citam um trabalho onde foram avaliados 200 pacientes com doença respiratória por coronavírus humanos entre 2009 e 2013 com a observação de que títulos de anticorpos anticoronavírus são maiores em adultos mais velhos. Curiosamente, estes são os indivíduos que evoluem com maior gravidade quando infectados pelo SARS-CoV-2.

Reação cruzada

Os autores sugerem, então, que altos títulos de anticorpos anticoronavírus podem desempenhar reação cruzada na resposta ao SARS-CoV-2, aumentando o risco de doença grave. A ADE também auxilia a compreensão da Covid-19 na infância. Segundo os autores, os quadros mais brandos observados em crianças poderiam ser justificados pela sua imunidade adaptativa imatura, o que dificultaria o desenvolvimento da ADE. Por outro lado, como poderiam ser explicados os quadros mais graves observados em menores de 1 ano quando comparados com crianças mais velhas? Neste caso, é possível que os anticorpos maternos sejam os responsáveis pela ADE.

Outro argumento utilizado pelos autores para explicar a diferença entre adultos e crianças é a maior possibilidade de coinfecção com outros patógenos respiratórios observada na infância. Eles extrapolam a discussão ao sugerir que estes microrganismos, quando presentes em associação com o SARS-CoV-2, poderiam prejudicar a sua proliferação. Nesse caso, a infecção cursaria com menor carga viral e consequente menor severidade nesta faixa etária.

Mensagem final

Embora mais estudos sejam necessários, comparar a resposta imune de crianças e adultos parece ser o caminho para elucidar a imunopatogênese da infecção pelo SARS-CoV-2. Esta compreensão é de suma importância para identificar um tratamento adequado, assim como para desenvolver uma vacina altamente imunogênica e com baixo risco de ADE.

Referências bibliográficas

  • Lanziotti VS, De Souza DC; Marques ETA. Coronavirus Disease 2019: Understanding Immunopathogenesis Is the “Holy Grail” to Explain Why Children Have Less Severe Acute Disease. Pediatric Critical Care Medicine, v. Online First, 2020. Disponível em: <https://journals.lww.com/pccmjournal/Citation/9000/Coronavirus_Disease_2019__Understanding.97999.aspx>. Acesso em: 24 jul. 2020.
  • Ong JSM, Tosoni A; Kim Y, et al. Coronavirus Disease 2019 in Critically Ill Children: A Narrative Review of the Literature*. Pediatric Critical Care Medicine. 2020;21(7):662–666.
  • Bunyavanich S, Do A, Vicencio A. Nasal Gene Expression of Angiotensin-Converting Enzyme 2 in Children and Adults. JAMA, 2020.
  • Gorse GJ, Donovan MM, Patel GB. Antibodies to coronaviruses are higher in older compared with younger adults and binding antibodies are more sensitive than neutralizing antibodies in identifying coronavirus-associated illnesses. Journal of Medical Virology. 2020;92(5):512–517.
  • Huang C; Wang Y; LI X; et al. Clinical features of patients infected with 2019 novel coronavirus in Wuhan, China. The Lancet. 2020;395(10223):497–506.

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