Crise álgica na doença falciforme: recomendações para manejo na emergência

Neste artigo vamos focar no manejo da principal complicação vaso-oclusiva apresentada por esses pacientes, a crise álgica. Saiba mais.

Hoje é o Dia Nacional de Luta pelos Direitos das Pessoas com Doença Falciforme, realizado todo 27/10 como forma de chamar a atenção para essa importante enfermidade que afeta aproximadamente 60 mil pessoas no nosso país. A doença falciforme tem base genética e é hereditária, ou seja, passa de pais para filhos.

No presente artigo, vamos focar no manejo da principal complicação vaso-oclusiva apresentada por esses pacientes e que se transforma, muitas vezes, em um pesadelo para o médico plantonista dos serviços de Urgência e Emergência: a crise álgica.

crise álgica

Entendendo o problema

Os pacientes com doença falciforme tendem a apresentar diferentes níveis de complicações ao longo de suas vidas a depender da severidade da doença, ou seja, dos níveis de Hemoglobina S presentes na circulação. Portanto, grande parte dessas intercorrências caracterizam-se por “falcização” das hemácias na microcirculação e, por conseguinte, sintomas de hiperviscosidade e crises vaso-oclusivas periféricas e viscerais. Dessa forma, podemos entender a crise álgica como um sintoma isquêmico e de congestão venosa no local afetado levando a hipóxia tecidual e produção de ácido lático e radicais livres de O2. Essas crises podem ocorrer diversas vezes por ano e geralmente são associadas ao tempo frio, infecções, período pré-menstrual, problemas emocionais, gravidez, exercício físico extenuante ou desidratação.

O paciente no pronto atendimento

Em geral, esses pacientes procuram serviços de urgência e emergência devido a dores intensas que podem ser localizadas ou difusas, mais frequentemente referidas em membros inferiores e tórax. De acordo com o American College of Emergency Physicians (ACEP), o uso de opioides nesse grupo de pacientes mostrou-se estável entre os anos de 2008-2013, com taxa de mortalidade associada à superdosagem correspondendo a apenas 0,77% do total desta população. Esses dados nos mostram que na maioria das vezes a demanda por essas drogas entre os pacientes portadores de doença falciforme está mais associada a boas experiências em manejo da dor em quadros passados do que propriamente à adição ao medicamento. Logo, ter confiança no relato do paciente é essencial, uma vez que não existem sinais clínicos ou laboratoriais que confirmem a crise álgica. À primeira avaliação, o paciente deve passar por minucioso exame clínico a procura de sinais de alarme como hipotensão, febre (Temperatura axilar > 38ºC), taquicardia, taquipneia, hipoxemia, alterações do nível de consciência, convulsões ou cefaleia de padrão atípico. Tais alterações podem sugerir quadros mais graves que também fazem parte da história do paciente portador da doença, como síndromes torácicas agudas, tromboembolismo pulmonar, sequestro esplênico, acidentes vasculares encefálicos e quadros sépticos.

Uma radiografia de tórax em duas incidências (póstero-anterior e em perfil) deve ser solicitada em caso de hipoxemia, febre, dispneia, taquipneia, tosse ou dor torácica/dorso à procura de alterações radiológicas agudas (critério para síndrome torácica aguda). No caso de sinais/sintomas relacionados ao sistema nervoso central (SNC), a avaliação tomográfica de crânio pode ser imperativa para descartar acidentes vasculares encefálicos.

Quiz: Quadro de alergia em paciente pediátrica portadora de anemia falciforme

Abordando a crise álgica

É importante lembrarmos que a abordagem dos quadros de dor deve ser multidisciplinar, incluindo medidas não farmacológicas (como aquecer o membro ou levar o paciente para um lugar tranquilo – Recomendação condicional com baixo nível de certeza pela ASH 2020 levando em consideração o sistema GRADE de Medicina Baseada em Evidências). No entanto, é imperativo o início de analgesia nos primeiros 60’ da admissão e antimicrobianos na 1ª hora caso o paciente apresente sinais sépticos como disposto no tópico acima. Devemos nos lembrar também de solicitar uma avaliação laboratorial básica (hemograma, função renal, PCR, transaminases e bilirrubinas) à admissão para avaliação de piora da anemia ou outros sinais de disfunções orgânicas específicas. A comparação do grau de anemia deve ser sempre em relação aos níveis basais do paciente, e não da população em geral, evitando-se inclusive grandes aumentos nos níveis de hemoglobina e potencial piora do quadro de hiperviscosidade. É importante indagar o paciente sobre medicações que auxiliaram no controle da dor em episódios prévios, pois isso pode servir de guia para o início do tratamento, evitando escalonamentos desnecessários que podem mais custar tempo do que trazer alívio.

Esquemas analgésicos mais utilizados

Os opioides e os anti-inflamatórios não-esteroidais (AINES) são as medicações preferidas, e as vias parenterais as de eleição. Ambas as medicações podem ser administradas separadamente como em conjunto dependendo da severidade do quadro álgico. Os AINES devem ser administrados com cautela para pacientes com alterações da função renal, porém não são contraindicação absoluta para alterações leves/moderadas. Naqueles em que a obtenção de um acesso venoso imediato seja inviável, a via subcutânea pode ser utilizada para administração de opioides. O uso de dipirona e paracetamol é encorajado, se não houver contraindicações, como terapia adjunta. Para crianças podemos levar em consideração ainda o fentanil intranasal para alívio da dor. As avaliações subsequentes devem ser feitas a cada 15’ ou 30’ admitindo-se uma elevação de 25% na dose anterior até atingir analgesia adequada. Abaixo uma tabela adaptada de uma ferramenta ‘point-of-care’ da ACEP com doses e vias de administração sugeridas. Pacientes que utilizam opioides de longa ação em domicílio devem ter suas doses continuadas após abordagem inicial.

Medicação Dose Dose máxima por administração

Frequência

Fentanil Intranasal

2mcg/kg 100mcg ou 1mL por narina Pode repetir uma vez a cada 10’

Morfina Endovenosa

0,1mg/kg 10mg

Pode repetir a cada 15 a 30′ até controle

Hidromorfona Endovenosa

0,015mg/kg 1,2mg

Pode repetir a cada 15 a 30′ até controle

Cetorolaco Endovenoso*

0,5mg/kg 15-30mcg

Dose única

Adaptado de https://www.acep.org/sickle-cell/. Dose para crianças (< 12 anos ou < 50kg)

* Atenção para pacientes com disfunção renal de base.

Medicação

Dose Dose máxima por administração

Frequência

Morfina Endovenosa

0,1mg/kg 10mg

Pode repetir a cada 15 a 30′ até controle

Hidromorfona Endovenosa

0,015mg/kg 1,2mg

Pode repetir a cada 15 a 30′ até controle

Cetorolaco Endovenoso*

0,5mg/kg 15-30mcg

Dose única

Adaptado de https://www.acep.org/sickle-cell/. Doses para adultos ou adolescentes (≥ 12 anos ou ≥ 50kg)

* Atenção para pacientes com disfunção renal de base.

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Avaliando outras abordagens clássicas na prática clínica

O último guideline (2020) publicado pela Sociedade Americana de Hematologia (ASH) para manejo de dor aguda ou crônica nesses pacientes não se posiciona quanto à hidratação vigorosa por ausência de evidências que sugiram fazer ou não fazer a abordagem. Por outro lado, a ACEP contraindica a hidratação vigorosa devido aos riscos de congestão e piora do quadro clínico, inclusive podendo precipitar uma síndrome torácica aguda no paciente. Na prática clínica, é muito importante que se corrija a desidratação que pode estar associada ao quadro, aqueça extremidades e evite gatilhos que desencadeiam a dor.

Não devemos lançar mão de corticoides, uma vez que esses podem precipitar quadros álgicos.

O uso de Ketamina deve ser restrito aos pacientes internados, refratários a opioides. Recomendação condicional com baixo nível de certeza (de acordo com sistema GRADE). Dosagem sugerida: 0.1 to 0.3 mg/kg/h; dose máxima: 1 mg/kg/h. 

Anestésicos regionais, ou seja, feitos através de cateter peridural ou bloqueio, para pacientes refratários a opioides tem recomendação condicional com baixo nível de evidência (GRADE) pela ASH 2020.

Oxigênio terapia deve ser administrada somente aos pacientes que apresentem graus de hipoxemia à saturimetria periférica ou gasometria arterial. 

No caso de crises álgicas não complicadas (não associadas a síndrome torácica aguda, acidentes vasculares encefálicos, sepse, sequestro esplênico, dentre outros) a transfusão de concentrado de hemácias é questionável. Admite-se a transfusão de 01 concentrado de hemácias desleucocitadas e fenotipadas se houver anemia aguda associada, com vistas à melhora dos sintomas sempre tendo o cuidado de não ultrapassar os valores basais do paciente. Não se deve admitir um ponto de corte específico para transfusão e tão pouco indicamos transfusões de troca (exsanguíneo transfusões) almejando um nível específico de Hemoglobina S à eletroforese de hemoglobinas.

O uso de alfapoetina é contraindicado no Protocolo Clínico e Diretrizes Terapêuticas da Doença Falciforme publicado pelo Ministério da Saúde em 2018 e também não encontra respaldo na literatura internacional. 

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Referências bibliográficas: Ícone de seta para baixo
  • Managing Sickle Cell Disease in the ED. Disponível em: https://www.acep.org/sickle-cell/. Copyright 2021, American College of Emergency Physicians, Dallas, Texas. All rights reserved. Produced in the United States of America.
  • Amanda M. Brandow, C. Patrick Carroll, Susan Creary, Ronisha Edwards-Elliott, Jeffrey Glassberg, Robert W. Hurley, Abdullah Kutlar, Mohamed Seisa, Jennifer Stinson, John J. Strouse, Fouza Yusuf, William Zempsky, Eddy Lang; American Society of Hematology 2020 guidelines for sickle cell disease: management of acute and chronic pain. Blood Adv 2020; 4 (12): 2656–2701. doi: https://doi.org/10.1182/bloodadvances.2020001851
  • Figueiredo, FA; Fireman, MAA. Protocolo Clínico e Diretrizes Terapêuticas da Doença Falciforme. Portaria Conjunta nº 05, de 19 de Fevereiro de 2018. Ministério da Saúde, Secretaria de Atenção à Saúde, Secretaria de Ciência, Tecnologia e Insumos Estratégicos.
  • Evidence-Based Management of Sickle Cell Disease: Expert Panel Report, 2014. National Institute of Health.

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