Cuidados paliativos na UTI: atenção ao ‘sofrimento total’

A mudança de perfil epidemiológico dos últimos anos retrata uma realidade de progresso dos avanços na área da saúde e das tecnologias de manutenção da vida.

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A mudança de perfil epidemiológico dos últimos anos, que reflete o envelhecimento populacional, retrata uma realidade de progresso dos avanços na área da saúde e das tecnologias de manutenção da vida. Apesar disso, a morte continua sendo uma certeza, e pacientes fora de possibilidades terapêuticas curativas são cada vez mais comuns nos hospitais.

Os Cuidados Paliativos (CP) surgem nesse cenário, como alternativa mais humana e eficiente para a condução do tratamento de pacientes com doenças que ameaçam a continuidade da vida. São pautados no controle dos sintomas que geram maior sofrimento, ofertando atenção integral que vai além de intervenções farmacológicas, considerando as necessidades biológicas, emocionais, sociais e espirituais do indivíduo. Essa modalidade é pautada em princípios que asseguram a dignidade humana, tratando-se de uma alternativa de tratamento utilizada desde o momento do diagnóstico da doença sem expectativa de modificação, estando ou não associada a outras terapêuticas.

Perfil recorrente

Dentre as várias patologias que teriam indicação de CP, percebe-se como recorrente nas UTIs brasileiras admissão de pacientes com quadros de câncer metastático, insuficiência cardíaca congestiva (ICC), doença pulmonar obstrutiva crônica (DPOC) e doenças neurodegenerativas avançadas.

Em relação ao câncer, o desafio principal é casar as condutas indicadas pela equipe da UTI ao tratamento indicado pelo oncologista assistente. O grande dilema ético nessa situação é em que momento interromper os tratamentos dirigidos ao tumor e começar a redirecioná-los para o sofrimento em seu sentido mais amplo (ANCP, 2009).

A doença pulmonar obstrutiva crônica demanda um olhar da equipe à situação aguda que ocasionou internação, ao prognóstico do paciente e qualidade de vida pós-internação. Ventilação mecânica invasiva prolongada, reinfecções pulmonares, desconforto respiratório e ansiedade são sintomas frequentes nesse grupo, que devem ser considerados para definição de conduta pela equipe. Do mesmo modo, a ICC descompensada é outra patologia responsável por altas taxas de ocupação hospitalar e internações de repetição, que degradam a qualidade de vida dos pacientes, e permanece com baixa incidência de indicação de cuidados paliativos.

Torna-se ainda alvo de debate interdisciplinar a condução de casos de pacientes com doenças neurológicas degenerativas como Alzheimer e Parkinson, que apresentam evolução mais lenta, mas que também têm sua etapa terminal, em que é necessário o controle da dor, da obstipação, da insônia e das crises de agitação psicomotora. Esse público, em especial, tem gerado discussões diversas nos serviços de cuidados paliativos brasileiros, inclusive apresentado pelo presidente da ANCP no Congresso mundial de Terapia Intensiva (2017), como base de um diálogo sobre Terapia Nutricional Enteral e indicação de gastrostomia em pacientes em estágio final da doença de Alzheimer. Até onde estaríamos modificando o curso natural da doença? Chegar a um consenso no plano terapêutico singular, ao mesmo tempo considerando a autonomia do paciente, depende de discussões recorrentes e de uma equipe verdadeiramente integrada e engajada na qualidade da assistência e no benefício do doente.

paciente terminal

Cuidados Paliativos na UTI

A condução de cuidados paliativos na UTI parece contraditória, na medida em que pacientes sem expectativa de tratamento modificador da doença, de acordo com o Conselho Federal de Medicina, não seriam pacientes “elegíveis” para vaga em UTI, por não se beneficiarem das terapêuticas disponíveis. Mas o fato é que, todo paciente que precisar de UTI, deve ter mantido seu direito de receber cuidados para conforto. Se tratando das condições de terminalidade, o objetivo principal não é que sejam manejadas com intensidade de verificação de sinais e medidas para sustentação da vida, mas sim com foco no alívio das dores e desconfortos, assim como suporte aos familiares que acompanham as situações de não-reversibilidade.

Em primeiro aspecto, é importante identificar o motivo da solicitação de vaga na terapia intensiva para o paciente em CP, para assim definir condutas iniciais, avaliar demandas e traçar o plano terapêutico. De modo geral, existem cinco situações mais recorrentes que ocasionam internação deste público na UTI:

  1. Piora clínica não ligada à doença de base, que necessita de cuidados intensivos;
  2. Paciente em cuidados paliativos parciais, com terapêuticas associadas e necessidade de intervenções específicas;
  3. Utilização de recursos para conforto, não disponíveis nas enfermarias;
  4. Paciente terminal cuja situação real não foi abordada com familiares;
  5. Paciente com cuidados paliativos exclusivos implementados, cujos familiares não apresentam condições emocionais de acompanhar os momentos finais da doença.

Na teoria, entende-se que apenas os três primeiros perfis se beneficiariam das terapêuticas específicas da UTI, ficando os últimos dois como demandas ligadas a fatores inter-relacionais e de manejo do caso. O paciente com perfil 4 por vezes chega à unidade em situação bastante limitada do ponto de vista terapêutico. Habitualmente, vivenciam situações agudas devastadoras que se manifestaram nas horas anteriores e comprometeram gravemente o prognóstico, ou com quadros crônicos avançados que, por algum motivo, não puderam ser esclarecidos à família. Nestas situações, pode ser questionável a retirada ou a não iniciação de medidas de suporte à vida, sem que antes seja especificada a real situação aos familiares. Trata-se de uma demanda de cunho ético e relacional que precisa de atenção e condução adequados.

O perfil 5, na maioria das vezes, reflete o paciente com quadro crônico descompensado, já em fase final, em internação prolongada na enfermaria. Porém, mesmo quando a comunicação é clara e a família apresenta processo de assimilação efetivo, não é incomum que, nos momentos finais do paciente, já em situação “agonizante”, a família se perceba sem condições de acompanhar o processo e os profissionais da assistência sintam-se incapazes de oferecer suporte à demanda emocional familiar, solicitando retorno à UTI.

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As questões principais da condução de CP na terapia intensiva estão ligadas à limitação terapêutica e humanização. Isso porque a equipe da UTI, no geral, é treinada para salvar vidas, utilizando todos os recursos e tecnologias disponíveis para que essa meta seja atingida. A rotina da UTI foi montada para que o paciente crítico seja monitorizado 24 horas por dia, tratado em tempo hábil e curado. Essa premissa vai em contramão a um ambiente acolhedor e individualizado preconizado em cuidados paliativos. As condutas invasivas, a urgência, o alto fluxo, o ambiente restrito, são dificultadores da assistência humanizada e totalmente aversivos a um indivíduo consciente, em final de vida. Para que as necessidades biopsicossocioespirituais de um paciente em CP sejam contempladas é necessária organização da dinâmica da unidade e atualização constante da equipe assistencial, para que o atendimento à urgência subjetiva seja tão eficiente quanto o atendimento à urgência fisiológica.

A avaliação global do paciente com indicação de CP deve ser pautada na discussão multidisciplinar de caso, levantando como ponto principal características específicas do quadro clínico e histórico de saúde recente, avaliando a progressão da doença. Como segundo aspecto é preciso identificar as questões que geram sofrimento real e potencial ao paciente, para que, por último, definam-se as atitudes da equipe e os responsáveis pela execução.

A avaliação do sofrimento entra como uma das questões mais importantes no manejo do cuidado a este perfil de paciente, visto que o objetivo principal dos cuidados paliativos é o alívio do sofrimento, que pode se manifestar em várias esferas. De nada adianta conseguir estabelecer um esquema de analgesia plena se as dores emocionais são o que mais têm mantido o paciente desconfortável. Também não seria suficiente montar uma estrutura acessível para a presença de familiares, se não conseguimos manter esse paciente com um nível adequado de conforto físico. Ambas as tentativas são falhas se feitas de modo isolado, pois não atingem o nível de cuidado integral.

Dentre as fontes mais comuns de sofrimento emocional estão: a conspiração do silêncio, não aceitação do diagnóstico ou do prognóstico da doença, culpas e preocupações, medo da morte e do sofrimento, ausência de significado de vida, abandono dos planos e sonhos, ansiedade e depressão. O pacto/conspiração do silêncio se define por omissão da verdade sobre a doença como um acordo velado entre equipe-paciente-família, como forma de “proteção” mútua e defesa contra a desestruturação emocional. Esse obstáculo de comunicação consegue por si só desencadear reações emocionais ainda mais nocivas do que as geradas pela própria doença e situação de perda eminente. Além da abertura para a formação de fantasias, a sensação de que algo não está sendo dito compromete o vínculo de confiança com a equipe e com as figuras importantes do processo.

Pontos de conflito

Para atender à demanda, será necessária equipe com conhecimento específico para a prescrição de medicamentos, adoção de medidas não farmacológicas e abordagem dos aspectos psicossociais e espirituais, considerando os “sintomas totais” apresentados pelo paciente, já que todos estes fatores podem contribuir para a exacerbação ou atenuação dos sintomas, alívio ou intensificação do sofrimento. Respeitar a morte, em vez de encará-la como um inimigo a ser vencido a qualquer preço, pode trazer maior leveza e segurança no manejo com pacientes que se aproximam dela. Do contrário, corre-se o risco de criar um distanciamento físico e afetivo do paciente em seus momentos finais.

Abordar de modo claro e empático as limitações terapêuticas, os benefícios e prejuízos ao paciente com a mudança do tratamento, apesar de difícil, pode ser feito com o respaldo de um diagnóstico objetivo e bem embasado. A criação desse vínculo de confiança e a tomada de conhecimento sobre quem é o paciente enquanto ser humano podem nortear o profissional sobre o melhor momento de abordar paciente e família para falar da limitação de suporte. Enfim, não existem regras ou protocolos, e sim princípios que embasam o cuidado paliativo, esteja o paciente na UTI, na enfermaria ou em seu domicílio.

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Referências:

  • ANCP. Manual de cuidados paliativos / Academia Nacional de Cuidados Paliativos. – Rio de Janeiro: Diagraphic, 320p., 2009.
  • KÓVACS, M. J. Comunicação nos programas de cuidados paliativos. In: PESSINI, L; BERTACHINI, L. Humanização e cuidados paliativos. São Paulo: Loyola, 2004.
  • TROUG, R.D. et al. Recommendations for end-of-life care in the intensive care unit: The Ethics Committee of the Society of Critical Care Medicine. Critical Care Medicine, v. 29, n. 12, p. 2332-48, 2001.
  • WORLD HEALTH ORGANIZATION. Guides for efective programs: palliative care. Geneve: WHO, 2007.

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