Cuidados Paliativos: quando o paciente nunca é a doença

Cuidados Paliativos não é sinônimo de Cuidado “Largativo”. Não é usar soluções com misturas para “sedar” o paciente quando não há mais o que fazer.

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Sou residente de Cuidados Paliativos no Servidor Público Estadual em São Paulo e fiz dois anos de especialização pelo Instituto Paliar. Diariamente, enxergo como verdadeiro privilégio cuidar de pessoas e suas respectivas famílias no fim de vida. O ser humano é muito singular, sempre há uma beleza em cada história. Há muita vida no processo de morrer, no processo do adoecer.

Gostaria de dividir com vocês um pouco do que tenho aprendido, pois enxergo em meus colegas de outras especialidades as mesmas dificuldades e medos que tive outrora. Sei que pequenas mudanças podem trazer grandes ganhos, principalmente, para aqueles de quem cuidamos.

Começarei com o caso do Seu José – ele é um paciente fictício, mas com uma história bem comum para todos nós:

Seu José, 54 anos, está internado há cerca de 25 dias no hospital que você trabalha, na enfermaria da Clínica Médica. Internou para investigar uma síndrome consumptiva de início há 5 meses. Ao longo desse tempo internado foram realizados diversos exames. A hipótese diagnostica é de um câncer de cólon já avançado com metástase hepática, pulmonar, óssea, além de carcinomatose peritoneal. Está emagrecido, tem caquexia. Pela avaliação da equipe de Oncologia não tem funcionalidade para quimioterapia. Seu José tem muita dor, come pouco, apenas colheradas. O cansaço e o sono são tão intensos que está acamado.

Ele e sua família ainda não sabem o que está acontecendo. Você é o médico responsável. O laudo do histopatológico confirmou adenocarcinoma indiferenciado.

Há 5 dias José está com tosse produtiva, fez febre, os exames confirmaram pneumonia. Em uso de antibiótico de amplo espectro, mas com baixa resposta clínica – laboratorial. Tem dispneia, com tiragem intercostal e hipotensão.

O que fazer? Quem nunca se deparou com situação semelhante? Muitos são os “Josés” que cuidamos ao longo de nossa vida como médicos. Muitas são as dúvidas. Enorme é o sofrimento de ambos os lados. Mas, o compromisso com o cuidar é irrevogável e imperativo.

Infelizmente, por deficiência na nossa formação médica, muitos serão aqueles que pensarão e falarão: “não tem mais o que fazer’’, “é terminal’’, ou siglas famosas como FPP (fora de possibilidade terapêutica), SPP (se parar parou), ou que o paciente está em tratamento “suportivo”, sob “medidas de conforto”. Ainda terão outros que farão o “tudo”, como dizem: intubação, transferência para CTI, colocação de cateter nasoenteral, dripping de noradrenalina, entre outras decisões que podem prolongar o sofrimento do paciente que se encontra em fim de vida, praticando uma medicina onde enxergamos cada vez mais as partes em detrimento de um todo.

Assim, antes de pensarmos na definição, avaliação e abordagem em Cuidados Paliativos, é mais importante sabermos o que não é Cuidado Paliativo.

Cuidado Paliativo não é segurar na mão do paciente em fim de vida e falar coisas bonitas. Não tem nada a ver com borboletas e afins.

Cuidado Paliativo não é sinônimo de Cuidado “Largativo”, como já ouvi dizer. Não é usar soluções com misturas de opioides, benzodiazepínicos e outros fármacos (M1, M2) para “sedar’’ o paciente quando não há mais o que fazer pela doença.

Cuidado Paliativo não é apenas para pacientes “terminais”, aproveitando para esclarecer que essa denominação está em desuso.

Não existe “esse paciente é Paliativos”, como se “Paliativos” fosse o diagnóstico do paciente. Bem como não existe paciente ‘’Pediatrias”, ‘’Obstetrícias’’ ou ‘’Ortopedias’’. Não existe “paliativo exclusivo” ou tratamento de suporte, de conforto – esses últimos eufemismos que apenas denunciam a falta do conhecimento conceitual em Cuidados Paliativos.

Cuidado Paliativo tem a ver com ética, deliberação, empatia e muita competência técnica para controle impecável de sintomas, por isso na sua essência necessita de uma equipe multidisciplinar. É atenção aos detalhes.

É, acima de tudo, um direito humano à saúde, segundo a ONU. A definição mais atualizada da OMS de 2017 é de uma abordagem que melhora a qualidade de vida dos pacientes e suas famílias frente ao problema associado à doença com risco de vida, através da prevenção e alívio do sofrimento por meio de identificação precoce e avaliação e tratamento impecáveis da dor e outros problemas de ordem psicossocial e espiritual.

Se pensarmos em escala mundial, segundo a OMS, são 40 milhões de pessoas que necessitam de Cuidados Paliativos anualmente, a maioria delas em países com baixa e média renda. Dentre elas, temos crianças e pessoas acometidas por outras doenças para além do câncer (insuficiência cardíaca, DPOC, doenças neurodegenerativas, HIV, entre outras). Desses 40 milhões, apenas 14% conseguem ter acesso. Ainda segundo a OMS, a principal barreira para melhorar o acesso é a falta de treinamento e conscientização dos cuidados paliativos entre os profissionais de saúde.

O que temos pela frente é uma necessidade global e crescente de cuidados paliativos como resultado do aumento de doenças não transmissíveis e envelhecimento das populações.

Nesse contexto, resta-nos darmos a nossa contribuição revendo nossos conceitos e condutas para sermos capazes de oferecer um plano de cuidados adequado à fase de vida que nosso paciente se encontra. Pois, como diz uma grande paliativista brasileira- Dra. Maria Goretti Sales Maciel: pode ser que o paciente não fique bom da sua doença, mas que fique bem mesmo com ela.

Gostaria de aproveitar para agradecer a Dra. Maria Goretti por ensinar com tanta delicadeza e sensibilidade Cuidados Paliativos. A simplicidade, a humildade e o amor pelo que faz há mais de vinte anos com muita competência faz dela uma das maiores paliativistas brasileiras, disseminando seu profundo conhecimento acerca do cuidados do ser humano. Meu singelo agradecimento dentro de infinidade de ensinamentos diários e por auxiliar na revisão desse texto e na autorização do uso de sua foto para ilustrar de maneira tão especial o que é Cuidados Paliativos.

LEIA MAIS: Quando devemos iniciar os Cuidados Paliativos?

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