Dano Iatrogênico: uma visão jurídica

Na década de 1970 sobreveio um estudo e surgiram considerações mais aprofundadas a respeito das morbidades iatrogênicas. Confira!

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Primeiramente, deve-se observar que só a partir da década de 1960 falou-se, com mais frequência, em iatrogenia. Seguindo o curso natural e o relógio temporal, na década de 1970 sobreveio um estudo e surgiram considerações mais aprofundadas a respeito das morbidades iatrogênicas, devidamente incitadas pelo crescente número de ações éticas e legais em hipóteses de erros profissionais.

Etimologicamente, cabe consignar que a doutrina médica especializada refere-se ao vocábulo iatrogênico¹ como um distúrbio ou doença provocada pelo médico após tratamento, intervenção cirúrgica ou emprego de fármacos.

No mesmo sentido, não é de hoje que a doutrina na área de saúde tem conhecimento de que algumas intervenções e alguns fármacos podem gerar morbidade secundária em razão do tratamento da morbidade principal. Assim, deve-se sopesar, quando possível, a viabilidade do procedimento e de suas consequências. Porém, o que torna a morbidade iatrogênica singular é justamente a dificuldade intrínseca de se mensurar as consequências decorrentes do processo originário em razão de sua inevitabilidade e, às vezes, também de sua imprevisibilidade.

O paradoxo que se vem apresentando ao longo dos séculos diz respeito à aplicação de uma conduta mais agressiva que pode eliminar a morbidade original e, consequentemente, por reflexo, disseminar uma morbidade derivada; ou a efetivação de uma abordagem mais branda que não cause tantas consequências, contudo sob a álea do binômio tempo versus possibilidade de cura. Pode-se dizer, com base na moderna literatura médica, que a morbidade iatrogênica constitui uma proporção considerável dentro dos estudos das patologias.

Diante de tal realidade, busca-se evitar, a todo custo, o dano iatrogênico em cascata, no qual cada resultado traz consigo a necessidade de nova intervenção terapêutica geradora de novo dano acidental, assim se desencadeando até atingir limites incomuns.

Exemplo clássico de iatrogenia na medicina é o caso de mastectomia,² que, por sua natureza, exige imediata mutilação e desfiguração da paciente. Verifica-se, aqui, um caso de iatrogenia previsível e esperada.

Particularmente enfrentamos, diuturnamente, nos Tribunais de Justiça casos envolvendo cicatrizes – v.g. queloides – em cirurgias-plásticas sendo os pedidos julgados improcedentes – após necessária produção de prova pericial – em razão de ser tal resultado um dano iatrogênico.

É sumamente importante esclarecer estes conceitos a respeito das lesões ditas iatrogênicas, vez que podem parecer, prima facie, erros no procedimento médico, quando na verdade não são.

Nesse sentido é a Lição de Jorge Alberto Ripú ao associar a iatrogenia a uma “[…] síndrome não punível, caracterizada por um dano inculpável, no corpo ou na saúde do paciente, consequente de uma aplicação terapêutica, isenta de responsabilidade profissional.” ³

Segundo o Desembargador José Carlos Maldonado “[…] iatrogenia e responsabilidade civil, dentro de um universo jurídico eminentemente conflitual, são termos inconciliáveis e excludentes. Inconciliáveis porque a iatrogenia, ou “erro escusável” – faut du service -, uma vez caracterizada, não gera a responsabilidade em qualquer uma de suas vertentes: civil, penal e administrativa. Aproxima-se de uma simples imperfeição de conhecimentos científicos, escudada na chamada falibilidade médica. […] Por fim, são excludentes porque a simples caracterização de um desses resultados, na órbita jurídica ou profissional, exclui automaticamente o outro.” 4

Na mesma linha de raciocínio, foi a entrevista dada pelo Desembargador Maldonado para o Informativo de n.º 12 do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, a saber: “V. Exa. pode citar uma hipótese de dano iatrogênico? Aqueles casos em que o médico, necessariamente, tem que se valer de determinado procedimento cirúrgico, cujo iter procedimental prevê, por exemplo, uma lesão para que o resultado possa ser obtido. Independentemente da correta atuação do médico, como, por exemplo, no caso de uma cirurgia para a retirada de apêndice supurado, em que, em determinados pacientes, a cicatriz decorrente da incisão cirúrgica gera um queloide, dano necessário e previsível. Neste caso, o dano daí decorrente é iatrogênico. Não gera o dever de indenizar.” 5

Por oportuno, deveras importante consignar, uma vez que o dever de informação do profissional médico é visto nos dias de hoje pela jurisprudência como verdadeiro e indissociável dever de conduta associado a boa-fé objetiva contratual, agindo de forma negligente o profissional que não informa e esclarece o paciente em linguagem clara e objetiva ao nível sociocultural do mesmo quais os riscos inerentes ao tratamento/intervenção cirúrgica, ou seja, entende a iterativa jurisprudência que o descumprimento do dever de informação resulta em inadimplemento do contrato médico-hospitalar, mesmo que o dano6 causado não seja imputado por uma falha técnica do atuar profissional.7

É interessante ressaltar que o profissional médico não é o único responsável pelo aparecimento da morbidade iatrogênica, já que existem também fatores endógenos, como a predisposição, a constituição e a sensibilidade do paciente.

Passagem curiosa em estudo8 nos revela que a letra do médico é uma iatrogenia caligráfica, uma vez que a justificativa da letra ilegível é atribuída a celeroma, ou seja, escrita na velocidade do pensamento. No caso, trata-se de um fator de conscientização do médico, pois a legislação diz que a receita deve ser escrita no vernáculo, com letra legível e por extenso, de acordo com a denominação comum brasileira (DCB), de modo que seja plenamente compreendida por quem a executar. Por outro lado, considera que as farmácias têm receio de perder a clientela ou de se indispor com os médicos, motivo pelo qual tentam interpretar as receitas, ocorrendo, eventualmente, a venda de medicamentos trocados, quando da interpretação equivocada, principalmente entre os homófonos.

Finalmente, para que a morbidade iatrogênica possa ser determinada como excludente de responsabilidade, fazem-se necessárias as apreciações da literatura científica em consonância com a lex artis, as características individuais do paciente e a diligência do profissional médico.

Referências e notas de rodapé:

¹:  Iatr/iatro, prefixo que tem origem no grego e designa uma relação com a medicina ou com o médico; e genus, prefixo que tem origem no latim e significa “gerar”.
²: Ablação: ação de retirar do corpo um de seus órgãos ou uma formação patológica – da glândula mamária.
³: RIPÚ, Jorge Alberto. Responsabilidad Professional de los médicos. Buenos Aires: Lerner Editores Associados, 1981, p. 50.
4: MALDONADO DE CARVALHO, José Carlos. Iatrogenia e erro médico sob o enfoque da responsabilidade civil. Rio de Janeiro: Lúmen Juris, 2005, p. 7/8
5: In http://www.tjrj.jus.br/documents/10136/30092/informativo_12.pdf, página 12, visitado no dia 12/05/2014, às 16:01.
6: Nesse sentido ver: https://pebmed.com.br/culpa-stricto-sensu/
7: Nesse sentido ver: https://pebmed.com.br/direito-a-informacao-e-termo-de-consentimento-livre-e-esclarecido/
8: Cunha GWB. Iatrogenia caligráfica: a terrível doença da letra do médico. Hosp (São Paulo). 1986; 10(37):17-8.

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