Descalonamento de imunossupressores e biológicos na doença inflamatória intestinal: quando e como fazer?

Doença inflamatória intestinal envolve doenças como doença de Crohn e retocolite ulcerativa, que são caracterizadas por períodos de remissão e atividade.

As doenças inflamatórias intestinais (DII), especificamente doença de Crohn (DC) e retocolite ulcerativa (RCU), são doenças inflamatórias crônicas, caracterizadas por períodos de remissão e atividade, que se originam da interação da microbiota intestinal, resposta imune exacerbada e fatores ambientais, em indivíduos geneticamente predispostos.

A doença de Crohn, pode acometer qualquer segmento do tubo digestivo, da boca ao ânus, de maneira salteada, enquanto a retocolite ulcerativa acomete o intestino grosso de forma contínua e ascendente. As DII estão presentes em todo mundo, mas sua distribuição não é homogênea. Enquanto em alguns países o número de casos é pequeno, em outros a doença tornou-se um problema de saúde pública, sobretudo devido à alta morbidade e ao custo elevado do tratamento.

As estratégias terapêuticas atuais são direcionadas à obtenção e manutenção de resposta clínica e endoscópica, com cicatrização completa da mucosa do trato gastrointestinal, através do uso de imunossupressores e biológicos. Apesar de muito desejado, o descalonamento do tratamento ainda é muito controverso e pouco estudado. Recentemente, Hirten e colaboradores realizaram ampla revisão da literatura com intuito de avaliar as melhores evidências para um descalonamento seguro, sendo proposto um algoritmo ao final do trabalho.

médico prescrevendo desmame de medicamento para doença inflamatória intestinal

Como avaliar os melhores candidatos ao descalonamento da terapia?

O primeiro passo na avaliação para suspensão do tratamento é analisar a presença de fatores de risco de recaída, os quais podem ser subdivididos em quatro grandes grupos:

  1. Atividade de doença no momento do descalonamento do tratamento;
  2. Fatores prognósticos da doença;
  3. Curso da doença desde o diagnóstico;
  4. Outros fatores.

Deve-se ainda considerar a presença ou história de efeitos adversos relacionados as medicações no momento da tomada de decisão.

Descalonamento de imunomodulador em monoterapia

Doença de Crohn: São fatores preditores de recaída: atividade de doença no momento da suspensão do medicamento; PCR ≥ 20 mg/dL (RR 16,9); hemoglobina ≤ 12 g/dL (HR 4,8); leucócitos ≥ 6,6×109/L (HR 3,75); doença ileal; idade ≤ 31 anos (RR 2,7); doença perianal ao diagnóstico (RR 2,24); história de complicações (HR 1,74); necessidade de altas doses de imunossupressores (HR 2,20); duração de remissão menor que 4 anos (RR 4,0); estar livre de corticoide por mais de 50 meses (RR 5,20); sexo masculino; não fumar.

Retocolite ulcerativa: São fatores preditores de recaída: atividade de doença no momento da suspensão do medicamento; leucocitose (HR 1,44); idade jovem; pancolite (HR 5,01); número de recaídas em uso de imunomodulador (HR 1,30); duração do tratamento inferior a 48 meses (HR 2,78).

Descalonamento de imunomodulador em comboterapia com antagonista de TNF-alfa

Poucos estudos avaliaram os preditores de recaída associados a suspensão de imunomoduladores combinados a antagonistas de TNF alfa. Os principais fatores de risco identificados são: PCR > 5mg/dL (HR 2,65); necessidade prévia de cirurgias para tratamento da DII (HR 11,43); idade < 16 anos (HR 4,55); duração da terapia combinada menor que 6 meses (HR 5,68); uso de metotrexate (versus azatioprina) como imunomodulador (HR 5,68 x 3,37). Por outro lado, a presença de nível sérico de infliximabe > 5 mcg/mL no momento da suspensão do imunossupressor é um fator de proteção de recaída (HR 0,36).

Descalonamento de terapia com antagonista de TNF-alfa em monoterapia

Os principais preditores de recaída associados a suspensão de anti-TNF alfa são: hemoglobina <14,5g/dl (HR 6,0); leucócitos > 6 x 109/L (HR 2,4); PCR ≥ 5mg/dL (HR 3,2); calprotectina fecal > 50μg/g (HR 3,04); espessamento de parede intestinal à enteroRNM; tabagismo (HR 1,91); doença perianal (HR 1,72); doença ileocolônica (OR 3,18); idade ao diagnóstico < 22 anos (HR 2,24); pouco tempo de uso de biológico; necessidade de otimização de dose (HR 12,96); cirurgias prévias (HR 11,43); uso de corticoesteróides antes de iniciar biológico (OR 3,43); falha a monoterapia com imunomodulador (HR 1,78); nível sérico de infliximabe > 2mg/L (sugere que pacientes com nível sérico baixo não necessitam de antagonista de TNF alfa para manter a remissão).

Após a avaliação dos fatores preditores de recaída (tabela 1), é importante considerar os riscos da manutenção da terapia. Sabe-se que o tratamento com imunomoduladores e imunobiológicos está associado a infecções e desenvolvimento de neoplasias. O hazard ratio ajustado de infecções associadas ao uso de tiopurinas em monoterapia, antagonista de TNF alfa em monoterapia e comboterapia é 1,3 (1,2-1,4), 1,6 (1,0-2,6), e 2,8 (2,4-3,2), respectivamente. Em pacientes com mais de 65 anos, esse risco aumenta de 2 a 3 vezes. Já em relação ao desenvolvimento de neoplasias, a terapia com tiopurinas aumenta o risco de linfoma, especialmente em pacientes com menos de 30 ou mais de 50 anos, de neoplasias do trato urinário e de pele.

Quais os riscos para o paciente em interromper o tratamento?

  • Ao interromper tratamento com imunomodulador em monoterapia – 30-50% de recaída em 2 anos para doença de Crohn e até 60% para pacientes com retocolite ulcerativa;
  • Ao interromper tratamento com imunomodulador no contexto de comboterapia – risco de recaída semelhante a manter paciente em comboterapia (49 x 48%). No entanto, pode haver alteração da farmacocinética da medicação biológica após suspensão do imunomodulador, com redução dos níveis séricos e formação de anticorpos;
  • Ao interromper antagonista de TNF alfa – 40-50% de recaída em 2 anos, tanto para retocolite ulcerativa quanto para doença de Crohn, com aumento progressivo com o passar do tempo, atingindo até 80% com 7 anos.

Como avaliar na prática clínica?

A decisão de avaliar a suspensão de medicações utilizadas no tratamento de DIIs deve ser sempre compartilhada com o paciente, com exposição clara de riscos e benefícios. Dada a forte associação de recaídas com a presença de doença ativa no momento da suspensão do tratamento, deve-se avaliar de maneira objetiva se o paciente se encontra em remissão antes que seja considerada a retirada de qualquer droga. Assim, não deve ser suspenso tratamento de pacientes com doença em atividade.

Geralmente, inicia-se a avaliação por meio de parâmetros clínicos e laboratoriais. A presença de leucocitose, anemia e calprotectina elevada estão associados a recaída. Solicita-se, então, colonoscopia e enterografia por tomografia computadorizada ou ressonância magnética (no caso de doença de Crohn com acometimento de delgado) para confirmar a remissão endoscópica e ausência de inflamação.

Na sequência, devem ser considerados, de maneira individualizada, os fatores preditores de recaída, conjuntamente com o paciente. Deve-se atentar ao risco de eventuais novas cirurgias, as quais poderiam impactar em síndrome do intestino curto ou déficits nutricionais graves, especialmente em pacientes previamente operados. Finalmente, checa-se o nível sérico dos medicamentos, quando disponível (Figura 1), para tomada de decisão final. O descalonamento de novos biológicos (não-TNF alfa) ainda não foi adequadamente estudado.

Como monitorar o paciente após suspensão do tratamento?

O risco de recaída após suspensão do tratamento é elevado e, por isso, o paciente deve ser monitorado periodicamente. O estudo STORI demonstrou que a calprotectina fecal pode ser utilizada como preditor de recaída, uma vez que se eleva até 6 meses antes da recidiva endoscópica. A maioria dos pacientes recidivam no primeiro ano após suspensão do tratamento, sendo recomendada dosagem de calprotectina fecal a cada três meses nesse período.

Deve-se atentar a qualquer aumento relativo da calprotectina comparado ao exame antes da suspensão. Sugere-se reavaliação médica a cada 3-4 meses. Marcadores indiretos como PCR, hemoglobina e global de leucócitos também podem ser empregados. Está indicada a repetição de exame endoscópico e imagem seccional se piora clínica ou de biomarcadores. No caso de suspensão de imunomodulador de pacientes em comboterapia, recomenda-se dosar o nível sérico do biológico 1-3 meses após a retirada, permitindo, assim, otimização de dose caso necessário.

Mais do autor: Nova diretriz de profilaxia de sangramento gastrointestinal em pacientes críticos

O que fazer na presença de recaída?

A reintrodução do medicamento, geralmente, é eficaz para controlar a atividade da doença. Kennedy e colaboradores demonstraram que, após a suspensão de tiopurinas, 74% dos pacientes com doença de Crohn e 92% dos pacientes com retocolite ulcerativa que entraram em atividade, recuperaram a resposta após reinício da medicação. Uma taxa similar de resposta é observada com anti-TNF alfa (82% e 85% dos pacientes com doença de Crohn e retocolite ulcerativa, respectivamente).

Deve-se atentar ao risco de formação de anticorpos anti-droga caso seja reintroduzido o mesmo anti-TNF, sendo prudente acompanhar nível sérico da medicação com 1-3 meses. Pode-se ainda optar por tratamento com agente alternativo, como vedolizumabe, ustequinumabe, tofacitinibe ou mesmo outro anti-TNF alfa. Novos estudos encontram-se em andamento para avaliar o melhor protocolo de descalonamento terapêutico nas DIIs.

 

Preditores de recaída

Doença de Crohn

Retocolite ulcerativa

Imunomodulador em monoterapia Doença ativa

PCR aumentada

Hemoglobina baixa

Leucocitose

Doença ileal

Idade jovem

Doença perianal

Estar livre de corticoides por mais de 50 meses

Complicações prévias 

Dose alta de imunomodulador

Remissão < 4 anos

Sexo masculino

Não fumante

Doença ativa

Leucocitose

Idade jovem

Doença extensa

Número de recaídas em uso de imunomodulador

Tempo entre o diagnóstico e início do tratamento

Pouco tempo de uso de imunomodulador

Comboterapia

(anti-TNF alfa + imunomodulador)

PCR aumentada

História de cirurgias re-lacionadas à DII

Idade jovem ao diagnóstico

Comboterapia < 6 meses

Comboterapia com metotrexate

Nível sérico de infliximabe ≤ 5μg/ml

Anti-TNF alfa em monoterapia Hemoglobina baixa

Leucocitose

PCR aumentada

Calprotectina aumentada

Atividade endoscópica

Espessamento de parede intestinal na enteroRNM

Tabagismo

Doença perianal

Doença ileocolônica

Idade jovem ao diagnóstico

Curto período de tratamento

Cirurgia prévias

Uso de corticosteroides no momento da introdução do anti-TNF alfa

Falha a imunomodulador

Nível sérico de infliximabe > 2mg/L

Exposição a anti-TNF alfa

Fluxograma

Referências bibliográficas:

  • Hirten RP, et al. A users guide to de-escalating immunomodulator and biologic therapy in inflammatory bowel disease. Clin Gastroenterol Hepatol. 2020 (ahead of print).

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