Diálise precoce versus tardia: ELAIN, AKIKI, STARRT e a prática atual na nefrologia intensiva

Há benefício no início de diálise de forma mais precoce para os pacientes? Confira no artigo da Revista PEBMED – Terapia Intensiva.

Há muitos anos os nefrologistas têm sido frequentadores assíduos das unidades de terapia intensiva.

A evolução da terapia intensiva permitiu que pacientes cada vez mais graves tivessem melhores prognósticos e esse processo provocou um importante aumento da complexidade dos pacientes no CTI, o que gerou uma mudança no cenário da lesão renal aguda e no manejo dos pacientes do ponto de vista nefrológico.

Isso nos trouxe ao cenário atual em que a lesão renal aguda, na maioria das vezes, faz parte de um contexto de disfunção multiorgânica ao invés da lesão renal aguda isolada.

Nessa trajetória histórica de aumento da gravidade dos pacientes a nefrologia intensiva surgiu como subespecialidade e muito se aprendeu sobre a conduta e o manejo desses pacientes.

Há benefício no início de diálise de forma mais precoce para os pacientes? Confira no artigo da Revista PEBMED - Terapia Intensiva.

Identificando e classificando os pacientes

Durante muitos anos houve na literatura diversas classificações distintas de lesão renal aguda, o que dificultava muito a comparação dos estudos e a realização de estudos com grande número de pacientes para que respostas robustas fossem obtidas.1

Após muito debate chegou-se à classificação atual da lesão renal aguda AKIN (Tabela 1), que classifica o paciente em três grupos de gravidade da lesão renal aguda e se baseia na creatinina e na diurese.2

A classificação atual facilitou a realização de grandes estudos multicêntricos.

Tabela 1: Classificação de lesão renal aguda AKIN

Os grandes estudos sobre diálise

Por muito tempo a incerteza permeou a prática da nefrologia intensiva, já que perguntas fundamentais não tinham resposta adequada. Faltavam estudos com tamanho e poder estatístico suficiente.

Além disso, a complexidade e heterogeneidade dos pacientes críticos obviamente dificultam a uniformização dos estudos e características de cada grupo de pacientes podem influenciar nos resultados.

As peculiaridades do paciente grave também tornam difícil o estabelecimento de critérios objetivos para o início da terapia renal substitutiva.

Historicamente, respostas para três importantes perguntas foram buscadas: Como dialisar? Qual a dose adequada de diálise? Quando dialisar?

As duas primeiras foram respondidas nas últimas duas décadas.

Como dialisar? O método de terapia renal substitutiva pode ser intermitente ou contínuo. Pacientes com maior instabilidade hemodinâmica podem se beneficiar de métodos contínuos, mas de forma geral não há diferença de mortalidade devido ao tipo de terapia renal substitutiva.3

Qual a dose de diálise? Hoje sabe-se que deve ser prescrita uma dose mínima de diálise e a partir desse limite não foram observados benefícios com o aumento de dose. Essa dose é de 20 – 25 ml/kg/h nos métodos contínuos e um Kt/V semanal de 3,9 nos métodos intermitentes. Acima dessas doses não se observou redução da mortalidade.3,4

E a resposta para a última das perguntas: “Quando dialisar os pacientes com lesão renal aguda?”

O tempo do início da terapia dialítica sempre foi tema de debates acalorados já que não se tinha dados objetivos na literatura que indicassem o melhor momento para o começo da diálise.

As indicações clássicas de hemodiálise de urgência: hipervolemia refratária, acidose refratária, hipercalemia refratária, uremia e pericardite urêmica foram por muito tempo as indicações padrão para o início da terapia dialítica, e mesmo assim ainda gerava alguma dúvida. O que é acidose refratária? Refratária quanto a de reposição de bicarbonato? Como se define uremia em um paciente que está intubado e sedado?

A observação clínica e dados da literatura começaram a surgir apontando para a possibilidade de que em alguns casos o início da diálise antes de o paciente entrar em urgência dialítica poderia ser interessante.

Sabe-se que balanço hídrico positivo está associado a piores desfechos clínicos e inclusive aumento de mortalidade. O início da diálise mais cedo poderia reduzir esse acúmulo de líquido e melhorar o prognóstico desses pacientes?

Além disso, os pacientes que começam a diálise mais cedo teoricamente se manterão em melhor homeostase, com melhor controle de eletrólitos e do equilíbrio ácido-base. A diálise seria então benéfica nesse cenário?

Nesse contexto surgiu o termo “diálise precoce”, que nunca foi bem definido, mas se referia, de forma geral, ao início da diálise antes do surgimento de alguma urgência dialítica.

Entretanto há óbvios problemas em relação ao início da diálise. Existe a necessidade de um acesso venoso profundo, o que gera risco de acidentes de punção e aumento de infecção associada ao cateter.

A hipotensão durante a diálise é um fenômeno conhecido e que pode trazer consequências deletérias para o paciente como hipoperfusão tecidual, isquemia esplâncnica, atordoamento miocárdico e aumento das doses de aminas

Há ainda o risco de alterações eletrolíticas como hipocalemia e hipofosfatemia.

Para jogar luz sobre esse tema, nos últimos anos os estudos AKIKI, ELAIN e mais recentemente o STARRT AKI foram realizados para tentar responder a essas questões e definir qual o melhor momento para o início do tratamento dialítico nos pacientes com lesão renal aguda.

AKIKI e ELAIN

Esses dois estudos movimentaram a nefrologia em 2016, já que tiveram resultados divergentes e foram publicados simultaneamente em grandes revistas (NEJM e Journal of the American Medical Association), o que gerou muita discussão na época.

O estudo AKIKI5 (Figura 2) teve como desfecho primário a mortalidade em 60 dias. Foi um estudo multicêntrico realizado na França e dividiu os pacientes em dois grupos com o total de 620 pacientes (311 pacientes diálise mais precoce X 308 pacientes diálise mais tardia). O AKIKI não mostrou diferença para o desfecho primário (mortalidade em 60 dias) mas em relação aos desfechos secundários apontou para alguma vantagem no grupo tardio: menos dias em diálise, menor taxa de infecção de corrente sanguínea, e recuperação mais cedo da função renal.

O estudo ELAIN6 (Figura 3) foi feito em um único hospital na Alemanha e teve como desfecho primário a mortalidade em 90 dias. Foram randomizados 231 pacientes em dois grupos (112 pacientes diálise mais precoce X 119 pacientes diálise mais tardia).

O resultado em relação ao desfecho primário foi redução da mortalidade no grupo precoce (39,3% x 53,6%) e alguns desfechos secundários também foram favoráveis ao grupo de início precoce, como: recuperação mais rápida da função renal, menor duração da diálise e tempo de internação hospitalar.

Como podem ser explicadas essas diferenças tão marcantes nos resultados?

O estudo AKIKI tinha mais pacientes clínicos enquanto o ELAIN tinha basicamente pacientes cirúrgicos.

Os critérios de inclusão também foram diferentes nos dois estudos e o estudo ELAIN tinha critérios para início de diálise bem mais precoces que no AKIKI.

Como os critérios de inclusão e exclusão foram diferentes, assim como a definição das estratégias precoces e tardias, não é possível fazer uma comparação dos estudos.

Algo inovador e digno de nota no estudo ELAIN foi o uso da NGAL (um biomarcador usado para diagnóstico de lesão renal) como critério de inclusão no estudo.

Nesse momento havia dois estudos recém publicados e mais dúvidas do que respostas.

Como a questão permaneceu não esclarecida fazia-se necessária a realização de mais estudos.

STARRT-AKI

Para tentar responder de vez a essa questão foi idealizado o STARRT-AKI7 (Figura 4), um estudo multicêntrico, com a participação de 15 países e com grande número de pacientes. A publicação do resultado foi em julho de 2020 na NEJM.

Neste estudo, foram randomizados 2.927 pacientes em dois grupos (1.465 estratégia acelerada X 1462 estratégia padrão)

O desfecho primário foi a mortalidade em 90 dias. O estudo não demonstrou superioridade no grupo de diálise precoce (mortalidade foi igual nos dois grupos) e alguns desfechos secundários foram mais favoráveis no grupo de estratégia padrão: maior taxa de recuperação da função renal em 90 dias e menor incidência de efeitos adversos.

Além disso, 38,2% dos pacientes no grupo de estratégia padrão não necessitaram de diálise.

Logo, o maior estudo já realizado para investigar essa questão não mostrou o benefício da diálise precoce.

Transportando essas informações para a prática

Como a prática diária do nefrologista foi influenciada por esses estudos?

O conceito mais adequado atualmente é o de individualização do tratamento.

De forma geral não temos dúvidas de que pacientes com lesão renal aguda e que têm urgência dialítica precisam de terapia renal substitutiva. Essas indicações seriam: hipercalemia; acidose metabólica com pH menor que 7,2 (principalmente com bicarbonato < 12); hipervolemia com repercussão na troca gasosa (relação PaO2/ FiO2 < 200).

Entretanto, mesmo que um paciente específico não tenha uma dessas condições, dependendo da situação clínica, pode ser beneficiado pela terapia renal substitutiva, e por isso a importância da individualização.

Os pacientes críticos são extremamente complexos e em alguns casos a diálise pode ser fundamental para a melhora do desfecho clínico.

Quando se está diante de um paciente na terapia intensiva, grave e com lesão renal aguda, algumas perguntas são muito importantes para a definição da conduta:

Qual é a indicação de diálise desse paciente? É necessário que se identifique o motivo preciso da terapia renal substitutiva: hipervolemia, hipercalemia, acidose…

A terapia renal substitutiva será efetiva em resolver o problema do paciente? Algumas vezes o paciente tem clara indicação de diálise (anuria e balanço hídrico muito positivo, levando a hipervolemia com piora da ventilação) entretanto a condição clínica do paciente pode não permitir que a terapia renal substitutiva resolva o problema. O exemplo clássico é o paciente anúrico e hipervolêmico que está com doses muito elevadas de aminas. É provável que a hipervolemia o esteja prejudicando, mas a condição hemodinâmica não permite a retirada de líquido, já que o risco de hipotensão seria muito grande. Portanto a indicação da diálise nesse momento pode ser um fator complicador para o paciente (provocando hipotensão) e não será capaz de controlar a hipervolemia.

Essas decisões são difíceis na prática e somente uma avaliação cuidadosa de cada paciente pode nos ajudar na tomada da decisão mais correta.

Conclusão

As evidências disponíveis até o momento em relação à lesão renal aguda nos pacientes críticos apontam para a indicação de terapia renal substitutiva nos casos de urgência dialítica. Parece não haver benefício no início de diálise de forma mais precoce para os pacientes.

A avaliação individualizada de cada paciente é fundamental para se identificar o melhor momento de indicar o início da terapia renal substitutiva.

 

Referências bibliográficas:

  1. OKUSA, M. D.; ROSNER, M. H. Definition and staging criteria of acute kidney injury in adults. Clinical Journal of the American Society of Nephrology, v. 1, n. 1, p. 19–32, 2006.
  2. Clinical Practice Guideline for Acute Kidney Injury 2012. Kidney International Supplements, v. 2, n.1, 2012.
  3. THE VA/NIH ACUTE RENAL FAILURE TRIAL NETWORK. Intensity of Renal Support in Critically Ill Patients with Acute Kidney Injury. New England Journal of Medicine, v. 359, p. 7-2, 2008.
  4. SCHIFFL, H.; Lang, S.M.; FISCHER, R. Daily hemodialysis and the outcome of acute renal failure. New England Journal of Medicine, 346, n. 5, p. 305-10, 2012.
  5. AKIKI STUDY GROUP. Initiation Strategies for Renal-Replacement Therapy in the Intensive Care Unit. New England Journal of Medicine, v. 375, n. 2, p. 122-33, 2016.
  6. ZARBOCK, A.; GERB, J.; VAN AKEN, H.; BOANTA, A.; KELLUM, J. Á.; MEERSCH, M. Effect of Early vs Delayed Initiation of Renal Replacement Therapy on Mortality in Critically Ill Patients With Acute Kidney Injury: The ELAIN Randomized Clinical Trial. JAMA, v. 315, n. 20, p. 2190-9, 2016.
  7. STARRT-AKI. Investigators Timing of Initiation of Renal-Replacement Therapy in Acute Kidney Injury. New England Journal of Medicine, v. 383, n. 3, p. 240-251, 2020.

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