Doença óssea no mieloma múltiplo: entendendo um pouco da sua fisiopatologia

O primeiro caso bem documentado de mieloma múltiplo data de 1844 e foi descrito por Solly, que achou tratar-se de processo inflamatório.

O primeiro caso bem documentado de mieloma múltiplo (MM) na literatura data de 1844 e foi descrito por Solly: mulher de 29 anos, Sarah Newbury, que apresentava fadiga e dor óssea secundária a múltiplas fraturas, incluindo fêmur bilateral e úmero direito. A autópsia revelou infiltração da medula óssea por uma substância vermelha, com células ovais ou arredondadas, maiores (0,5-2x) do que as hemácias normais e com um ou dois núcleos. Solly achou tratar-se de processo inflamatório, no qual a matéria óssea era absorvida e eliminada na urina, tendo chamado a condição de mollities osseum (do latim, osso suave). Percebe-se que, desde o início, o MM foi associado às lesões ósseas.

A doença óssea está presente em cerca de dois terços dos pacientes com MM ao diagnóstico e em até 90% dos casos durante a evolução da doença. Representa a principal responsável pela morbidade na condição, podendo causar dor óssea, osteopenia/osteoporose, fratura patológica, compressão medular e hipercalcemia.

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Christina Ramsenthaler et al avaliaram o impacto dos sintomas causados pelo MM na qualidade de vida dos indivíduos em todas as fases da doença, desde o diagnóstico até a fase terminal, e observaram que a dor foi a segunda principal queixa durante toda a evolução do MM (ficando atrás apenas da fadiga).

O entendimento da fisiopatologia da doença óssea no mieloma múltiplo é fundamental, tanto para fins diagnósticos quanto para fins terapêuticos.

Raio-x de paciente com Doença óssea no mieloma múltiplo

Metabolismo ósseo

Para que ocorra o processo fisiológico de remodelamento ósseo, é importante que diversos fatores estejam em equilíbrio, em especial os osteoblastos (células envolvidas na formação de tecido ósseo) e os osteoclastos (células responsáveis pela reabsorção óssea).

Qualquer evento que interfira em um ou mais desses fatores gera um desequilíbrio no metabolismo ósseo, resultando em alterações ósseas com consequentes sinais e sintomas. O MM interfere em diversas etapas desse processo, e os principais aspectos relacionados à fisiopatologia da perda óssea na doença serão revisados nos próximos tópicos.

Alteração do microambiente medular

A ligação dos plasmócitos clonais às células do estroma medular resulta na liberação de citocinas que estimulam a ativação osteoclástica, aumentando a reabsorção óssea. Os osteoclastos ativados, por sua vez, liberam osteopontina, uma proteína que estimula ainda mais a ativação osteoclástica e a angiogênese local, o que favorece a proliferação dos plasmócitos clonais, gerando assim um “ciclo vicioso”.

Toru Mima et al evidenciaram o aumento de osteopontina nos indivíduos com MM em comparação com os indivíduos saudáveis, independente da presença ou não de lesão osteolítica, porém o aumento é mais expressivo quando há acometimento ósseo. Além disso, os autores notaram que estágios mais avançados da doença associam-se a maiores níveis da proteína.

Aumento da atividade osteoclástica

O receptor ativador do fator nuclear κ-B (RANK) está presente em precursores de osteoclastos, e os plasmócitos clonais expressam seu ligante (RANKL). Tal ligação estimula a maturação e ativação osteoclástica. Associado a isso, as células clonais secretam sindecano-1, proteína que se liga à osteoprotegerina (OPG) que, por sua vez, sofre endocitose e degradação. A OPG é uma proteína que se liga ao RANKL, impedindo a interação com RANK e consequentemente inibindo à maturação osteoclástica. Ou seja, os plasmócitos clonais estimulam a ativação osteoclástica e ainda impedem a ação do fator inibidor de tal ativação.

O aumento da razão RANKL/OPG acaba então resultando em destruição óssea. Estudo publicado por Evangelos Terpos et al em 2003 demonstrou o aumento de RANKL, a redução de OPG e o consequente aumento da razão no MM, comparado à população sem a doença. Foi observado que o aumento da razão é diretamente proporcional ao número de lesões osteolíticas e inversamente proporcional à sobrevida global.

Supressão da atividade osteoblástica

Os plasmócitos clonais secretam antagonistas da via de sinalização responsável pela diferenciação osteoblástica, como esclerostina, DKK-1 e sFRP-2, o que impede a formação óssea.

Esse dado foi corroborado com os resultados do estudo de Nicola Giuliani et al de 2012, no qual foi notada queda expressiva do número de osteoblastos nos pacientes com MM, em relação aos indivíduos saudáveis. Um achado interessante dos autores foi que os pacientes com gamopatia monoclonal de significado indeterminado (MGUS) já apresentam redução do número de osteoblastos, o que é intensificado com a progressão da doença.

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Apoptose de osteócitos

A morte dos osteócitos decorre da interação com os plasmócitos clonais e já resulta em alteração do microambiente medular. Além disso, há aumento de RANKL e de esclerostina, o que estimula os osteoclastos e inibe os osteoblastos respectivamente.

No mesmo estudo citado acima, Nicola Giuliani et al demonstraram número reduzido de osteócitos nos pacientes com MM, principalmente naqueles com manifestações ósseas. Uma redução, menos significativa, também foi observada nos casos de MGUS.

Resumindo

A lesão óssea no MM é secundária a um processo complexo que leva à ativação osteoclástica e supressão osteoblástica, resultando em um desequilíbrio no metabolismo ósseo que favorece a perda óssea.

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