Doses elevadas de anticoagulante profilático em pacientes com Covid-19, quando indicar?

Os pacientes que desenvolvem pneumonia grave por Covid-19 e necessitam de tratamento em UTI possuem risco aumentado de eventos trombóticos.

Os pacientes que desenvolvem pneumonia grave por Covid-19 e necessitam de tratamento em UTI possuem risco aumentado de eventos trombóticos em relação a pacientes tratados por outras patologias. Em estudo publicado pelo grupo do Hospital Erasme de Bruxelas, ao analisar 49 pacientes ventilados mecanicamente e que apresentavam hipoxemia ou deterioração respiratória, foi identificada a presença de tromboembolismo pulmonar (TEP) em 33% dos casos, através de tomografia computadorizada, a despeito do uso de heparina em dose profilática. Em outro estudo mais amplo publicado em 2020, 70% dos pacientes analisados tinham critérios para coagulação intravascular disseminada (CIVD). A literatura já é farta quando procuramos evidências do estado pró-trombótico dos pacientes com Covid-19, marcada por elevação de marcadores como D-dímero, fibrinogênio e alterações do coagulograma.

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Diante desse cenário, a dúvida ao longo do tempo foi: existe benefício em usar doses plenas de anticoagulação, ao invés de doses profiláticas, no paciente sem evidências de eventos embólicos confirmados?

A avaliação de necessidade de tromboprofilaxia faz parte da rotina de todo paciente internado, sobretudo do paciente crítico. Estudos publicados desde 2015 vêm demonstrando que a enoxaparina possui outras funções, além da inibição do fator Xa (reduzindo risco de fenômenos tromboembólicos). A enoxaparina também inibe a produção e liberação das interleucinas 6 e 8 por células epiteliais pulmonares, bem como em outros tecidos humanos. Essas interleucinas estão diretamente relacionadas com a promoção de uma resposta inflamatória exagerada, contribuindo para o que chamamos de síndrome da resposta inflamatória sistêmica. Essas substâncias foram inclusive alvo de tentativas terapêuticas no manejo do Covid-19, mas sem sucesso.

Com a evolução do entendimento da doença e das complicações inerentes a ela, observamos grupos e sociedades advogando a favor da elevação das doses de anticoagulantes de acordo com perfis específicos de pacientes. Em especial o Grupo de Trabalho Francês no Perioperatório e Hemostasia (GIHP) e o Grupo de Estudo Francês sobre Trombose e Hemostasia (GFHT), têm proposto aumentar progressivamente a dose de anticoagulantes com base no risco trombótico. Essa classificação de risco se baseia em fatores que incluem obesidade, alta demanda de oxigênio, necessidade de ventilação mecânica, e biomarcadores de inflamação ou hipercoagulabilidade, apesar da falta de evidências apoiando esta estratégia. Esse interessante artigo consta abaixo nas referências.

Os pacientes que desenvolvem pneumonia grave por Covid-19 e necessitam de tratamento em UTI possuem risco aumentado de eventos trombóticos.

Estudo atual

Em estudo publicado recentemente no CHEST, em janeiro de 2021, o objetivo foi estudar a incidência de complicações trombóticas e sangramento em pacientes críticos com Covid 19 e avaliar a relação com a dose de anticoagulação profilática administrada, levando em consideração as diretrizes publicadas pelo Grupo de Estudo Francês sobre Trombose e Hemostasia (GEFTH).

Método do estudo

Trata-se de estudo observacional em 9 unidades de UTI para Covid-19 francesas, baseado na análise retrospectiva de prontuários. Dados clínicos e laboratoriais foram revisados desde a admissão na UTI até o dia 14, incluindo uso de anticoagulantes e ocorrência de eventos trombóticos ou hemorrágicos. A anticoagulação profilática em altas doses foi definida como o uso de enoxaparina 40 mg de 12/12 horas para pacientes com < 120 kg, e 60 mg de 12/12 horas para pacientes com > 120 kg. Dos 538 pacientes incluídos, 104 pacientes desenvolveram um total de 122 complicações tromboembólicas, com uma incidência de 22,7% (19,2-26,3%). A embolia pulmonar foi responsável por 52% dos casos registrados. A anticoagulação profilática em altas doses foi associada a uma redução significativa do risco desses eventos (HR 0,81 [0,66-0,99]), sem aumentar o risco de sangramento (HR 1,11 [0,70-1,75]). Assim, neste estudo, a anticoagulação profilática em doses maiores foi associada à uma redução nas complicações trombóticas em pacientes com Covid-19 criticamente enfermos, sem aumento do risco de hemorragias. É importante salientar que o caráter retrospectivo do estudo não permite que ele seja utilizado como base para recomendações.

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Segue abaixo o fluxograma recomendado pelo GEFTH em relação às doses e indicações de uso da heparina em pacientes com Covid-19.

Figura 1: 1 Prevenção e tratamento de trombose em pacientes hospitalizados com Covid-19 pelo GEFTH 6. A dose de enoxaparina de 100 UI corresponde a 1 mg enoxaparina.

Conclusão

Apesar de interessante, ainda faltam evidências mais robustas que possam gerar uma recomendação formal a respeito desse assunto. Em breve teremos respostas mais concretas, através de estudos randomizados e com maior número de participantes. Porém, levando em consideração a gravidade da Covid-19 e a elevada incidência de complicações trombóticas, as recomendações propostas pela GEFTH parecem promissoras. Até a divulgação de mais estudos, cabe ao médico definir de forma individualizada a necessidade e dose da tromboprofilaxia. Aguardamos ansiosamente os resultados dos estudos randomizados ATTACC, ACTIV-4, e REMAP-CAP sobre o assunto.

Referências bibliográficas:

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  • Tacquard C, Mansour A, Godon A, Godet J, Poissy J, Garrigue D, Kipnis E, Hamada SR, Mertes PM, Steib A, Ulliel-Roche M, Bouhemad B, Nguyen M, Reizine F, GouinThibault I, Besse MC, Collercandy N, Mankikian S, Levy JH, Gruel Y, Albaladejo P, Susen S, Godier A, GIHP group, Impact of high dose prophylactic anticoagulation in critically ill patients with Covid-19 pneumonia, CHEST (2021), doi: 10.1016/j.chest.2021.01.017.

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