Dúvidas sobre a vacinação anti-Covid-19 em crianças — um paralelo com o combate ao sarampo

Artigo traça um paralelo dos questionamentos atuais quanto a vacinação anti-Covid-19 em crianças com o histórico combate ao sarampo.

Frente a um cenário de uma doença viral altamente contagiosa circulante na população, várias crianças apresentam febre e algumas evoluem com um curso moderado mas recuperam em sua maioria. E raramente complicações ocorrem levam à hospitalização, doença grave e eventuais mortes. Adultos suscetíveis evoluem com quadros piores, com maior proporção de piores prognósticos. Você gostaria que seus filhos fossem vacinados contra essa doença? Estamos falando sobre o sarampo, correto? Com esses questionamentos iniciais, Klass & Ratner (2021) traçam um paralelo dos questionamentos atuais quanto a vacinação anti-Covid-19 em crianças com o histórico combate ao sarampo, patologia que passou exatamente pelo mesmo processo de debate e dúvidas, questões científicas e epidemiológicas, boatos, boicotes e etc. Regredimos? Ou permanecemos os mesmos? Resumimos alguns dos pontos-chaves abaixo.

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Dúvidas sobre a vacinação anti-Covid-19 em crianças — um paralelo com o combate ao sarampo

Histórico da vacinação contra sarampo

As campanhas de vacinação anti-sarampo apresentaram e ainda apresentam questões parentais que comprometem significativamente a erradicação da doença em todo o mundo. O Centers for Diseases Control and Prevention (CDC) em Atlanta, Estados Unidos (EUA), estima que antes da disponibilidade da vacina para essa doença, a pandemia de sarampo acometia milhões de casos por ano com 400 a 500 mortes, 48.000 hospitalizações e 1000 casos de encefalite. A vacina anti-sarampo foi desenvolvida por John Enders e colegas e licenciada em 1963. Como a doença não apresenta reservatórios não humanos, esperava-se a possibilidade de erradicação, com previsão de que ocorresse em 1967. Para tentar alcançar o sucesso na erradicação, o presidente americano Lyndon Johnson deu amplo suporte à campanha vacinal assim como às organizações médicas e educacionais, colunas em jornais e até mesmo desenhos em quadrinhos do Peanuts (Snoopy). A maioria das crianças sobreviveu ao sarampo sem sequelas. Adicionalmente, e de maneira ainda mais exemplar, os pais candidataram seus filhos como voluntários para “pioneiros” no combate ao pólio nos ensaios vacinais na década de 1950, com consequente desenvolvimento da vacina Salk segura e efetiva e celebração nacional sobre mais uma doença.

De forma a complicar tais movimentos positivos, a National Association for Retard Children publicou informes sobre complicações graves do sarampo, com foco em Kim Fisher, uma criança de 10 anos que desenvolveu encefalite aos 2 anos e evoluiu com “déficit cognitivo, déficit auditivo significativo, incapacidade motora para deambulação, fala e sustentação da cabeça”. Tais publicações foram suficientes para muitos pais e médicos não darem suporte à vacinação. Consequentemente, todo esforço da campanha vacinal reduziu a incidência de sarampo, mas não foi suficiente para a erradicação. Com a vacinação mais acessível inicialmente na iniciativa privada, o sarampo se tornou uma doença desproporcionalmente uma patologia de crianças negras ou hispânicas nos EUA. Medidas governamentais importantes, como a obrigatoriedade de imunização para a frequência em escolas, auxiliou significativamente o controle da doença. A vacinação tripla (sarampo-caxumba-rubéola, MMR) foi licenciada em 1971 em substituição às vacinas monovalentes. Tais intercorrências quanto a vacinação, foram semelhantes às ocorridas nas campanhas de combate à caxumba e rubéola, como exemplo devido aos questionamentos quanto ao possível efeito teratogênico do componente vacinal anti-rubéola. Adiaram-se às propostas de erradicação para anos subsequentes, com sucesso para o controle endêmico, mas com a ocorrência de alguns surtos de sarampo entre indivíduos vacinados, como em 2014-2015 na Disneylândia, e em 2019 (> 1.000 casos em 28 estados). Um prejuízo adicional surge quando há a publicação de um artigo sugerindo possível ligação da vacinação com MMR e o autismo no jornal científico Lancet em 1998, o que resultou na exacerbação dos ativistas e de organizações antivacinas. Tal associação não teve comprovação científica em nenhuma pesquisa adicional ocorrida de maneira extensiva. Porém, tais relatos foram suficientes para diminuir a adesão vacinal a MMR, o que consequentemente mantém esses vírus ainda em circulação.

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Os pais questionam se seus filhos estão sob risco grave já que estão comumente “protegidos de pessoas de risco”. Confunde-se, inclusive, o potencial sentimento protetor paternal/maternal com a poderosa microbiologia ubíqua que continuará sempre invisível e desafiadora. Desafia-se as campanhas educacionais, os estudos de Saúde Pública, da Imunologia, da Microbiologia, dos longos anos de evolução médico-científica … e continuamos perpetuando conceitos da Revolta da Vacina de 1904. Preferimos os riscos e a desinformação e perpetuamos a doença.

A vacinação pediátrica anti-Covid-19

Mesmo frente a multiplicação do número de casos, terceira ou quarta onda das infecções por SARS-CoV-2 em diferentes países e a comprovação científica da eficácia vacinal quanto a redução dos casos graves e óbitos, ainda observamos diversas justificativas não científicas que bloqueiam a vacinação em massa, e consequentemente adiam o controle da doença aos níveis endêmicos em todo o mundo. A vacinação poderia permitir o retorno das atividades escolares, gastronômicas, esportivas, sociais, de lazer e entretenimentos diversos, ou o trabalho presencial de forma mais precoce, retornando ao novo normal de uma forma menos preocupante. Por outro lado, a não vacinação mantém as crianças e adultos como perpetuadores dos ciclos aplicativos de SARS-CoV-2, favorecendo o surgimento de novas variantes e caracterizando essa categoria de indivíduos como reservatórios virais. É importante ressaltar que tal fato é ainda mais agravante em populações com proporção significativa de crianças, como em muitos países em desenvolvimento.

Até mesmo para a tão esperada imunidade de rebanho ser possível, a vacinação da população pediátrica é necessária. A vacinação infantil permitiria benefícios (i) diretos, como a proteção de crianças contra os casos pediátricos graves raros de Covid-19 e às condições pós-infecciosas descritas como a síndrome inflamatória multissistêmica (MIS-C), e (ii) indiretos como a proteção do outro, especialmente familiares, devido a redução da disseminação viral, com efeitos benéficos inúmeros desde o fator educacional até para a saúde mental familiar e econômica. Todos ganham. Esquecemos que a proteção das crianças contra a Covid-19 consiste em uma obrigação ética e uma necessidade prática.

Concomitantemente, o reforço governamental (e até mesmo individual) quanto a colaboração para acesso a testes diagnósticos, suporte financeiro para pais e professores e outros durante a necessidade de isolamento, em conjunto, aceleraria o combate à Covid-19.

Outros detalhes sobre essa discussão podem ser observados na referência abaixo.

Referências bibliográficas:

  • Klass P, Ratner AJ. Vaccinating Children against Covid-19 – The Lessons of Measles. N Engl J Med. 2021 Feb 18;384(7):589-591. doi: 10.1056/NEJMp2034765.

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