Estimulação de pacientes comatosos: por que fazer?

A memória, enquanto componente da cognição, é a capacidade mental de registrar, recuperar, manter e evocar experiências vivenciadas de fatos já ocorridos.

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A memória, enquanto componente importante da cognição, é a capacidade mental de registrar, recuperar, manter e evocar experiências vivenciadas de fatos já ocorridos (Dalgalarrondo, 2008). Já a aptidão para memorizar fatos, refere-se com o nível de consciência, capacidade de atenção e interesse afetivo. Segundo Izquierdo (2004), as memórias se formam quando estamos emocionalmente envolvidos, e podem gerar repercussões futuras, quando evocadas. Sobre a relação memória-transtornos, pacientes pós-terapia intensiva têm sido estudados em diferentes contextos, e observa-se a influência de memórias traumáticas, formadas por conteúdos reais ou fantasiosas, com o aparecimento de síndromes neurocomportamentais, em médio e longo prazo.

As memórias traumáticas são fenômenos heterogêneos e complexos, armazenados de formas distintas no cérebro, diferentemente das memórias normais (Samuelson, Lundberg & Fridlund, 2007). Dentre essas memórias, a situação de internação em Unidade de Terapia Intensiva (UTI) é considerada potencialmente traumática e altamente associada à mudança dos esquemas de crença e adaptação cognitiva. O ambiente restrito, a privação de estímulos sensoriais, ausência de referência externa, associados à gravidade orgânica, podem favorecer a construção de memórias traumáticas. Em contramão a essa premissa, estão as possibilidades de intervenção pautadas na estimulação cognitiva, afetiva e subjetiva, durante internação em UTI, mesmo em pacientes com alteração do nível de consciência.

Poucas são as evidências brasileiras sobre a estimulação vital ao paciente crítico, porém, pesquisas de diversas áreas do saber, realizadas com pacientes sedados e comatosos demonstram ocorrência de memórias e síndrome de estresse pós-traumático em pacientes que passaram por período de sedação ou coma em UTI (Costa et al., 2014). Estudos mostram ainda a repercussão de memórias do período de terapia intensiva em relação à reabilitação física, mental e qualidade de vida após a alta hospitalar (Caiuby, Andreoli, & Andreoli, 2008). Estes achados se constituem grande incentivo para investir no atendimento psicológico a pacientes com rebaixamento do nível de consciência (RNC).

De tal modo, a postura do psicólogo partirá da premissa de que o paciente mantém sua capacidade sensoperceptiva preservada, ainda que mantenha-se sem condição de interação ou resposta. Levando em conta as principais alterações neuropsicológicas e comportamentais constatadas no ambiente de UTI, como despersonalização e delirium, é importante buscar medidas que possam diminuir essa incidência, ao mesmo tempo em que favoreçam a recuperação do paciente.

A estimulação pode se dar em três esferas diferentes, que se inter-relacionam: cognitiva, afetiva e de preservação da singularidade. No foco cognitivo, as intervenções são direcionadas aos aspectos de orientação, memória, atenção, sensopercepção, estimulação da superficialização de consciência. A esfera afetiva leva em consideração informações sobre aspectos essenciais à vida do paciente, incluindo rede de apoio familiar e social, informações sobre os acontecimentos extra-hospitalares, utilização de reconhecimento auditivo (ouvir a voz de pessoas conhecidas), dentre outras particularidades que podem despertar reações emocionais. A preservação da singularidade envolve efetuar estímulos capazes de manter a singularidade do ser, se constituindo situação oposta à despersonalização, tão comum em ambientes hospitalares.

Frente ao exposto, as questões principais a se pensar são: como fazer e quais pacientes eleger. O ideal é que se realize atendimento psicológico diário aos pacientes internados em UTI, por serem considerados pacientes de ‘alta complexidade emocional’. Entretanto, é importante estimular de modo mais ativo, pacientes que estejam em coma não profundo, capazes de reagir, pelo menos a estímulos mais enérgicos. O atendimento ao paciente comatoso, consiste em estimular o contato com a realidade, buscando proporcionar sentimento de segurança e sensação de existência, e favorecer à percepção gradual e não-traumática do ambiente.

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Como fazer:

Estimulação cognitiva: orientação tempo/espaço, em que se informa ao paciente sobre o dia da semana, do mês, sobre a hora ou período do dia, sobre o local onde se encontra naquele momento. Ambientação, serve para auxiliar no processo de conhecimento do ambiente e conforto do paciente, orientando sobre o ambiente de UTI, falando sobre os sons comuns naquele local (bips e alarmes), sobre rotinas de exames e procedimentos básicos, temperatura, etc.

Estimulação afetiva: falar com o paciente sobre coisas que fazem parte de sua rotina, que são particularmente importantes para ele, estimulando que a família faça o mesmo durante a visita. Estimular o contato físico dos membros da família, como o toque nas mãos, possibilidade de hidratação dos pés/mãos do paciente com massagem estimulante, toques no rosto, áudios de pessoas importantes e que não podem ter acesso ao hospital. Dizer ao paciente quem foram os familiares que estiveram o visitando no dia anterior, quais foram as novidades trazidas pela família, orientá-lo sobre os motivos da ausência física dos familiares, também podem auxiliar no controle da ansiedade e conforto do paciente incapaz de comunicar-se.

Estimulação de manutenção da personalização: dirigir-se ao paciente pelo nome civil (ou social), orientando para que toda a equipe o faça sempre que se aproximar dele. Falar com o paciente durante momento de higienização, curativos, procedimento, medicação, realização de intervenções da equipe, explicando brevemente o que está sendo feito. Considerar, sempre que possível, as preferências do paciente (mencionadas pela família), tentando mantê-lo o mais próximo possível de sua rotina habitual. Ex: o paciente só tomava banho a noite, costuma ser bastante friorento, gosta de música… são coisas simples mas, que se possíveis de adaptação, podem beneficiar o paciente em seu tratamento.

Considerando pacientes em uso de sedação, apesar dos princípios amnésicos e hipnóticos de algumas substâncias, sugere-se o mesmo tipo de estimulação. Apesar da perspectiva distorcida de tempo e acontecimentos, comuns aos pacientes sedados, estes podem se beneficiar, na medida em que a estimulação tende a reduzir a incidência de memórias ilusórias sobre o ambiente de UTI. Ainda que as lembranças do atendimento não estejam acessíveis na memória do paciente após o despertar, os benefícios momentâneos de acolhimento, aconchego e redução da ansiedade, justificam suficientemente o estímulo diário ao paciente sedado.

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Referências:

  • Costa, J.B, Marcon, S.S, Macedo, C.R, Jorge, A.C, Duarte, P.A. Sedação e memórias de pacientes submetidos à ventilação mecânica em unidade de terapia intensiva. Rev Bras Ter Intensiva. 26(2):122-129, 2014.
  • Caiuby, A. V. S., Andreoli, P. B., & Andreoli, S. B. Transtorno de estresse pós-traumático em pacientes internados em UTI.In P.B.Andreoli & M.R. Erlichman (Eds.), Psicologia e Humanização assistência aos pacientes graves (pp.159-169). São Paulo, 2008.
  • Dalgalarrondo, P. Psicopatologia e semiologia dos transtornos mentais. 2a edição. Porto Alegre: Artmed, 2008.
  • Izquierdo, I. A arte de esquecer: Cérebro, Memória e Esquecimento. (3a edição) (vols. 3) Rio de Janeiro, 2004.
  • Samuelson, K.A., Lundberg, D., & Fridlund, B. Stressful memories and psychological distress in adult mechanically ventilated intensive care patients – Acta Anaesthesiol.Scand., 51, 671-678, 2007.
  • Svenningsen, H. Associations between sedation, dellirium and post-traumatic stress disorder and their impact on quality of life and memories following discharge from an intensive care unit. Dan Mad J. 60(4):B46130, 2013.

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