Estratégias para otimizar a aplicação do ABCDEF bundle em adultos com Covid-19

Dos internados com Covid-19, até 90% requerem cuidados intensivos, seria possível realizar a “libertação da UTI” através do A-F bundle?

Durante a atual pandemia de Covid-19, até 5% dos pacientes com a doença desenvolverão insuficiência respiratória aguda. Entre os pacientes que precisam de cuidados intensivos, quase 90% requerem intubação e ventilação mecânica (VM), geralmente por um período prolongado.

A necessidade de VM prolongada e o uso de sedação profunda, com ou sem o uso de bloqueio neuromuscular (BNM) contínuo, resulta em uma população de pacientes com Covid-19 de alto risco para inúmeras sequelas na Unidade de Terapia Intensiva (UTI) e pós-UTI, incluindo a síndrome pós-terapia intensiva (Post-Intensive Care Syndrome – PICS).

Na ausência de terapias específicas eficazes contra a Covid-19, os intensivistas devem confiar ainda mais em estratégias amplas para mitigar as consequências negativas do cuidado na UTI e a morbidade pós-alta subsequente nesta população. No entanto, essa nova realidade demanda mais recursos da UTI de uma forma sem precedentes e acaba esgotando os suprimentos de equipamentos de proteção individual (EPI).

Além disso, a combinação de uma nova doença com as limitações de recursos e os riscos de contaminação da equipe multidisciplinar criaram novas barreiras para a implementação da estratégia conhecida como “libertação da UTI” (ICU liberation), através do pacote de medidas ABCDEF (A-F bundle).

Leia também: ‘Libertação da UTI’: o ABCDEF bundle

O A-F bundle consiste nas seguintes medidas:

  1. Assess, Prevent and Manage Pain – Avaliar, prevenir e controlar a dor;
  2. Both Spontaneous Awakening Trials and Spontaneous Breathing TrialsTentativas de despertar espontâneo e de respiração espontânea;
  3. Choice of Analgesia and Sedation – Escolha de analgesia e sedação;
  4. Delirium: assess, prevent, and manageDelirium: avaliar, prevenir e manejar;
  5. Early Mobility and Exercise – Mobilidade e exercício precoces;
  6. Family Engagement and Empowerment – Envolvimento e empoderamento da família.

Na revisão narrativa Strategies to Optimize ICU Liberation (A to F) Bundle Performance in Critically Ill Adults With Coronavirus Disease 2019, publicada no jornal Critical Care Explorations, Devlin e colaboradores (2020) destacam as principais barreiras para a adoção do A-F bundle durante a pandemia e oferecem maneiras de melhorar os cuidados na UTI, usando estratégias baseadas em evidências para otimizar a aplicação desse pacote de medidas a adultos graves com Covid-19 e que requerem VM.

Representação gráfica do vírus causado da Covid-19, doença para qual tenta-se a aplicação do ABCDEF (A-F) bundle em adultos.

A. Assess, Prevent and Manage Pain – Avaliar, prevenir e controlar a dor.

  • A avaliação da dor pode ser comprometida porque os pacientes estão profundamente sedados, às vezes em terapia com BNM. Além disso, a enfermagem pode estar menos frequentemente à beira do leito;
  • O uso de ferramentas comportamentais de avaliação de dor, como, por exemplo, a CPOT (Critical-Care Pain Observation Tool) e a BPS (Behavioral Pain Scale) deve ser considerado para pacientes que estão sedados. A enfermagem deve coordenar com os médicos e fisioterapeutas, fornecendo informações sobre a avaliação não verbal de dor;
  • Deve-se considerar que a dor está presente e tratá-la presumivelmente na ausência de avaliações ou em pacientes cuja avaliação da dor não é possível, como, por exemplo, em pacientes que estejam recebendo BNM;
  • Certos domínios da CPOT, como expressões faciais, movimentos corporais e a sincronia com o ventilador, podem, às vezes, ser detectados do lado de fora do quarto do paciente;
  • Fatores de risco/causas para dor podem ser diferentes em pacientes profundamente sedados e/ou recebendo terapia com BNM;
  • A quantidade de dor experimentada por pacientes clínicos e cirúrgicos é geralmente semelhante;
  • Os procedimentos à beira do leito, como inserção de dreno torácico, por exemplo, são dolorosos e geralmente requerem analgesia adicional;
  • Taquifilaxia pode ocorrer 2 dias após o início da infusão de opioide, podendo ser necessário aumentar a dose de infusão;
  • Neuropatias dolorosas devido à invasão viral dos nervos periféricos e/ou imobilidade prolongada são prevalentes e podem exigir a adição de pregabalina ou gabapentina;
  • Infusões de opioides em altas doses e em longo prazo são comuns;
  • As preocupações sobre o risco potencial de transtornos pelo uso de opioide pós-hospitalar devem ser suspensas;
  • Considere a dosagem inicial de opioide mais alta se uma história de uso crônico de opioide for detectada;
  • Considere iniciar um protocolo laxante para todos os pacientes com início de infusões de opioide;
  • Considere reduzir as infusões de opioides antes dos teste de respiração espontânea, devido ao seu efeito no drive respiratório.

B. Both Spontaneous Awakening Trials and Spontaneous Breathing TrialsTentativas de despertar espontâneo e de respiração espontânea.

  • A avaliação da sedação pode estar comprometida, porque os pacientes às vezes estão em BNM e a enfermagem pode estar menos frequentemente à beira do leito;
  • Coincidir as avaliações de sedação com a RASS (Richmond Agitation-Sedation Scale) ou SAS (Sedation Assessment Score) com outras atividades à beira do leito. Outros profissionais à beira do leito podem ser capazes de conduzir essas avaliações de sedação na ausência da enfermagem;
  • Se disponível, o índice biespectral (bispectral index – BIS) pode ser útil para titular a sedação em pacientes recebendo terapia contínua com BNM;
  • Insuficiência respiratória hipoxêmica grave que requer sedação profunda e VM prolongada;
  • Considere estabelecer uma nova meta de sedação diária;
  • Considere otimizar as configurações do ventilador antes de aumentar/iniciar a terapia com opioides, sedação e/ou BNM;
  • Nem todos os pacientes com síndrome do desconforto respiratório agudo (SDRA) por Covid-19 requerem sedação profunda;
  • Tentativas de despertar espontâneo geralmente devem ocorrer mesmo quando o paciente não seja um candidato para respiração espontânea;
  • Médicos à beira do leito e não somente fisioterapeutas podem, muitas vezes, ajudar a apoiar as tentativas de despertar espontâneo;
  • Uma abordagem protocolizada para titulação da sedação é uma alternativa eficaz para a conclusão da tentativa de despertar espontâneo;
  • Antecipe um tempo prolongado de vigília para pacientes que recebem infusões de midazolam;
  • Uma avaliação diária de segurança da tentativa de respiração espontânea deve ocorrer diariamente, independentemente do sucesso desse método;
  • Escassez de profissionais à beira do leito;
  • A enfermagem pode ajustar o ventilador de acordo com a solicitação médica, na ausência do fisioterapeuta;
  • A comunicação facilitada e eficiente com o médico é necessária quando o paciente é aprovado no teste de respiração espontânea e as decisões de extubação estão sendo formuladas.

C. Choice of Analgesia and Sedation – Escolha de analgesia e sedação.

  • Interações medicamentosas e preocupações com a segurança podem ser maiores;
  • A hipertrigliceridemia pode ser decorrente de uma tempestade de citocinas que mimetiza a linfohistiocitose hemofagocítica secundária, e não do uso do propofol. Considere verificar as concentrações séricas de triglicerídeos diariamente para pacientes que estejam recebendo propofol, particularmente em doses ≥ 40 µg/kg/min, mas ignorando valores ≤ 800 µg/dL;
  • Muitos pacientes terão fatores de risco para síndrome de infusão do propofol. Avaliar regularmente os pacientes que recebem propofol para esses sinais;
  • Se fentanil, metadona e haloperidol forem administrados, particularmente em altas doses e/ou em combinação com outros medicamentos conhecidos por prolongar o intervalo QTc, monitore o intervalo QTc regularmente;
  • Regimes conhecidos por serem um substrato de uma ou mais isoenzimas do citocromo P450 (por exemplo, lopinavir/ritonavir, que têm sido usados em muitos centros para tratamento da COVID-19) podem reduzir a depuração de fentanil e midazolam;
  • O paracetamol intravenoso (IV) — não disponível ainda no Brasil — pode piorar a hipotensão, particularmente em pacientes que requerem suporte de vasopressor;
  • Os anti-inflamatórios não esteroidais (AINE) devem ser evitados, devido aos seus efeitos deletérios sobre a síntese de prostaglandinas e a alta prevalência de coagulopatia e lesão renal aguda nesta população;
  • Colocação de bombas de infusão IV no corredor e frequência de entrada no quarto do paciente reduzida;
  • Comprimentos maiores de extensão IV requerem a administração de maiores quantidades de priming quando novos sacos/frascos de infusão de opioides, sedativos e/ou BNM são pendurados. O uso de bolsas/frascos maiores reduz a frequência de preparação;
  • Use volumes IV maiores do que o normal ao administrar opioides ou sedativos em bolus;
  • Considere concentrar a administração de medicação oral/enteral em horários semelhantes, para preservar o uso de EPI.
  • Aumento do risco de abstinência de opioides e sedativos;
  • A administração oral/enteral de opioides de ação prolongada, como a metadona, e sedativos, como o diazepam, pode reduzir o risco de abstinência à medida que as infusões contínuas de opioides e sedativos são desmamadas ou suspensas. A absorção oral/enteral pode não ser confiável até que o intestino seja considerado “moderadamente funcionante” (por exemplo, em situações de uso de vasopressor em doses baixas e/ou alimentação por sonda iniciada e sendo tolerada);
  • Uso frequente de BNM em infusão contínua por períodos prolongados para otimizar a VM/posição prona e/ou para reduzir o risco de autoextubação;
  • Considere bolus IV de BNM antes de iniciar infusões contínuas. As infusões de BNM devem ser administradas usando uma abordagem baseada no peso;
  • As infusões devem ser diminuídas (ou suspensas) pelo menos uma vez ao dia até que a assincronia com o ventilador ou algum grau de movimento do paciente seja observado. O uso precoce de BNM em infusão contínua não demonstrou melhorar a mortalidade em 90 dias em pacientes com SDRA e está associado a questões de segurança.

Saiba mais: São Paulo é sede do Primeiro Simpósio Latino-Americano de Delirium

D. Delirium: assess, prevent, and manage Delirium: avaliar, prevenir e manejar.

  • A triagem de delirium é reduzida devido à sedação profunda e redução da frequência de enfermagem à beira do leito;
  • Com uma prevalência próxima a 100%, deve-se presumir que o delirium esteja presente na ausência de uma avaliação;
  • Priorize os esforços de rastreamento do delirium durante os períodos de maior vigília (RASS ≥ –2);
  • Profissionais que prestam cuidados à beira do leito podem ser treinados para avaliar delirium usando o Confusion Assessment Method for the Intensive Car Unit (CAM-ICU) ou o Intensive Care Delirium Screening Checklist (ICDSC) na ausência de enfermagem para realizar as avaliações;
  • Se possível, pergunte aos pacientes se eles estão com medo ou alucinando; deve haver um esforço para tentar garantir um conforto adicional aos pacientes;
  • Reconhecer e reduzir os fatores de risco modificáveis potenciais para delirium é um desafio;
  • Avalie sistematicamente os fatores de risco para delirium usando uma abordagem como “Dr. DRE”’:
 Dr Disease remediation

(Remediação de doença)

Doenças (como, por exemplo: sepse, doença pulmonar obstrutiva crônica, insuficiência cardíaca congestiva)
D Drug Removal

(Retirada de medicamentos)

Tentativas de despertar espontâneo e interrupção de benzodiazepínicos/opioides
R
E Environment

(Ambiente)

Imobilização, sono e diferença dia/noite, aparelhos auditivos, óculos
Fonte: Adaptado de ICU DELIRIUM (2020).
  • Um episódio recente de delirium pode indicar piora da sepse, uma nova lesão neurológica aguda ou a necessidade de reposição de fluidos ou eletrólitos;
  • O delirium associado a medicamentos geralmente está relacionado à dose; reduções na exposição a corticosteroides ou benzodiazepínicos podem ajudar a facilitar a resolução do quadro;
  • Quando possível, considere fornecer intervenções não farmacológicas, como óculos, aparelhos auditivos, reorientação, música favorita e/ou ligações telefônicas/facetime/zoom com a família;
  • Melhorar o sono interrompido é um desafio;
  • Simplificar as intervenções noturnas com foco na redução da luz e/ou do ruído pode ajudar a reduzir o delirium.

E. Early Mobility and Exercise – Mobilidade e exercício precoces.

  • Prevalência de sedação profunda, ausência de fisioterapeutas e terapeutas ocupacionais (TO) no hospital, frequência reduzida de entrada da enfermagem no leito e pouco tempo à beira-leito;
  • Para pacientes profundamente sedados, os exercícios de amplitude de movimento devem ser tentados pelo menos diariamente e podem ser realizados por qualquer profissional clínico que esteja à beira-leito;
  • Na ausência de disponibilidade de fisioterapeutas/TO (ao vivo ou virtualmente), os médicos podem estabelecer metas diárias para reabilitação/mobilidade;
  • Se fisioterapeutas/TO não estiverem na UTI, mas no hospital, considere uma consulta virtual para orientar a reabilitação/mobilidade;
  • Precauções de contato podem impedir a mobilidade fora do leito/quarto;
  • Os benefícios da reabilitação/mobilidade podem ser alcançados sem que o paciente saia do quarto.
  • Pode ser possível colocar uma máscara nos pacientes extubados para facilitar a caminhada no corredor.

F. Family Engagement and Empowerment – Envolvimento e empoderamento da família.

Diante da possibilidade de contágio, as estratégias baseadas em evidências conhecidas por apoiar o envolvimento da família nos cuidados da UTI têm sido geralmente abandonadas. Há muitos compartilhamentos nas mídias sociais por membros da família de pacientes internados sobre sua frustração, tristeza e pesar por não estarem presentes e acompanhando seus entes queridos. As famílias raramente estão presentes no hospital e quase nunca são permitidas à beira-leito. Para pacientes que estão acordados, a comunicação diária por telefone, facetime ou zoom com a família é estimulada. As famílias devem ser incentivadas a fornecer à UTI e aos médicos, fotos da família e as músicas que o paciente gosta, por exemplo.

Referências bibliográficas:

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