Estudo do Tata Memorial Centre: rastreamento do câncer de mama com exame clínico

Parte do aumento de casos e óbitos por câncer de mama ocorrem em países em desenvolvimento onde programas de rastreamento são precários.

Globalmente, o câncer de mama ultrapassou o câncer de pulmão como o de maior incidência em mulheres, com 2,3 milhões de casos em 2020 e 685 mil óbitos, e uma parcela significativa do aumento de casos e óbitos ocorrem em países em desenvolvimento onde os programas de rastreamento são precários.

Recentemente um estudo indiano publicado por Mittra et al no BMJ teve grande impacto. O exame clínico das mamas realizado por profissionais de saúde a cada 2 anos foi associado a uma queda de mortalidade de 30% em mulheres com mais de 50 anos quando comparado a um grupo controle. O estudo mostrou ainda uma redução significativa do estadiamento das mulheres com câncer de mama ao diagnóstico e uma redução de 15% na mortalidade (p NS) no grupo geral das mulheres que foram examinadas regularmente.

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Os profissionais de saúde treinados ofereciam educação de saúde para as voluntárias, e além do exame físico das mamas (4 visitas com 2 anos de intervalo e 8 anos posteriores de seguimento) realizavam o exame visual do colo do útero com ácido acético a 4%. Esta publicação se refere aos dados de câncer de mama.

Estudo do Tata Memorial Centre: rastreamento do câncer de mama com exame clínico

Resultados

O câncer de mama foi detectado em média aos 55 anos (contra 56 do grupo controle). Foram encontrados 37% de casos (220) de estádio III e IV contra 47% no grupo controle (271; p=0,001). No grupo geral (35-64 anos) a mortalidade foi de 20,8/100 mil contra 24,62 no braço controle (RR: 0,85 p=0,07 IC 0,71-1,01), 15% menor, mas estatisticamente não significativa. Já entre mulheres 50+ a mortalidade foi de 24,62 vs 34,68, ou seja 30% menor (RR: 0,71 p=0,02 IC: 0,54-0,94).

História

A história por trás do estudo é muito interessante também, revelando uma parceria colaborativa monumental. O contexto geopolítico da época era desafiador, pois no início dos anos 1990 o colapso da União Soviética praticamente inviabilizou o estudo randomizado sobre o papel do exame físico no rastreamento liderado pela Organização Mundial da Saúde, já que os dados Russos nunca foram publicados e dados preliminares de Leningrado sugeriam que seria improvável que o exame físico fizesse alguma diferença. Na Índia, a incidência de casos de câncer de mama começou a aumentar e para um país pobre (950 milhões de pessoas na época) implantar um programa de rastreamento era inviável.

Dr. Mittra é um mastologista do Tata Memorial Centre (TMC — um dos maiores centros oncológicos da Ásia). Ele e seus colegas perceberam que examinar as pacientes era a única opção. Um estudo piloto com 4.000 mulheres pobres moradoras das redondezas do TMC mostrou que 2 tinham câncer de mama. Esses resultados preliminares foram apresentados no Congresso da UICC em 1994 em Nova Delhi. Mas onde buscar financiamento do projeto? O TMC sobrevivia com recursos limitados, mas ao final daquela apresentação piloto, um dos diretores do National Cancer Institute (NCI – EUA) entregou um cartão e sugeriu que fosse desenhado um projeto para tentar obter recursos do NCI. Dr Mittra então teve a audácia de desenhar um estudo que randomizasse 151.538 mil mulheres entre 35-64 anos (75 mil em cada braço — exame físico versus nada) moradoras de favelas de Mumbai, população tradicionalmente avessa e cética à cuidados médicos! Foram treinados profissionais de saúde (que eram avaliados regularmente para checar a qualidade do seu exame físico) para conquistar a confiança e respeito dessas milhares de mulheres. Manter a adesão ao projeto era outro desafio, já que elas mudam de comunidade com frequência, e ao longo dos anos várias comunidades foram demolidas para dar lugar a novas construções, o que dificultou rastrear e “recuperar” várias das participantes. Mas apesar de tudo isso alcançaram incríveis 70% de adesão ao rastreamento, números de primeiro mundo!!! E depois daquele cartãozinho receberam 15 anos de grant do NCI!

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Quando a “torneira” do NCI fechou, os desafios ficaram ainda maiores já que o estudo não havia terminado, uma vez que não tinham sido alcançados os 230 óbitos pré-estabelecidos no grupo controle. A sociedade indiana e várias instituições filantrópicas contribuíram e o estudo foi concluído. Com a publicação no BMJ os pesquisadores ressaltam a paixão pela ciência, uma dose de ousadia e autoconfiança ingênua, e agradecem os profissionais de saúde e assistentes sociais que com sua dedicação, comprometimento e resiliência tornaram esse estudo possível.

Resultados “practice changing” para países pobres e em desenvolvimento?

Sim, de uma certa forma sim. Um simples exame físico periódico realizado por profissional de saúde TREINADO pode reduzir a mortalidade em até 30%! Pelo menos em mulheres com 50 anos ou mais. Devemos aproveitar estes resultados e melhorar as políticas públicas de rastreamento para aumentar a capacidade de diagnosticar precocemente o câncer de mama e com isso salvar vidas. Outro raciocínio embora cauteloso, é oferecer estratégia alternativa para mulheres que se recusam a fazer o rastreamento mamográfico, e esse número não é desprezível a nível global, são cerca de 15-30% delas.

O Brasil é um país continental, muitas regiões são tão miseráveis quanto as favelas de Mumbai ou Delhi, e muitas mulheres não têm acesso ao rastreamento mamográfico mesmo dentro das diretrizes do MS. Temos milhares de agentes de saúde espalhados por todo o país, sei que os médicos — com razão às vezes — se preocupam em permitir que outros profissionais realizem exame físico das mamas e ginecológico, mas porque não ampliar o escopo da atenção à saúde? Em locais onde agendar um ginecologista é difícil, fazer mamografia é ficção científica, e ser atendido por mastologista é luxo um bom exame físico executado por uma enfermeira ou agente de saúde treinado é muito melhor que nada.

Não podemos, no entanto, permitir que agentes públicos oportunistas e inescrupulosos se eximam da responsabilidade constitucional de oferecer programas de rastreamento populacional para câncer de mama e de colo uterino em suas cidades e regiões carentes se aproveitando apenas de programas básicos de atenção à saúde e clínicas da família precárias sem médicos, sem mamógrafos, sem citologia.

E você, o que acha?

Ao Dr Mittra e seus colaboradores, o meu muito obrigado.

Referências bibliográficas:

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