Estudo SOARS-B: sem evidências para o uso de ocitocina como tratamento para o transtorno do espectro autista

O uso de ocitocina intranasal tem sido bastante frequente na prática clínica em muitas crianças com transtorno do espectro autista (TEA).

O uso de ocitocina intranasal tem sido bastante frequente na prática clínica em muitas crianças com transtorno do espectro autista (TEA). Conforme demonstrado em estudos experimentais e pequenos ensaios clínicos, essa conduta parecia promissora em reduzir o prejuízo social no TEA. Em animais, a ocitocina aumenta a abordagem e a memória sociais, ambas prejudicadas em autistas. Em pacientes sem transtornos psiquiátricos ou de desenvolvimento conhecidos, o uso de ocitocina intranasal aumenta a afiliação e memória sociais, além da empatia. Alguns estudos, mas não todos, mostraram níveis reduzidos de ocitocina plasmática em crianças com TEA. Uma metanálise apoiou provisoriamente uma associação entre TEA e polimorfismos no gene do receptor de ocitocina (OXTR), mas não no nível de significância do genoma. Uma elevada metilação do promotor em OXTR também foi relatada no TEA, em comparação com controles. Por fim, a diminuição da densidade do receptor de ocitocina foi encontrada no pálido ventral do tecido cerebral post-mortem obtido de alguns indivíduos com esse diagnóstico.

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Acredita-se que muitas crianças com TEA tenham sido submetidas a terapia com ocitocina intranasal baseada em dados supostamente promissores. Entretanto, apesar de haver muita esperança de que fosse uma alternativa terapêutica eficaz, uma recente pesquisa prospectiva demonstrou que a ocitocina não parece mudar os desfechos relacionados a função social de pacientes pediátricos portadores de TEA. O objetivo do estudo Autism Centers of Excellence Network Study of Oxytocin in Autism to Improve Reciprocal Social Behaviors [SOARS-B]) foi avaliar a eficácia de 24 semanas de tratamento com ocitocina intranasal para melhorar a função social nessas crianças. Os resultados foram publicados no jornal The New England Journal of Medicine

Estudo SOARS-B sem evidências para o uso de ocitocina como tratamento para o transtorno do espectro autista

Metodologia

Foi realizado um ensaio clínico randomizado de fase 2 de 24 semanas, controlado por placebo, de terapia de ocitocina intranasal em crianças e adolescentes com idades entre 3 e 17 anos e com diagnóstico de TEA. Os participantes deveriam preencher os critérios para TEA conforme o Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais, quinta edição (Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders, fifth edition – DSM-5). Foram excluídos pacientes com outros diagnósticos sobrepostos ou que pudessem ter complicações com o uso de ocitocinas. Aqueles que haviam recebido ocitocina intranasal por um período superior a 30 dias também foram excluídos. O estudo foi conduzido de agosto de 2014 até junho de 2017.

Os participantes foram alocados aleatoriamente em uma proporção de 1:1, com estratificação de acordo com a idade e fluência verbal, para receber ocitocina ou placebo, administrado por via intranasal, com uma dose alvo total de 48 unidades internacionais diárias (UI). A ocitocina intranasal em concentrações de 8 UI por 0,1 mL e 24 UI por 0,1 mL e o placebo correspondente foram fabricados pela Tergus Pharma® e foram rotulados e distribuídos pela Patwell Pharmaceutical Solutions® em conformidade com os regulamentos atuais de Boas Práticas de Fabricação do Food and Drug Administration (FDA). O produto ativo continha peptídeo sintético de ocitocina. O placebo não continha ocitocina, mas era idêntico ao produto de ocitocina intranasal em relação aos outros ingredientes, volume, rotulagem, sistema de recipiente e outras características. A dosagem de ocitocina foi considerada flexível. Os pacientes começaram o tratamento com 8 UI pela manhã, todos os dias e essa dose foi aumentada para uma dose diária alvo de 48 UI (em geral 24 UI, duas vezes ao dia, na semana 8).

O desfecho primário foi a mudança média de quadrados mínimos da linha de base na subescala de Abstinência Social modificada da Lista de Verificação de Comportamento Aberrante (Aberrant Behavior Checklist modified Social Withdrawal subscale – ABC-mSW), que inclui 13 itens (as pontuações variam de 0 a 39, com pontuações mais altas indicando menos interação social). Os resultados secundários incluíram duas medidas adicionais de função social e uma medida abreviada de quociente de inteligência (QI). 

Resultados

Das 355 crianças e adolescentes que realizaram a triagem, 290 foram incluídos no estudo. Um total de 146 participantes foram designados para o grupo de ocitocina e 144 para o grupo placebo; 139 e 138 participantes, respectivamente, completaram as avaliações de linha de base e, pelo menos, uma avaliação ABC-mSW pós-linha de base e foram incluídos nas análises de intenção de tratar modificadas. Ao final, dos 290 indivíduos que iniciaram o tratamento, 250 completaram 24 semanas.

Entre todos os participantes que foram incluídos na análise de eficácia, 48% tinham fluência verbal mínima e 52% tinham fala verbal fluente. A idade média foi de cerca de 10 para os minimamente verbais e 11 para os verbalmente fluentes. Todavia, a distribuição entre as faixas etárias foi a seguinte: 25% dos participantes tinham de 3 a 6 anos de idade, 39% tinham de 7 a 11 anos e 36% tinham de 12 a 17 anos. A maioria dos participantes (87%) era do sexo masculino. A mediana do escore ABC-mSW no início do estudo foi de 11 pontos. Das 1.939 avaliações ABC-mSW que eram esperadas se todos os participantes na população de intenção de tratar modificada completassem todas as avaliações programadas, 128 (6,6%) eram faltosas; os dados foram considerados ausentes aleatoriamente. 

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O resultado primário (alteração média dos mínimos quadrados desde a linha de base no escore ABC-mSW) foi de -3,7 no grupo de ocitocina e de -3,5 no grupo de placebo (diferença média dos mínimos quadrados, -0,2; intervalo de confiança de 95%, -1,5 a 1,0; P = 0,61). 

Os resultados secundários não diferiram entre os grupos de ensaio de uma forma geral. A incidência e gravidade dos eventos adversos foram semelhantes nos dois grupos. Três eventos adversos graves ocorreram durante o estudo. Um evento adverso sério foi considerado pelos pesquisadores como relacionado à ocitocina: sedação durante a condução que levou a um acidente com veículo motorizado enquanto o participante tomava uma dose diária total de 48 UI. Na população de segurança, quatro participantes no grupo de ocitocina e três no grupo placebo descontinuaram o regime do estudo devido a eventos adversos. A maioria das interrupções no grupo da ocitocina foram relacionadas à irritabilidade ou agressão; apenas uma das interrupções no grupo placebo foi devido a causas comportamentais (aumento da libido com impulsividade). Os eventos adversos ocorreram em 82% dos participantes no grupo de ocitocina e em 83% daqueles no grupo de placebo. O grupo de ocitocina teve maiores incidências de:

  • Aumento do apetite (16%, vs. 10%);
  • Aumento de energia (10% vs. 3%);
  • Inquietação (8% vs. 2%);
  • Perda subjetiva de peso (7% vs. 3%);
  • Aumento da sede (6% vs. 3%);
  • Desatenção (6% vs. 3%);
  • Mialgia (3% vs. 1%).

Não houve outras alterações clinicamente significativas nos sinais vitais, altura, avaliações laboratoriais clínicas ou achados eletrocardiográficos em nenhum dos grupos. 

O estudo apresentou algumas limitações, descritas pelos pesquisadores. Uma delas é o fato de que o produto de ocitocina específico que usaram pode ter problemas de absorção em altas doses. Além disso, os autores do estudo reconheceram que a escala ABC-mSW não é uma medida de resultado validada para pesquisa em TEA. 

Conclusão

Neste importante estudo envolvendo crianças e adolescentes com TEA, os pesquisadores demonstraram que 24 semanas de tratamento diário com ocitocina intranasal, quando comparadas ao placebo, não melhoraram a interação social ou outras medidas da função social relacionadas ao TEA. Portanto, o uso off-label atual de ocitocina no tratamento do TEA em pediatria não é recomendado diante desses resultados insatisfatórios. 

Referências bibliográficas:

  • Sikich L, Kolevzon A, King BH, et al. Intranasal Oxytocin in Children and Adolescents with Autism Spectrum Disorder. N Engl J Med. 2021;385(16):1462-1473. doi:10.1056/NEJMoa2103583

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