FFR para planejar cirurgia de revascularização do miocárdio é útil?

O papel do FFR (já consoliado na ICP) para guiar a cirurgia de revascularização do miocárdio (CRM) ainda está repleto de lacunas.

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A utilização da reserva de fluxo fracionada (Fractional Flow Reserve – FFR) para guiar a intervenção coronária percutânea (ICP) tem se consagrado como uma ferramenta que reduz intervenções desnecessárias em lesões sem repercussão hemodinâmica, com dados robustos de segurança2,3. Dados demonstrando a superioridade da ICP versus tratamento clínico, sobretudo no que se refere a reintervenções, em lesões significativas do ponto de vista funcional (FFR<0.8), também já foram demonstrados4. Entretanto, o papel do FFR para guiar a cirurgia de revascularização do miocárdio (CRM) ainda está repleto de lacunas.

O estudo FARGO1 (Fractional Flow Reserve Versus Angiography Randomization for Graft Optimization) foi desenhado para tentar preencher algumas destas lacunas. Trata-se de um estudo prospectivo, multicêntrico (diversos serviços da Dinamarca), que randomizou pacientes com doença arterial coronária (DAC) multiarterial, candidatos à cirurgia de revascularização do miocárdio, para as seguintes estratégias:

1) Revascularização baseada na avaliação angiográfica convencional das lesões;
2) Revascularização guiada por FFR.

O desfecho primário do estudo era a porcentagem de falha dos enxertos em 6 meses, que foi definido como fluxo reduzido (TIMI<3) e/ou presença de estenose superior a 50%. Eventos clínicos maiores (mortalidade total, infarto do miocárdio, revascularização repetida e acidente vascular cerebral), de modo combinado (MACCE) e individuais, angina em 6 meses e características do procedimento cirúrgico, foram considerados desfechos secundários. Basicamente, a ideia seria de avaliar a segurança em se evitar enxertos em lesões sem significado funcional do procedimento cirúrgico e, talvez, identificar algum benefício clínico nessa estratégia, conforme o observado no contexto da ICP.

FFR

FFR na revascularização do miocárdio

Um total de 100 pacientes, portadores de angina estável ou síndrome coronariana sem supradesnivelamento do segmento ST estabilizados, foram selecionados. Inicialmente, todos os pacientes eram avaliados pelo Heart Team e tinham sua cirurgia planejada, visando uma revascularização completa de vasos com diâmetro >2.5mm e estenoses superiores a 50%. Na sequência, os pacientes eram submetidos ao FFR e randomizados (1:1) para os seguintes grupos: 1) CRM guiada por FFR, no qual as lesões com FFR>0.8 eram excluídas do plano cirúrgico final; 2) CRM guiada por angiografia, no qual os enxertos deveriam ser realizados como programados inicialmente e os cirurgiões eram “cegos” para os valores do FFR. A análise final foi realizada com base no princípio “intenção de tratar”.

Um total de 267 artérias receberam enxertos, com 37% de uso de enxertos arteriais. Como esperado, o número de anastomoses foi menor no grupo guiado por FFR, em relação ao grupo guiado por angiografia (2.6 versus 3.0; p=0.005). Houve uma taxa de 12% de desvios de protocolo (artérias que não receberam enxertos conforme planejado, revascularização híbrida e até mesmo mais enxertos que o planejado), na maioria dos casos explicados, por razões técnicas.

O seguimento angiográfico e funcional em 6 meses foi possível em 72 pacientes (39 versus 33 nos grupos FFR e angiografia, respectivamente). A porcentagem de falhas dos enxertos foi similar nos dois grupos: 16% no grupo FFR e 12% no grupo angiografia, p=0,97. Esta incidência de falha dos enxertos foi similar entre lesões sem e com repercussão funcional: 8,1% versus 10%, respectivamente (p=0,8). A taxa de falha também foi semelhante entre enxertos venosos e arteriais.

Em relação aos desfechos secundários, não houve diferença na incidência de MACCE (12% nos dois grupos). Também não houve diferença dos componentes do desfecho combinado, analisados de forma isolada. Em 6 meses, 88,8% dos pacientes do grupo FFR estavam livres de angina, contra 95,8% no grupo angiografia, porém sem diferença estatística (p=0,29). Em relação às características do procedimento, houve uma tendência a um menor tempo de circulação extracorpórea no grupo guiado por FFR: 77 versus 88 minutos, p=0,07.

Um dado surpreendente foi a análise funcional das lesões excluídas do plano de revascularização no grupo FFR. Houve uma redução significativa do valor médio do FFR no momento da randomização comparado ao do seguimento de 6 meses: 0,89±0,05 versus 0,81±0,11 (p=0,02), respectivamente. Dentre todas as lesões com FFR >0,8 na randomização, 9 (37,5%) lesões que não receberam enxertos tiveram redução do FFR para valores abaixo de 0,8. Pacientes do grupo FFR cujas lesões não revascularizadas evoluíram para valores de FFR menores que 0.8 e tinham sintomas e/ou isquemia demonstrada em cintilografia, foram tratados com ICP.

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Entendo os números

Os resultados deste estudo são bastante interessantes. Primeiramente, o fato de não haver diferença significativa entre as taxas de patência dos enxertos entre os dois grupos, assim como nos desfechos clínicos (MACCE), pode levar a diversas conclusões práticas. Pode-se advogar que a revascularização baseada no FFR pode proporcionar uma simplificação do ato cirúrgico, sem elevar o risco de desfechos clínicos duros. Todavia, poderia-se também argumentar que esta estratégia não adiciona benefícios clínicos e gera custos desnecessários e possíveis reintervenções, fatos que se sobrepõem a uma estratégia cirúrgica potencialmente mais complexa.

Estes achados devem, entretanto, ser interpretados com cautela, já que estudos anteriores mostraram que a patência de enxertos em lesões com FFR >0.8 é menor4. É corriqueira na prática clínica, inclusive, a suposição de que lesões moderadas que recebem enxertos têm maior chance de oclusão, devido ao fluxo competitivo no vaso nativo.

Um segundo ponto, entretanto, chama mais atenção que o próprio desfecho primário planejado do estudo. As lesões sem repercussão funcional no grupo FFR, que, portanto, não receberam enxertos, evoluíram com redução significativa dos valores de FFR em 6 meses, algumas passando a apresentar repercussão clínica e necessitar de ICP. Isso contrasta com evidências robustas de estudos com FFR e ICP, que mostravam ser seguro não realizar intervenção em lesões com FFR>0.82,3, com exceção do recente estudo FUTURE, que mostrou um prognóstico desfavorável neste cenário5, mas têm sido avaliado com muita cautela por potencialmente representar um ponto fora da curva, neste contexto.

A redução tão precoce dos valores de FFR leva a reflexão de que os pacientes submetidos à CRM têm um comportamento diferente daqueles submetidos à ICP, no que se refere à progressão da aterosclerose. A aterosclerose acelerada tem sido reportada em vasos que receberam enxertos venosos, porém o mecanismo fisiopatológico pelo qual a aterosclerose poderia estar acelerada também em vasos que não receberam enxertos não está claro.

É importante ressaltar que o estudo FARGO tem limitações. A principal delas se refere ao tamanho da amostra, que foi calculada tendo como base uma estimativa de até 20% de oclusão de enxertos no grupo angiografia e 5% no grupo FFR, de acordo com estudos prévios. Isso pode ter limitado o poder do estudo em detectar diferenças reais da população, ou seja, um risco maior de erro do tipo II. Esta limitação é ainda maior para detectar desfechos clínicos que pudessem responder questões importantes, como diferenças em reintervenções e na incidência de infarto do miocárdio.

Em segundo lugar, o seguimento angiográfico não foi possível em aproximadamente 25% dos indivíduos. A principal razão foi a recusa dos pacientes, provavelmente por se tratar de um procedimento invasivo. Pode ter ocorrido, também, um viés de seleção, já que pacientes com sintomas, especialmente angina, podem ter sido mais propensos a aceitar serem submetidos a uma nova coronariografia. Ainda em relação ao seguimento, o tempo de 6 meses pode ter sido muito curto, especialmente para detectar desfechos clínicos.

Finalmente, os desvios de protocolo não foram desprezíveis, apesar de representarem um fenômeno real na prática clínica. Nem sempre o que é planejado é realizado, na maior parte das vezes por razões técnicas.

Take-home messages

A principal mensagem deste estudo é que o que conhecemos sobre o FFR em ICP não pode ser extrapolado para pacientes que serão submetidos à CRM. A ideia de revascularização funcional no contexto cirúrgico ainda merece investigação.

Apesar de haver debate se a utilização de enxertos em lesões sem repercussão funcional é inócua ou não, por enquanto, deve-se priorizar uma revascularização mais completa possível, tendo como base a avaliação angiográfica.

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Referências:

  1. Thuesen AL, Riber LP, Veien KT, et al. Fractional flow reserve versus angiographically-guided coronary artery bypass grafting. J Am Coll Cardiol. 2018;72:2732-2743.
  2. Pijls NH, van Schaardenburgh P, Manoharan G, et al. Percutaneous coronary intervention of functionally nonsignificant stenosis: 5-year follow-up of the DEFER Study. J Am Coll Cardiol 2007;49:2105–11.
  3. van Nunen LX, Zimmermann FM, Tonino PA, et al. Fractional flow reserve versus angiography for guidance of PCI in patients with multivessel coronary artery disease (FAME): 5-year follow-up of a randomised controlled trial. Lancet 2015;386: 1853–60.
  4. Fearon WF, Nishi T, De Bruyne B, et al. Clinical outcomes and cost-effectiveness of fractional flow reserve-guided percutaneous coronary intervention in patients with stable coronary artery disease: three-year follow-up of the FAME 2 trial. Circulation. 2017.
  5. Rioufol G. FUTURE trial: Treatment strategy in multivessel coronary disease patients based on fractional flow reserve. Presented at: ESC 2018. August 25, 2018. Munich, Germany.

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