Gliflozinas e doença cardiovascular: o que sabemos até agora?

Uma revisão abordou as gliflozinas e os principais estudos que levaram a recomendação de uso do ponto de vista cardiovascular e renal.

A primeira gliflozina foi isolada em 1835 da casca da macieira, porém apenas na década de 1990 foi identificada sua capacidade de inibir a reabsorção de glicose nos túbulos renais, com redução da glicemia. Nesta mesma década foi desenvolvido o primeiro inibidor de SGLT2 sintético, que reduziu hiperglicemia em ratos diabéticos. A partir daí foram desenvolvidos ensaios clínicos com essa nova classe de medicações, que passaram a ser chamadas de gliflozinas e tem capacidade de reduzir a hemoglobina glicada em 0,5 a 1,1% sem causar hipoglicemia.

Desde 2008, a partir da detecção de aumento de risco cardiovascular com uso do antidiabético oral rosiglitazona, o FDA recomenda que qualquer nova medicação antidiabética seja testada em relação a segurança cardiovascular. As gliflozinas passaram então por estudos de segurança e foi visto que não só eram seguras, mas também benéficas do ponto de vista cardiovascular e renal. Atualmente estão aprovadas para uso a empagliflozina, dapagliflozina, canagliflozina e ertugliflozina.

Recentemente, foi publicada na NEJM uma revisão sobre essa classe de medicações e os principais estudos que levaram a recomendação de uso do ponto de vista cardiovascular e renal. Abaixo encontra-se um resumo desta revisão.

Gliflozinas

Mecanismos de ação

A reabsorção de glicose no filtrado glomerular é um processo ativo, ligado ao sódio, e que precisa de uma proteína carreadora, o cotransportador sódio-glicose, chamado SGLT. Essa proteína tem duas isoformas, uma presente no intestino delgado, chamada SGLT1, e uma presente nos túbulos renais proximais, chamada SGLT2, que é responsável pela reabsorção de mais de 90% da glicose e 65% do sódio. As gliflozinas atuam inibindo a SGLT2 no túbulo renal, que leva a efeito glicosúrico e aumento da excreção de sódio.

Ação renal

Em pacientes com DM2, a reabsorção excessiva de glicose e sódio no túbulo proximal causa vasodilatação da arteríola aferente, com hiperfiltração glomerular. Isso leva a inflamação, fibrose e consequente doença renal do diabético. A redução da reabsorção de sódio aumenta sua concentração na mácula densa e o feedback tubuloglomerular faz com que haja vasoconstrição da arteríola aferente. Esta constrição reduz a hiperfiltração e o dano renal progressivo. Os inibidores do SGLT2 inibem o trocador sódio-hidrogênio 3, o que aumenta a excreção de sódio e glicose. Também reduzem o trabalho glomerular e a necessidade de oxigênio, reduzindo o dano tubular hipoxêmico e aumentando a produção de eritropoietina renal.

Ação cardiovascular

O mecanismo que leva a benefício cardiovascular não está bem estabelecido e há diversas possibilidades: parece levar a melhora do funcionamento mitocondrial, aumento da produção de ATP e melhora da contratilidade ventricular; existem mecanismos que alteram a quantidade de sódio no miócito, que normalmente encontra-se aumentado na IC, o que leva a repercussões no cálcio e contratilidade muscular; redução de inflamação, como visto em alguns estudos experimentais, e alguns outros possíveis. Não está claro quais desses mecanismos é o que faz mais diferença no benefício cardiovascular.

Pacientes com diabetes e doença cardiovascular aterosclerótica

O primeiro grande estudo que avaliou os inibidores de SGLT2 em pacientes com diabetes mellitus tipo 2 (DM2) foi o EMPA-REG OUTCOME, que comparou o uso de empagliflozina ou placebo e mostrou benefício cardiovascular, com redução do desfecho primário de mortalidade por todas as causas, infarto agudo do miocárdio (IAM) não fatal e acidente vascular isquêmico (AVC) não fatal. Além disso, os riscos dos desfechos secundários também foram reduzidos, com menor mortalidade por causa cardiovascular, internação por insuficiência cardíaca (IC) e mortalidade por todas as causas.

A partir daí, outros estudos vieram para confirmar esses achados. O CANVAS e o CANVAS-renal avaliaram pacientes que usaram canagliflozina ou placebo. Dois terços dos pacientes tinham antecedente de doença cardiovascular e houve redução do desfecho primário de eventos cardiovasculares maiores, com resultados na análise de subgrupos mantidos e grande redução do desfecho secundário de internação por IC.

Após, o CREDENCE avaliou o uso da canagliflozina em pacientes com diabetes, doença cardiovascular aterosclerótica e doença renal com albuminúria e também mostrou redução de eventos cardiovasculares maiores, internação por IC e internação por IC combinada a morte cardiovascular.

Já o DECLARE-TIMI 58 incluiu pacientes de menor risco, com boa parte dos pacientes sem doença estabelecida porém com risco para desenvolvimento, que fizeram uso de dapagliflozina. Esse estudo não mostrou redução de eventos cardiovasculares do desfecho primário, porém mostrou redução em morte cardiovascular ou internação por IC. Na avaliação do subgrupo de maior risco (pacientes com IC com fração de ejeção reduzida) houve redução de mortalidade cardiovascular e por qualquer causa.

A ertugliflozina foi avaliada no estudo VERTIS CV, que incluiu pacientes com DM2 e doença cardiovascular aterosclerótica. Não houve redução de mortalidade cardiovascular, porém houve redução de primeira internação por IC.

Sotagliflozina, um inibidor do SGLT1 e SGLT2, também foi testada. O estudo SOLOIST-WHF, avaliou pacientes internados por IC descompensada, com início precoce da medicação, e mostrou redução do desfecho primário de morte cardiovascular, internação por IC ou atendimento médico de urgência por IC descompensada, com segurança em início precoce após quadro de IC descompensada. Já o estudo SCORED avaliou pacientes com DM2, doença renal e com risco para doença cardiovascular aterosclerótica e também mostrou redução do desfecho primário, o mesmo do estudo anterior.

Pacientes com insuficiência cardíaca

Os estudos citados acima tinham parte dos pacientes com IC, porém o DAPA-HF avaliou apenas pacientes com fração de ejeção (FE) reduzida, abaixo de 40%. Outro ponto interessante deste estudo foi que pouco mais da metade dos pacientes (55%) não tinham diabetes. Houve redução do desfecho de morte cardiovascular ou internação por IC e esse resultado foi encontrado tanto em pacientes com quanto sem DM2. O EMPEROR-Reduced incluiu pacientes com FE um pouco menor que o DAPA-HF e também encontrou benefício em pacientes com e sem DM2.

Nos estudos prévios, parecia haver algum benefício em pacientes com IC com FE preservada e o EMPEROR-Preserved testou essa hipótese, avaliando pacientes com FE maior que 40%. Pacientes que receberam empagliflozina tiveram redução do desfecho primário, de mortalidade cardiovascular ou internação por IC, assim como do desfecho secundário de internação por IC, independente de DM2.

Pacientes com doença renal

O EMPAREG-OUTCOME avaliou desfechos renais com uso de empagliflozina e mostrou redução do desfecho primário de aumento da creatinina, da albuminúria, início de diálise ou morte por doença renal. A avaliação de desfechos renais no EMPEROR-Reduced também mostrou benefícios. Importante ressaltar que no início do uso da empagliflozina ocorre uma queda da taxa de filtração glomerular (TFG), porém seguida de uma redução desse declínio em relação ao placebo. No estudo CANVAS também foi evidenciada redução do declínio da TFG e da albuminúria.

O CREDENCE foi o primeiro grande estudo cujo desfecho primário foi desfecho renal. Os pacientes eram diabéticos, tinha TFG média de 56 e albumina aumentada. O DECLARE avaliou pacientes diabéticos com doença renal no início e mostrou proteção com a dapagliflozina, de forma semelhante a empagliflizona e sotagliflozina, avaliada nos estudos prévios.

Uma metanálise dos quatro estudos citados mostrou que o inibidor de SGLT2 teve benefício em redução do risco de progressão para diálise, transplante e morte por causa renal. Esse benefício foi encontrado nos quatro trabalhos e ocorreu de forma independente da função renal de base e do efeito no controle glicêmico. Além disso, também mostrou possível benefício renal em pacientes não diabéticos.

A partir deste achado foi feito o estudo DAPA-CKD, com um terço dos pacientes sem DM2, TFG média de 43, relação albumina/creatinina de 949 mg/g. Houve redução do desfecho composto renal e da mortalidade por todas as causas.

No início deste ano, o estudo EMPA-KIDNEY foi interrompido precocemente por efeito claramente positivo da empagliflozina. Esse estudo incluiu mais de 6000 pacientes, com ou sem diabetes e com doença renal crônica de causas diversas.

Eventos adversos

Os eventos adversos mais comuns são as infecções micóticas genitais, relacionadas a ação glicosúrica da medicação e encontrados mais frequentemente em mulheres. Menos comumente ocorre infecção urinária e pielonefrite. Outro evento adverso que pode ocorrer é a cetoacidose euglicêmica, principalmente nos mais idosos.

Outros benefícios

Outros achados possivelmente benéficos encontrados foram redução de fibrilação atrial e flutter, redução do risco de arritmias ventriculares, parada cardíaca ressuscitada e morte súbita e redução da pressão arterial.

Cardiopapers: gliflozinas na IC descompensada [vídeo]

Comentários e conclusão

Esta classe de medicações, inicialmente utilizadas como antidiabéticos orais tem mostrado resultados extremamente benéficos na doença cardiovascular, tanto aterosclerótica quanto na IC, e na doença renal crônica e atualmente deve fazer parte do arsenal terapêutico das diversas especialidades. O fator limitante é o custo, porém devido aos benefícios, perfil de segurança e poucos efeitos colaterais deve ser utilizada sempre que possível, sendo recomendada pelas principais sociedades médicas, como Associação Americana de Diabetes, Sociedade Europeia de Cardiologia, American Heart Association. Pode ser ainda que a indicação dessas medicações seja expandida, pois há diversos estudos em andamento para avaliar se há benefício após ocorrência de IAM.

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Referências bibliográficas: Ícone de seta para baixo
  • Eugene Braunwald, M.D, et al. Gliflozins in the Management of Cardiovascular Disease. May 26, 2022. N Engl J Med 2022; 386:2024-2034. doi: 10.1056/NEJMra2115011

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