Hidroxicloroquina para Covid-19: análise de evidências do novo ensaio clínico

No dia 17 de março foi publicado, o primeiro estudo que avaliou a eficácia da hidroxicloroquina associada a azitromicina no tratamento da Covid-19.

No dia 17 de março foi publicado, o primeiro ensaio clínico que avaliou a eficácia da hidroxicloroquina associada a azitromicina para tratamento de indivíduos com Covid-19. Embora o estudo tenha gerado um grande alarde na comunidade acadêmica e na sociedade pelos seus resultados positivos, o entusiasmo foi desproporcional a evidência.

O artigo francês carecia de qualidade metodológica, sendo repleto de muitos erros sistemáticos e provável erro aleatório. A evidência foi classificada como muito baixa pelo sistema Grade.

Enfim, no último dia 31, foi publicado uma nova pesquisa realizada no Hospital de Renmin da universidade de Wuan, avaliando os efeitos da hidroxicloroquina em portadores de Covid-19. Este estudo foi disponibilizado no Medrxiv, um servidor criado em parceria com as Universidades de Yale e Oxford para aceite de trabalhos ainda sem análise crítica, e já falamos sobre ele aqui no Portal.

mão segurando medicamentos com outras cartelas de hidroxicloroquina para covid-19 ao fundo

Hidroxicloroquina na Covid-19

Relembrando o estudo: diferentemente do primeiro ensaio clínico realizado, este foi randomizado e duplo cego. A pesquisa recrutou durante o mês de fevereiro, 142 pacientes admitidos à hospitalização com Covid-19.

De acordo com os critérios de inclusão e exclusão, o ensaio clínico randomizou 62 pacientes para receber o tratamento padrão (oxigênio terapia, agentes antivirais, agentes antibacterianos e imunoglobulinas com ou sem corticoesteroide) ou tratamento padrão mais hidroxicloroquina 400 mg/dia por cinco dias.

Quais foram os endpoints?

  • Tempo de recuperação clínica (melhora da febre e da tosse);
  • Melhora radiológica com um comparativo entre o D0 (antes do uso da HCQ) e D6 (após uso da HCQ).

Quais foram os principais resultados?

  • Média de idade dos pacientes foi de 44,7 anos;
  • Para febre a média foi de 2,2 dias (no grupo intervenção) e 3,2 dias (no grupo controle);
  • A tosse foi significativamente menor no grupo que recebeu HCQ, p < 0,0016;
  • Houve progressão da doença em 4 pacientes do grupo controle;
  • A melhora da TC pulmonar foi observada em 80, 6 % do grupo intervenção x 54,8 % no grupo controle, sendo que houve melhora significativa em 61,3% dos pacientes que receberam HCQ, p = 0,0476.

Análise crítica

Quando avaliamos um estudo, devemos inicialmente verificar sua validade interna, ou seja, determinar se os resultados foram influenciados por erros aleatórios (acaso) ou erros sistemáticos (viés).

Quanto a possibilidade de viés, a randomização, responsável por alocar os grupos aleatoriamente, torna os grupos homogêneos, balanceando os fatores confundidores entre os grupos de forma adequada. Isto pode ser evidenciado pela tabela 1, disponível no trabalho, pois as características de base são semelhantes entre os grupos. Isto aparentemente pode ter atenuado o viés de confusão, porém a randomização não foi descrita de maneira adequada na metodologia do estudo. Se houver, por exemplo, uma randomização aberta, os pacientes menos graves podem ser alocados para o grupo intervenção, gerando uma superestimava do benefício pró-intervenção.

Veja também: Por que ainda é cedo para liberar o uso de hidroxicloroquina para Covid-19? [vídeo]

Quanto ao contraste proposto para avaliar a intervenção e o controle, não fica claro qual a porcentagem de pacientes que recebeu cada medicação como antivirais, antibióticos, imunoglobulina. Quais os critérios utilizados para principalmente fazer uso de corticoide e quem usou ou não esta medicação. A importância metodológica disso reside no fato de saber se o estudo foi definido com intenção de tratar ou não. Se houve, por exemplo, crossover acentuado.

Devido à ausência dessa descrição fica difícil saber se quem foi randomizado para receber tratamento padrão associado a HCQ ou apenas tratamento padrão foi analisado conforme seus grupos de origem, independente do que ocorreu.

Embora o estudo tenha sido duplo-cego, ainda há possibilidade de viés de aferição por se tratar de desfechos moles e suscetíveis a interpretação do observador. Além disso, nem todos os pacientes apresentavam tosse ou febre no início do estudo.

Uso de desfechos substitutos e ausência de hard endpoints

Não ficou claro quais eram os desfechos primários e secundários, ademais além do desfecho clínico subjetivo, o uso de melhora tomográfica consiste num desfecho substituto que a priori não deve nortear tomada de decisão. Sabe-se que não há correlação necessária entre melhora de sintomas e melhora tomográfica/radiológica.

Ademais, uma das fragilidades do estudo é ausência de desfechos mais importantes como redução do tempo de internação ou mortalidade.

A possibilidade de erros aleatórios e ausência da magnitude do benefício

O estudo tem baixo número amostral, estudos pequenos tendem a dar resultados positivos, enquanto que estudos mais bem delineados e com maior poder estatístico tendem a contrapor estes resultados.

Uma das limitações observadas é ausência de cálculo amostral para definir o número correto de pacientes a serem alocados, objetivando reduções de risco relativos para os grupos alocados. A impressão que fica que a amostra foi definida por conveniência, tratando-se de uma amostra não probabilística.

Leia também: Efeitos oftalmológicos do uso de cloroquina e hidroxicloroquina

Outro ponto interessante, é que não há descrição dos intervalos de confiança e medidas de associação, não permitindo fazer estimativas corretas a respeito da magnitude do benefício da terapia e da precisão dos achados.

Analisando, por exemplo, o desfecho melhora tomográfica, pode-se perceber que houve uma redução de risco de 25,8 % ao subtrairmos a taxa de melhora tomográfica de 80,6% no grupo tratamento por 54,8% no grupo controle, porém é provável que o intervalo de confiança, embora não descrito tenho sido muito amplo, diminuindo a magnitude do benefício. Não obstante, não houve ajuste para covariáveis, sem demonstração tanto da análise bruta como da análise ajustada.

Outra limitação importante é a inclusão de pacientes menos graves, onde a possibilidade para detecção de eventos adversos mais fatais depende de um alto poder estatístico para detecção de diferenças.

Conclusão

Diante das limitações apresentadas, temos um estudo com alto risco de viés e erro aleatórios. Embora metodologicamente diferente do primeiro estudo publicado, mas com resultado igualmente positivo, pela sua qualidade, este trabalho não deve elevar a probabilidade pré-teste de sucesso do tratamento.

Por ora, o nível de evidência continua muito baixo e continuamos a esperar um estudo mais bem delineado que possa nos dar uma resposta mais próxima da estimativa real do efeito da hidroxicloroquina no tratamento da Covid-19. A dúvida contínua.

Referências bibliográficas:

  • Chen Z, et al. Efficacy of hydroxychloroquine in patients with COVID-19: results of a randomized clinical trial. medRxiv 2020.03.22.20040758.
  • Gautret et al. (2020) Hydroxychloroquine and azithromycin as a treatment of COVID‐19: results of an open‐label non‐randomized clinical trial. International Journal of Antimicrobial Agents – In Press 17 March 2020 – DOI : 10.1016/j.ijantimicag.2020.105949

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