Hiperferritinemia: conceitos e diferentes etiologias

Após a exclusão de condições clínicas comuns, deve-se reconhecer a hiperferritinemia como uma pista para doenças diversas.

Agindo como um marcador indireto para o estoque total de ferro corporal, a ferritina é amplamente dosada na prática clínica. Enquanto a hipoferritinemia é altamente específica para deficiência de ferro na ausência de inflamação, a hiperferritinemia é um achado não específico, estando apenas 10% dos casos relacionados a uma sobrecarga de ferro, enquanto o restante é visto como reacional a casos inflamatórios agudos ou crônicos e/ou hipóxia (doenças hepáticas crônicas, síndrome metabólica, consumo de álcool, sepse, autoimunidade, malignidades).

Nos casos em que se possa ter lesão celular ativa em níveis elevados, o achado de hiperferritinemia também é frequente. Os intervalos de referência da ferritina podem variar de acordo com o ensaio analítico utilizado, embora o limite superior seja tipicamente estabelecido em 200 μg/L para mulheres e 300 μg/L para homens.  Além das propriedades de armazenamento de ferro da ferritina, o propósito biológico desta proteína permanece em parte desconhecido. 

Para começarmos a conversa sobre elevações da ferritina, é importante observarmos que os níveis séricos dessa proteína podem variar conforme sexo e idade, não sendo adequado contextualizar os valores encontrados com a situação clínica do paciente.  

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Imagem por Anusorn Nakdee

Diferentes etiologias 

A saturação de transferrina é um parâmetro útil na tentativa de identificar a presença ou ausência de sobrecarga de ferro nos casos em que o paciente se apresenta com hiperferritinemia.

Embora um índice de saturação de transferrina normal afaste, na maioria das vezes, uma absorção de ferro patologicamente aumentada, ela não necessariamente exclui a presença de sobrecarga de ferro (casos mais raros). Ainda assim, utilizamos dessa referência para início de avaliação.  

Hiperferritinemia sem sobrecarga de ferro 

Como dissemos no tópico anterior, todas as formas de inflamação podem elevar os níveis de ferritina e hepcidina a partir do estímulo provocado pela liberação de citocinas pró-inflamatórias. Após a exclusão de condições clínicas comuns, os clínicos devem reconhecer a hiperferritinemia como uma pista para várias doenças autoimunes, inflamatórias (inclusive infecciosas virais) e genéticas. 

Com o fígado sendo o principal órgão de armazenamento de ferro, a ferritina pode atingir níveis acima de 10.000 μg/L nos casos de hepatopatia aguda e crônica, incluindo doença hepática alcoólica e doença hepática gordurosa não alcoólica (DHGNA).

Pacientes com uso abusivo de álcool comumente se apresentam ao consultório com níveis isolados de ferritina < 1000 μg/L, podendo chegar a 40-70% de prevalência nos alcoólatras crônicos. Modelos experimentais mostraram que o álcool promove a estimulação direta da síntese de ferritina e suprime a expressão hepática de hepcidina. Agindo como um teste diagnóstico e terapêutico para a hiperferritinemia induzida pelo álcool, a abstinência resulta em uma rápida diminuição dos níveis séricos de ferritina.

Esteatose hepática e resistência à insulina são achados frequentes em pacientes encaminhados para investigação de hemocromatose com base na hiperferritinemia. 

Condições raras altamente inflamatórias mediadas pelo sistema imunológico como a hemofagocitose linfohistiocitária (HLH) podem causar níveis extremamente elevados de ferritina.

Na população adulta uma variedade de condições como doença renal crônica, infecções e neoplasias hematológicas, pode apresentar níveis de ferritina >50.000 μg/L. Causas genéticas raras de hiperferritinemia sem sobrecarga de ferro associada incluem mutações no gene da cadeia leve de ferritina (gene FTL) e doenças de depósito do sistema reticuloendotelial, como a doença de Gaucher. 

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Hiperferritinemia com sobrecarga de ferro 

As doenças que apresentam sobrecarga de ferro são classificadas como: (1) primárias —  quando causadas por um defeito hereditário na regulação do equilíbrio do ferro; (2) secundárias — quando associadas a condições congênitas ou adquiridas subjacentes não diretamente atribuídas ao metabolismo do ferro.

Durante as condições de sobrecarga de ferro, em que a capacidade de ligação do ferro à transferrina é excedida e uma alta saturação de transferrina é observada, o ferro não ligado à transferrina se deposita principalmente em hepatócitos, células do miocárdio, pâncreas, tireoide e sistema nervoso central. Essa distribuição difusa de ferro está associada à disfunção orgânica por meio da morte celular e complicações como fibrose, aterosclerose e carcinogênese. 

A sobrecarga primária de ferro, sinônimo de hemocromatose hereditária (HH), é, para todos os fins práticos, a principal causa de sobrecarga de ferro grave. Aproximadamente 82 a 90% da doença clínica em pacientes caucasianos com HH (hemocromatose) está relacionada à homozigose para a variante C282Y do gene regulador do ferro homeostático (gene HFE), conhecida como hemocromatose tipo 1 ou hemocromatose HFE.

Embora a mutação no C282Y seja considerada a variante “principal” associada à hemocromatose HFE, a mutação do gene H63D é considerada a variante “menor”, que raramente causa sobrecarga significativa de ferro, mesmo quando presente em heterozigose composta com a primeira.

As hemocromatoses não associadas a mutações do HFE representam um grupo heterogêneo de doenças, e os testes genéticos para esses casos são amplamente indisponíveis (exemplos são as mutações da hemojuvelina, HAMP, TRF2). Causas extremamente raras de sobrecarga primária de ferro incluem defeitos genéticos do metabolismo do ferro causados por variantes nos genes da ceruloplasmina e transferrina. 

A sobrecarga de ferro secundária ocorre em indivíduos que absorvem ou armazenam quantidades excessivas de ferro como resultado de doenças subjacentes diferentes das anteriormente mencionadas ou devido à sobrecarga de ferro iatrogênica por meio de transfusões frequentes de RBC ou administração parenteral de ferro.

Embora a HH possa causar sobrecarga de ferro grave se não tratada, a sobrecarga de ferro secundária devido a doenças hepáticas crônicas geralmente permanece de mínima a moderada.

Em 80% dos casos, a sobrecarga de ferro secundária está associada a uma doença hepática adquirida, e fatores exógenos (por exemplo, álcool, tabagismo e hepatite C) são um pré-requisito. Pacientes submetidos a esquemas crônicos de transfusão de concentrados de hemácias também podem apresentar sobrecarga de ferro, como aqueles em terapia renal substitutiva por hemodiálise, anemia falciforme, talassemias, anemias diseritropoéticas, aplasia de medula, síndromes mielodisplásicas dentre outros.   

A ingestão oral de ferro não causa sobrecarga de ferro, exceto em pacientes com eritropoiese ineficaz e em indivíduos geneticamente predispostos. 

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Referências bibliográficas: Ícone de seta para baixo
  • Sandnes M, Ulvik RJ, Vorland M, Reikvam H. Hyperferritinemia-A Clinical Overview. J Clin Med. 2021;10(9):2008. Published 2021 May 7. DOI:10.3390/jcm10092008