Íleo biliar: como reconhecer e abordar essa complicação da colelitíase

A colelitíase constitui uma elevada porcentagem do diagnóstico dos pacientes que procuram cirurgia. O íleo biliar é uma complicação desse quadro.

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No dia a dia de um ambulatório de Cirurgia Geral, a colelitíase constitui uma elevada porcentagem do diagnóstico dos pacientes que o procuram. Enquanto eles aguardam a tão esperada resolução cirúrgica de sua queixa principal, eventualmente, podem procurar a emergência pelas complicações do quadro base. Portanto, conhecer essas implicações, seus sinais de alarme e as possíveis abordagens terapêuticas é imprescindível para qualquer médico, independente de sua especialidade. Esses pacientes, de uma forma ou de outra, chegarão até você.

O íleo biliar é uma dessas complicações. Conheça a seguir mais sobre esta condição:

DEFINIÇÃO

É uma obstrução intestinal mecânica causada pela impactação de cálculos biliares no trato gastrointestinal, sendo este evento secundário à formação de uma fístula biliodigestiva.

A taxa de mortalidade está entre 12-27% e a de morbidade alcança os 50%, uma vez que os pacientes acometidos são, em geral, idosos, portadores de múltiplas comorbidades, recorrem tardiamente ao atendimento médico e, já sob investigação clínica, o diagnóstico também não é tão precoce quanto deveria.

Esta é uma afecção rara, representando 0,3-0,5% das possíveis complicações biliares. Paralelamente às demais causas de obstrução intestinal, o íleo biliar é responsável por 4% dos casos, no entanto, a frequência eleva para 25% quando a amostra estudada é composta por pessoas com idade superior a 65 anos. É condição prevalente em mulheres, cerca de 3 a 16 vezes mais acometidas, com antecedente clínico significativo, cerca de 50% dos pacientes apresentam história prévia de colelitíase.

É uma doença pouco comum, porém com relevância de discussão por sua elevada morbi-mortalidade. Essa taxa elevada se deve ao risco de 15-22% de evoluir com: pancreatite, colangite, lesão da via biliar, desequilíbrio hidroeletrolítico, abdome agudo obstrutivo e perfurativo, além das complicações desencadeadas pelo pós-operatório ou por uma internação prolongada como pneumonia, tromboembolismo, infarto agudo do miocárdio e choque séptico.

Agora sabemos a definição desta condição, mas quem primeiro a estabeleceu? O primeiro caso de obstrução intestinal por cálculo biliar foi descrito por Bonnet em 1841. Bouveret fez o diagnóstico pré-operatório, mais tarde, em 1893. Porém, já há relatos de um caso semelhante em 1654, descrito por Bartholin durante uma autópsia.

FISIOPATOLOGIA

O íleo biliar advém de episódios recorrentes de colecistite aguda, seguida pela impactação de um cálculo na bolsa de Hartmann. O processo inflamatório que se segue promove ampla formação de aderências entre a vesícula e o trato digestivo. Esse íntimo contato gera isquemia, necrose, erosão e posterior formação de fístula, trajeto de menor resistência, por onde passarão os cálculos biliares. O processo inflamatório crônico vesicular leva a atrofia e a perda de função desta.

O tipo de fístula mais frequente é a colecistoduodenal, representando 77-90% de todos os tipos. Os demais casos respondem pelas colecistocolônicas (8-26,5%), coledocoduodenais (5%) e colecistogástricas (2%).

As fístulas colecistoentéricas foram incluídas na nova Classificação de Csendes utilizada para estratificar as fístulas biliares da Síndrome de Mirizzi, observe abaixo:

GRAU I

Obstrução extrínseca do ducto hepático comum/colédoco por cálculos impactados no infundíbulo da vesícula ou no próprio cístico.

GRAU II

Fístula colecistobiliar com diâmetro inferior a 1/3 da circunferência do dueto hepático comum/colédoco.

GRAU III

Fístula colecistobiliar com diâmetro superior a 2/3 da circunferência do dueto hepático comum/colédoco.

GRAU IV

Fístula colecistobiliar envolvendo toda a circunferência do dueto hepático comum/colédoco.

GRAU V

Qualquer tipo + fístula colecistoentérica. Subdivide-se:

TIPO A: Sem íleo biliar.

TIPO B: Com íleo biliar.

Baseada nessa classificação, podemos inferir que esse artigo se refere ao grau VB. O esquema abaixo permitirá que se entenda melhor a fisiopatologia dessa condição:

ileo biliar
Representação do grau V da nova classificação de Csendes para a Síndrome de Mirizzi.

Esqueceu o que é Síndrome de Mirizzi? Bom, isto é tema para outro artigo. Guarde esta dúvida que em breve te ajudaremos com ela. Por ora, vamos retornar ao nosso tema, o íleo biliar.

O ponto de obstrução mais comum é o íleo distal, em cerca de 50-70% dos casos, por constituir segmento intestinal mais estreito. Para promover obstrução, o cálculo deve ter pelo menos 2 cm.

Existem outros mecanismos de obstrução, tais como: cálculos menores migrando pela ampola de Vater com subsequente crescimento in situ dos mesmos; cálculos que impactam em um intestino já estenosado por outras comorbidades (Doença de Crohn ou diverticulite, por exemplo) e migração inadvertida de cálculo biliar durante a manipulação da vesícula em uma colecistectomia.

QUADRO CLÍNICO

A obstrução intestinal se caracteriza por cursar com distensão abdominal, dor, vômitos, aumento dos ruídos hidroaéreos e parada de eliminação de flatus e fezes. A erosão da parede gastrointestinal, com subsequente formação de fístula, pode gerar hematêmese ou melena.

O quadro pode ser agudo, subagudo ou crônico. Se agudo, observa-se distensão abdominal, vômitos e constipação de aparecimento abrupto. Se subagudo, há eliminação de flatus. E o quadro crônico? É a síndrome de Karewsky com dor recorrente pela passagem intermitente de cálculos biliares pelo intestino, intercalados com períodos assintomáticos, até ocorrer a obstrução completa.

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Evidentemente, o ponto de stop do cálculo biliar determina os sintomas. A obstrução após o piloro, em nível duodenal, obstruindo drenagem gástrica, determina a tão conhecida Síndrome de Bouveret.

O diagnóstico, de maneira simplista, deve ser questionado mediante um paciente de meia idade cursando com obstrução intestinal, apresentando sinais clínicos de colecistite aguda com antecedentes de cálculo biliar. Esta é a tríade de Mordor.

Lembrando que devemos descartar previamente outras causas de obstrução intestinal por serem mais comuns, como as hérnias encarceradas, aderências, neoplasias, intussuscepção e volvo. Há um mnemônico HANG IV que ajuda guardar cada uma dessas causas principais, sendo o G a tradução para o inglês de íleo biliar: gallstone ileus.

DIAGNÓSTICO

O diagnóstico laboratorial, complementar ao clínico, não ajuda a definir conduta, uma vez que os dados coletados são inespecíficos, como o ligeiro aumento no número de leucócitos e o desequilíbrio eletrolítico (hipocalemia 60%, hiponatremia 40% e alcalose metabólica 40%).

A investigação por imagem começa com a rotina de abdome agudo. Deve-se buscar a tríade de Rigler com cálculos radiopacos, pneumobilia e distensão de alças intestinais. O diagnóstico se estabelece com a presença de dois desses sinais. A pneumobilia não é patognomônica, uma vez que ela pode estar presente após procedimentos cirúrgicos, endoscópicos ou pela simples incompetência do esfíncter de Oddi. Se ainda houver mudança da posição do cálculo biliar em imagens seriadas, temos a tétrade de Rigler. Há um quinto sinal, descrito por Balthazar e Schechter, vários níveis de líquido no quadrante superior direito, sendo que o nível medial corresponde ao bulbo duodenal e o lateral à vesícula biliar. O uso de contraste oral, determina aparecimento do sinal de Forchet, a cabeça de serpente com halos claros. Lembre-se que mediante a suspeita de obstrução intestinal não de se pode utilizar o bário como meio de contraste, nem tampouco mediante a suspeita de perfuração pela possibilidade de evoluir com peritonite por bário.

A tomografia computadorizada de abdome com contraste seria o método de escolha, por apresentar sensibilidade superior a 90%.

O ultrassonografia abdominal é operador-dependente, de forma que olhos treinados podem observar colelitíase residual, fístula enterobiliar, aerobilia e até o local de alojamento do cálculo no lúmen intestinal. Ultrassonografia e radiografia combinadas representam sensibilidade de 74%. A sensibilidade aumenta na realização de tomografia após ultrassonografia, com uma falha de apenas 6%.

Curiosamente, a cintilografia, método de escolha para acometimentos da vesícula biliar, é relativamente insensível para o diagnóstico de íleo biliar, detectando apenas 50% das perfurações.

A endoscopia em pacientes com síndrome de Bouveret e a colonoscopia em pacientes com obstrução colônica pode se tornar procedimento diagnóstico e terapêutico. Digo terapêutico pela possibilidade de se realizar litotripsia eletrohidráulica, a extracorpórea por ondas de choque, a intracorpórea por laser e a mecânica por fragmentação. Estes procedimentos endoscópicos devem ser a opção de tratamento em pacientes estáveis e com a presença de profissionais especializados e habilitados.

A combinação destas modalidades propedêuticas permite o diagnóstico pré-operatório em 77% dos casos, porém, algumas muitas vezes, o diagnóstico se faz dentro do centro cirúrgico.

TRATAMENTO

O tratamento dessa condição é essencialmente cirúrgico. Existem as seguintes possibilidades:

– ENTEROLITOTOMIA: é a extração do cálculo através de enterotomia, sem realização de procedimento para resolver a fístula ou a afecção base da vesícula. A enterotomia deve ser feita com uma incisão longitudinal na borda antimesentérica, alguns centímetros distal ao ponto de impacto. O cálculo será ordenhado em direção cranial e retirado através de enterotomia. Todo intestino deve ser inspecionado à procura de cálculos sincrônicos, o que pode ocorrer em 3-16% dos casos. Deve ser feito inventário da cavidade porque pode haver isquemia e necrose no sítio de impactação, com eventual perfuração. Apesar da taxa de recorrência desta técnica ser em torno de 5%, ela é adotada mais frequentemente que as demais, por cumprir seu objetivo principal sem expor os pacientes aos riscos de uma cirurgia mais complicada e prolongada. Torna-se procedimento de escolha, sem necessidade de re-abordagens em pacientes instáveis, com múltiplas comorbidades e com dissecção cirúrgica complicada. A taxa de mortalidade é de 11% comparado a 16,9% da mortalidade em pacientes que se procede a cirurgia em um tempo cirúrgico.

– CIRURGIA EM UM TEMPO CIRÚRGICO: baseia-se na realização de enterolitotomia + ressecção e sutura de trajeto fistuloso + colecistectomia. Há evidência de aumento da morbi-mortalidade pela anastomose e sutura em área de inflamação, além do aumento do tempo cirúrgico. Por isso, ela é realizada apenas em pacientes de baixo risco, estáveis, quando há possibilidade de preparo pré-operatório e disponibilidade de cuidado pós-operatório intensivo.

– CIRURGIA EM DOIS TEMPOS CIRÚRGICOS: é definida pela adoção da enterolitotomia inicialmente, com programação ambulatorial para, em um intervalo de 4 a 6 semanas, ser realizada a colecistectomia e sutura da fístula. Este procedimento tem mortalidade mínima. A decisão pela abordagem posterior é feita quando se tem pacientes jovens, com riscos de complicações biliares subsequentes e nos pacientes com cálculos biliares residuais, com riscos de íleo biliar recorrente.

As complicações possíveis destas abordagens cirúrgicas são infecção da ferida e deiscência de anastomose, em 25-50% dos casos. Outras complicações são: choque séptico, fístula na anastomose, abscesso abdominal, insuficiência renal e infecção do trato urinário.

– LAPAROSCOPIA: a abordagem videolaparoscópica garante tempo de recuperação mais rápido, menor morbimortalidade, tempo de internação mais curto, no entanto requer cirurgião qualificado com instrumentos apropriados. A taxa de conversão para procedimento aberto é de 6,3%.

A resolução desta condição é cirúrgica, mesmo que haja relatos de caso com expulsão espontânea nas fezes. Isto se deve ao risco de colangite, ao aumento de incidência de carcinoma de vesícula biliar e a recorrência de íleo biliar devido aos cálculos biliares residuais. Apesar de se considerar a técnica de enterolitotomia a mais indicada, não há uma técnica definida como padrão. O objetivo final deve ser a resolução da obstrução.

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Referências:

  • Aguilar-Espinosa F et al. Fístula colecistoduodenal, complicación infrecuente de litiasis vesicular: nuestra experiencia em su manejo quirúrgico. Revista de Gastroenterología de México. 2017; 82(4):287-295.
  • Campelo MRO et al. Íleo biliar: um relato de caso. Revista da AMRIGS, Porto Alegre. 2015; 59 (1): 35-8.
  • Lacerda PS et al. Síndrome de Mirizzi: um grande desafio cirúrgico. ABCD, Arq Bras Cir Dig .2014; 27 (3): 226.
  • Ploneda-Valencia CF et al. El íleo biliar: una revisión de la literatura médica. Revista de Gastroenterología de México. 2017; 82 (3): 248-54.
  • Sánchez-Pérez EA et al. Gallstone ileus, experience in the Dr. Eduardo Liceaga General Hospital of Mexico. Cirugía y Cirujanos. 2017; 85(2):114-20.
  • Santos LRA et al. Íleo biliar: relato de caso. Rev Med Minas Gerais 2016; 26: e-1809.
  • Townsend CM et al. Sabiston Tratado de Cirurgia: A base biológica da prática cirúrgica moderna. Tradução 19a edição. Rio de Janeiro: Elsevier, 2015.

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