Importância da triagem para imunodeficiências combinadas graves

As imunodeficiências combinadas graves abrangem um grupo de doenças genéticas heterogêneas, caracterizadas por fragilidade da imunidade.

As imunodeficiências combinadas graves (severe combined immunodeficiencies – SCID) abrangem um grupo de doenças genéticas heterogêneas, caracterizadas por fragilidade da imunidade celular e humoral. O diagnóstico de SCID é uma emergência pediátrica: os bebês são assintomáticos ao nascer, mas podem evoluir para óbito por infecções durante o primeiro ano de vida, caso não sejam diagnosticados e tratados adequadamente. A maioria dos pacientes com SCID apresenta linfopenia substancial de células T. As células B, quando presentes, não são funcionais, devido à falta de interação com as células T. A incidência de SCID é estimada em 1/50.000 a 1/100.000 nascimentos. Esses números podem ser subestimados, porque algumas crianças de fato podem morrer antes que a doença seja diagnosticada.

Em recente artigo publicado no jornal francês Archives de Pédiatrie, os pesquisadores Thomas e colaboradores destacaram a importância da necessidade de triagem neonatal da SCID. Pontos relevantes abordados no texto encontram-se resumidos a seguir.

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Bebê passa por testes para verificação de imunodeficiências combinadas graves

Apresentação clínica

Ao nascimento, o exame físico da maioria dos bebês com SCID é normal. Eritrodermia secundária a células T alorreativas maternas (doença do enxerto contra hospedeiro) ou devido a células T autorreativas (síndrome de Omenn) pode ser observada.

Em menos de 10% dos casos, há história familiar, sendo a realização do teste imunológico necessária ao nascimento. Ao atingir uma idade entre 3 e 6 meses, os pacientes geralmente desenvolvem infecções graves por vírus sincicial respiratório (bronquiolite), rotavírus (diarreia), citomegalovírus (CMV), bactérias ou fungos oportunistas como, por exemplo, Pneumocystis (isso porque, nessa idade, a concentração sérica de IgG transferida da mãe para o feto no último trimestre da gestação começa a reduzir, porém os sinais e sintomas também podem se iniciar mais tarde, até o segundo ano de vida).

O quadro clínico pode ser caracterizado também por déficit de crescimento, mau estado geral e diarreia crônica, (que resulta em atrasos tanto no crescimento quanto no desenvolvimento).

Exames complementares

Linfopenia é encontrada na maioria das crianças com SCID (linfócitos abaixo de 2.500/mm3 ao nascimento, ou abaixo de 4.000/mm3 aos 6 meses são anormais e requerem investigação). Uma análise de subconjunto de linfócitos indica linfopenia grave de células T(CD3 + < 1.500/mm3). A radiografia de tórax mostra ausência anormal de sombra tímica.

Diagnóstico genético

A SCID cobre uma gama de anomalias genéticas e suas variantes são classificadas de acordo com a presença ou ausência de linfócitos T, B e natural-killer. Nos últimos 20 anos, a análise molecular identificou mais de uma dúzia de genes ligados a SCID.

Screening neonatal

Embora a SCID seja rara, atende aos principais critérios para a triagem neonatal, pois é uma doença grave, assintomática ao nascimento, fácil de diagnosticar e existe um tratamento curativo. As práticas de triagem neonatal para SCID variam amplamente na Europa. Uma análise das práticas nos países europeus mostra que essa triagem varia de 2 a 29 doenças, dependendo do país, sem correlação com o nível econômico.

Thomas e colaboradores descreveram o método para triagem de SCID desenvolvido por Chan e Puck em 2005, baseado na quantificação dos círculos de excisão dos receptores de células T (T-cell receptor excision circles – TRECs). Os TRECs são sequências de DNA removidas após o rearranjo de receptor de células T (T cell receptor – TCR) α e β, durante a maturação de células T.

Dessa forma, as contagens de TREC refletem a produção tímica de células T maduras. Os TRECs são detectados em células T naïve e não são encontrados em células B ou T de memória. Portanto, a contagem dos TRECs em linfócitos do sangue periférico é uma boa maneira de quantificar os emigrantes tímicos recentes: a timopoiese aumenta os níveis de TREC, enquanto a expansão periférica ou a falta de timopoiese os reduz. Os TRECs podem ser detectados por PCR utilizando manchas secas de sangue sobre papel-filtro coletadas de cada neonato. No Brasil, são utilizados os cartões de Guthrie para a realização do teste do pezinho.

Causas de linfopenia neonatal (níveis anormais de TRECs ao nascimento) incluem: SCID e SCID com vazamento, síndromes de comprometimento de células T (síndrome de DiGeorge; síndrome de Down e mutação ATM), comprometimento secundário de células T (malformação cardíaca; derrame quiloso; medicação materna, como azatioprina; prematuridade e linfopenia idiopática transitória ou moderada).

É importante lembrar que também é possível investigar deficiências de células B, por meio da quantificação por PCR dos KRECs (kappa-deleting recombination excision circles), que constituem subprodutos da formação do receptor de célula B. A quantificação em conjunto de TRECs e KRECs por PCR pode auxiliar na investigação sobre quais tipos celulares estão afetados em cada paciente, colaborando com o direcionamento da pesquisa genético-molecular.

Estudo DEPISTREC

O estudo DEPISTREC incluiu quase 200.000 recém-nascidos (RN) na França em um período de 2 anos. O grupo experimental de crianças submetidas à triagem neonatal foi comparado a um grupo controle de crianças com diagnóstico de SCID, sem triagem, no mesmo período. Foram identificadas três crianças com imunodeficiências combinadas graves (incidência de 1/63.500 nascidos vivos). Também foram identificados 59 RN com linfopenia de células T não SCID no grupo de triagem. Entre eles, dois tinham síndrome de DiGeorge completamente assintomática; três imunodeficiências combinadas [uma deficiência de RAG1 heterozigótica composta (SCID com vazamento), uma mutação TTC7A e uma deficiência de ADA heterozigótica] e uma ATM.

O lactente com deficiência de RAG1 foi submetido a transplante com sucesso aos 18 meses, antes de complicações relacionadas à sua doença. Uma linfopenia grave também foi detectada em uma criança cuja mãe recebeu azatioprina para uma doença inflamatória do trato gastrointestinal durante a gravidez. No grupo controle, 28 pacientes com SCID foram incluídos.

A análise retrospectiva de 21 amostras de sangue periférico desses pacientes com SCID mostrou resultados de triagem TREC positivos, confirmando que o diagnóstico de imunodeficiências combinadas graves ao nascimento teria sido possível por meio da triagem. Além disso, cinco crianças deste grupo morreram com infecções graves devido a SCID antes de poderem receber transplantes. É muito provável que o diagnóstico neonatal por meio da análise de TREC pudesse ter evitado essas mortes. Thomas e colaboradores enfatizaram que esse estudo demonstrou que o rastreamento de rotina para SCID é viável e eficaz e oferece o benefício adicional de permitir o diagnóstico de linfopenia não SCID.

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Análise econômica

A análise econômica do estudo DEPISTREC tornou possível calcular o custo do teste. No entanto, não permitiu a confirmação do benefício de se fazer o transplante mais precocemente em termos de custo médio, devido ao número muito pequeno de crianças do grupo experimental com diagnóstico de SCID (três bebês, sendo que um deles faleceu). O teste é relativamente barato: no DEPISTREC, o custo foi de $3,70. Nos Estados Unidos, seu custo aproximado é de $4,22 (Chan et al.) Para Thomas e colaboradores, dada a raridade da SCID e o custo do atendimento aos pacientes com esse diagnóstico, estudos são necessários para incentivar as autoridades de saúde a adotarem exames de rotina para a doença.

Triagem em prematuros

Thomas e colaboradores orientam o seguinte protocolo para triagem de imunodeficiências combinadas graves em bebês prematuros:

  • Amostras de sangue periférico devem ser coletadas durante os primeiros dias de vida, geralmente por volta de 72 horas, independentemente da idade gestacional, para que o bebê possa ser tratado rapidamente se os TRECs não forem detectados;
  • Se a primeira amostra de sangue periférico for positiva, mas os níveis de TRECs estão acima do valor de corte escolhido, uma segunda amostra deve ser coletada próximo ao termo, isto é, por volta de 37 semanas de idade gestacional. Esse atraso na segunda coleta maximiza a chance de eliminação de falsos positivos, mas é curto o suficiente para evitar a perda de seguimento da criança. Se os resultados também forem anormais para a segunda amostra, uma análise de subconjunto de linfócitos deve ser realizada e uma consulta deve ser marcada com o pediatra1.

Abordagem diagnóstica para linfopenia grave

Quando níveis anormais de TREC são detectados e confirmados por triagem, um procedimento diagnóstico pode ser conduzido para identificar precisamente a causa da linfopenia. Uma consulta com o pediatra deve ser agendada o mais rápido possível para avaliação do diagnóstico. Uma história cuidadosa e um exame físico são necessários, além de hemograma e análise da população de linfócitos. Se a suspeita de SCID é confirmada, análises de DNA molecular são realizadas para identificar a anormalidade genética.

Os pesquisadores descreveram que esse procedimento é o mesmo realizado para crianças identificadas sem rastreio e está em conformidade com o recomendado pelo French DIP reference center (CEREDIH). A preocupação imediata é identificar pacientes com imunodeficiências combinadas graves que precisarão de medidas de proteção e terapia de reconstituição do sistema imunológico. A triagem TREC também identifica bebês com uma variedade de distúrbios não SCID nos quais a linfopenia T-cell é, às vezes, grave: síndromes congênitas, como síndrome de DiGeorge, trissomia do 21 e ataxia-telangiectasia; doenças cardíacas congênitas; síndromes congênitas e tratamento da mãe com medicação imunossupressora1.

Importante!

  • Na SCID, é contraindicado o uso de vacinas vivas como, por exemplo, BCG, rotavírus, varicela e MMR, devido ao risco de doença pelo microrganismo viral (reações locais à vacina BCG são definidas como BCGite. Já as disseminadas são BCGose);
  • Os hemoderivados devem ser CMV-negativos e leucorreduzidos;
  • A amamentação é contraindicada se a mãe for CMV positivo, pois o vírus pode ser transmitido pelo leite materno;
  • As crianças devem ser colocadas em áreas protegidas para limitar o risco de infecções;
  • Cuidados específicos devem ser prestados por equipes especializadas em imunologia pediátrica para iniciar o tratamento curativo (transplante alogênico de células-tronco, terapia de reposição enzimática, para deficiência de adenosina desaminase, ou terapia gênica em casos selecionados);
  • A idade no momento do transplante e o histórico de infecções são os principais preditores de um aloenxerto de medula óssea bem-sucedido. Os pesquisadores citaram o estudo de Pai e colaboradores realizado em 2014, em que a taxa de sobrevivência foi maior quando as crianças foram transplantadas antes dos 3,5 meses de idade e não estavam infectadas no momento do transplante de células-tronco hematopoiéticas.

Conclusões

Se a SCID não for detectada por meio de triagem neonatal, os pacientes desenvolvem infecções graves de início precoce, com graves sequelas, limitando a eficácia dos tratamentos curativos. A terapia com reposição de imunoglobulinas, antibióticos e antifúngicos pode auxiliar na prevenção de infecções, porém não é curativa. No Brasil, a Sociedade Brasileira de Pediatra (SBP) descreve que o tratamento curativo disponível é o transplante de células-tronco hematopoiéticas (TCTH). Antes do surgimento de infecções, o TCTH possui maior chance de sucesso no tratamento. Quando realizado em até 3 meses e meio de vida, a sobrevivência é de 96%. No entanto, este número é reduzido para 66%, devido ao estabelecimento de infecções. Para a SBP, o rastreamento universal para SCID por meio do teste do pezinho pode ser bastante vantajoso, pois a identificação precoce possibilita salvar vidas e minimizar substancialmente os gastos com tratamentos após o surgimento de infecções.

A finalidade da triagem neonatal é detectar os RN pré-sintomáticos que apresentem doenças graves ou fatais que podem ser tratadas com sucesso. No momento, no Brasil, o acesso a exames que quantifiquem linfócitos e suas subpopulações é limitado a laboratórios de pesquisa e aos grandes centros. A quantificação de TRECs e KRECs em amostras de sangue seco em papel-filtro possibilita uma triagem de amostras provenientes de quaisquer regiões geográficas e um direcionamento a exames específicos, preservando recursos e tempo. Não há estudos, no Brasil, sobre os gastos de pacientes com imunodeficiências primárias no sistema de saúde. No entanto, algumas pesquisas já comprovaram o custo‑benefício da inclusão da triagem neonatal para linfopenias T nos Estados Unidos, salientando que o tratamento dos pacientes diagnosticados antes do surgimento de infecções e consequentes internações hospitalares é até quatro vezes menor que o de pacientes que foram diagnosticados mais tardiamente.

Referências bibliográficas:

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