Interpretação de exames laboratoriais: o que todo médico deve saber – Parte I

Um dos elementos essenciais para a adequada tomada de decisão médica é saber interpretar corretamente os resultados de exames laboratoriais.

O exercício da medicina é uma tarefa complexa.  São fundamentais as habilidades de coleta, análise, e processamento dos dados obtidos por entrevista, exame físico, e exames complementares, para que o médico possa tomar a melhor decisão possível, diante de cada situação. Um dos elementos essenciais para a adequada tomada de decisão é a interpretação correta dos resultados de exames laboratoriais, sempre à luz do contexto clínico, e tomando o devido cuidado para não se iludir com achados laboratoriais que ocorrem simplesmente ao acaso.

Saiba mais: Exames laboratoriais: como abordar valores críticos?

Interpretação de exames laboratoriais: o que todo médico deve saber – Parte I

Leia a situação clínica a seguir

Um paciente realiza acompanhamento médico por hipertrigliceridemia, retornando com exames laboratoriais solicitados na última consulta, ocasião em que foi orientado a realizar mudanças de estilo de vida.  O resultado do primeiro exame laboratorial (triglicérides: 218) é comparado com o segundo resultado (triglicérides: 131), coletado três meses após a orientação de mudanças no estilo de vida. O médico que avaliou o paciente concluiu que houve uma redução importante no valor do triglicérides, atribuída às mudanças de estilo de vida adotadas pelo paciente.

Você concorda com a interpretação realizada pelo médico?

Para interpretar corretamente situações como a apresentada e tomar decisões adequadas, é importante entender que variações em exames laboratoriais nem sempre resultam de uma intervenção realizada: eles podem ocorrer simplesmente ao acaso.

A variação no resultado de duas medidas consecutivas sofre a influência do erro aleatório, inerente à mensuração de qualquer fenômeno biológico. Por isso, para concluir que a redução do valor do triglicérides de 218 para 131 representou uma diferença importante, e não pelo acaso, é importante conhecer quando existe uma variação significativa da variável mensurada. Isto é, uma variação maior do que poderia ser explicado pelo erro aleatório, em sua dimensão analítica (relacionado à análise laboratorial) e biológica (relacionada à condição dinâmica do funcionamento orgânico). Essa variação não é algo que devemos concluir com base na intuição, mas através do cálculo da diferença crítica ou valor de referência para a mudança.

A diferença crítica, ou valor de referência para a mudança, é uma ferramenta que auxilia a julgar se a diferença observada em duas análises sequenciais de um mesmo parâmetro laboratorial é estatisticamente significativa. Considerando que o resultado da análise laboratorial solicitada apresenta uma distribuição normal (gaussiana), e com um intervalo de confiança de 95% para uma mudança bidirecional (aumento ou diminuição do valor da análise laboratorial solicitada), a diferença crítica é obtida pela seguinte fórmula:

  • RCV = 2,77 x √(CVa2 + CVb2)

Onde:

  • RCV: valor de referência para a mudança (do inglês: reference change value)
  • CVa: coeficiente de variação analítica
  • CVb: coeficiente de variação biológica

Nesta fórmula, o coeficiente de variação analítica (CVa) é um dado obtido pelo controle interno de qualidade do laboratório, podendo ser fornecido no laudo ou através de contato com o laboratório. O coeficiente de variação biológica (CVb) é obtido em bases de dados da literatura médica (site: biologicalvariation.eu ), sendo o elemento de maior impacto na determinação do valor de referência para a mudança.

Como eu realizo a aplicação desse conceito na prática?

Observe a seguir o cálculo da diferença crítica (diferença para mudança), utilizando o exemplo da medida dos triglicérides. Considerando CVa: 2,5% e CVb: 20,5%, tem-se que:

  • RCV = 2,77 x √ (2,5% 2 + 20,5%2)
  • RCV = 57,20 %

A conclusão é que a segunda dosagem de triglicérides (TG) pode ser 57,2% maior (TG: 343) ou menor (TG: 93) do que a primeira (TG: 218), simplesmente ao acaso, por variação laboratorial. Portanto, como o valor obtido na segunda mensuração está dentro do intervalo de variação atribuível ao acaso, constata-se que o resultado não variou de modo estatisticamente significativo. Assim, não é adequado concluir que a redução observada foi resultado da adoção de mudanças no estilo de vida pelo paciente.

Para uma aplicação rápida durante a consulta clínica, sem necessidade de nenhum cálculo matemático, existe uma valiosa ferramenta disponível neste link.

O valor de referência para mudança é uma ferramenta para redução de incertezas

Uma vez que toda mensuração laboratorial está sujeita a variações biológicas, assim como observado no exemplo acima, outros exames laboratoriais estão sujeitos a grandes variações em seus resultados. É o caso da dosagem de TSH, ferro sérico, bilirrubina total, e lactato, que possuem um elevado coeficiente de variação biológica (CVb). Outras mensurações estão associadas a pequenas variações, como no caso da dosagem de sódio, cálcio e albumina.

Portanto, como a incerteza decorrente da variação biológica não pode ser eliminada, a melhor maneira de lidar com essa condição, ao interpretar um resultado laboratorial, é incorporando a incerteza ao processo de decisão, por meio da realização da estimativa do valor de referência para a mudança. Dessa maneira, o médico aproxima-se de uma interpretação mais acurada dos dados laboratoriais de que dispõe.

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Vale lembrar que os conceitos citados neste texto são mais uma ferramenta para compor o repertório de recursos que podemos usar para tomada de decisão.  Porém, eles não devem ser utilizados de maneira isolada e determinística. Pelo contrário, devem ser empregados de modo ponderado, em combinação com outras ferramentas de apoio à tomada de decisão, sempre com um olhar atento ao contexto clínico do paciente.

Referências bibliográficas:

  • McCormack JP, Holmes D T. Your results may vary: the imprecision of medical measurements. BMJ. 2020;368. doi: https://doi.org/10.1136/bmj.m149
  • Omar F, Van Der Watt GF, Pillay TS. Reference change values: how useful are they?. Journal of Clinical Pathology. 2008;61(4):426-427, 2008. doi.: 10.1136/jcp.2007.054833.
  • Fraser CG. Reference change values. Clinical chemistry and laboratory medicine. 2012;50(5):807-812. doi10.1515/CCLM.2011.733
  • Faludi AA, et al. Atualização da diretriz brasileira de dislipidemias e prevenção da aterosclerose–2017. Arquivos brasileiros de cardiologia. 2017;109:1-76. doi10.5935/abc.20170121

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