Interpretação de exames laboratoriais: o que todo médico deve saber – Parte II

A incerteza é condição indissociável da medicina. Está presente em todas as nossas interpretações e conclusões sobre os resultados de exames. Saiba mais.

A incerteza é condição indissociável do exercício da medicina. Ela está presente em todas as nossas interpretações e conclusões sobre os resultados de exames laboratoriais, apesar da aparente certeza sugerida pela objetividade numérica de seus resultados e de seus valores de referência. Por isso, um resultado de exame anormal, isto é, fora da faixa de referência, não deve ser associado automaticamente à doença. Da mesma forma, um resultado normal, dentro da faixa de referência, não deve ser entendido como comprovação de saúde. Saber disso é importante para lidar adequadamente com alterações inesperadas em um exame e interpretá-las dentro do contexto clínico. É igualmente importante para evitar a solicitação de exames em excesso, sem a prévia fundamentação em um raciocínio clínico. Mesmo uma pessoa considerada saudável pode ter resultados anormais em exames laboratoriais e a probabilidade de que isso aconteça é maior quanto maior o número de exames laboratoriais solicitados, como veremos a seguir. 

Saiba mais: Exames laboratoriais: como abordar valores críticos?

exames

Leia o caso clínico a seguir e reflita se já se deparou com uma situação semelhante

Um paciente comparece ao consultório médico para a realização de um “check-up”. Após uma conversa inicial, foi constatado que o paciente é assintomático e não apresenta comorbidades, porém deseja a solicitação de exames laboratoriais para, segundo ele, “ter a certeza de que está tudo bem”. 

O médico procede à solicitação e começa solicitando a dosagem de sódio, potássio, uréia, creatinina, cálcio, magnésio, fósforo, PTH, 25-OH-vitamina D… Depois, continua com a solicitação de TGO, TGP, FA, GGT, bilirrubinas, TSH, vitamina B12, ácido fólico, ferritina,  finalizando com dosagens de zinco e selênio, atendendo a um pedido específico do paciente. É agendado um retorno para avaliação dos resultados.

Por que uma pessoa considerada saudável pode ter resultados anormais em exames laboratoriais?

Além de erros pré-analíticos (relacionados à maneira de coleta e transporte da amostra), analíticos (relacionados ao processamento da amostra no laboratório) e erros de identificação do exame, um indivíduo saudável pode ter resultados de exames laboratoriais anormais por uma questão puramente estatística. Considerando que cada variável laboratorial mensurada apresenta uma distribuição normal, em um intervalo de confiança de 95%, o resultado de um único exame laboratorial de um paciente saudável apresenta 95% de probabilidade de ser normal e 5% de ser anormal, fora do intervalo de referência. Considerando que o resultado de cada exame é independente, é possível estimar a probabilidade de pelo menos um resultado alterado, simplesmente devido ao acaso, nesse conjunto de exames solicitados. Aplicando esse conceito à situação clínica acima, temos que:

  • Número de exames laboratoriais solicitados: 20
  • Probabilidade de que todos sejam normais:  (95%)20   = 36%
  • Probabilidade de que pelo menos um exame esteja alterado: 1 – (95%)20 = 64%

Portanto, na situação clínica apresentada, dentre todos os 20 exames solicitados, existe uma probabilidade de 64% que pelo menos um venha alterado, mesmo sendo o paciente saudável. Vale lembrar que os pressupostos de que as variáveis apresentam uma distribuição normal, e de que os resultados são independentes, representam simplificações cujo objetivo é explicar a lição pouco compreendida de que não devemos solicitar exames complementares sem a devida fundamentação clínica.

O paciente retorna antes da data prevista solicitando uma consulta de urgência

O paciente é atendido e refere preocupação em relação a um resultado de exame alterado. O médico avalia os exames solicitados e identifica que o resultado do TSH está ligeiramente acima do intervalo de referência informado pelo laboratório, exatamente o motivo da preocupação do paciente. O médico tranquiliza o paciente e propõe repetir a dosagem do TSH para verificar se ela se confirma. Na nova dosagem o resultado está dentro do intervalo de referência e o paciente diz que, enfim, sente-se aliviado.

O que você faria nessa situação? Por que o médico optou por repetir o exame alterado?

Após a solicitação de exames laboratoriais sem a devida fundamentação clínica, a observação de um resultado inesperadamente fora do intervalo de referência deve fazer com que o médico busque na história e no exame físico dados que o auxiliem a distinguir uma alteração atribuível ao acaso de uma alteração reveladora de um processo patológico. Além disso, o médico deve avaliar o grau em que o resultado obtido se distancia do valor de referência, e a presença de alteração concomitante em dosagens laboratoriais relacionadas. 

Uma estratégia complementar importante é repetir a dosagem laboratorial inesperadamente alterada com o objetivo de avaliar se a alteração persiste ou se o novo resultado está situado dentro do intervalo de referência. Essa decisão encontra justificativa teórica no importante (e muitas vezes negligenciado) fenômeno de regressão à média.

O que é regressão à média?

Regressão à média é um fenômeno estatístico universal com importantes implicações na área da saúde, tanto em estudos epidemiológicos quanto na prática clínica. Ele consiste no fato de que a obtenção inicial de um resultado extremo na mensuração de um fenômeno será mais provavelmente seguida por um resultado mais próximo à média em uma nova mensuração do fenômeno, simplesmente devido ao acaso. A regressão à média é um dos motivos pelos quais é imprescindível a existência de um grupo controle em um estudo de intervenção que tenha como objetivo avaliar a eficácia de uma nova terapia para determinada condição. A nova terapia apresentará validade somente se a melhora obtida no grupo intervenção superar estatisticamente a melhora obtida no grupo controle, isto é, se superar a melhora que ocorreu no grupo controle devido simplesmente pela regressão à média.

Na prática clínica, o desconhecimento desse fenômeno estatístico pode levar a interpretações equivocadas das variações de resultados em exames laboratoriais. O médico, ao observar uma redução no valor mensurado após orientar determinada intervenção, pode concluir equivocadamente que a redução observada foi resultado da intervenção proposta, quando a redução ocorrida aconteceu pela regressão à média.

Como lidar com a regressão à média na prática clínica?

 Para decidir se a melhora no resultado de um exame laboratorial foi além do que seria esperado pelo efeito de regressão à média, uma estratégia que pode ser empregada é a estimativa do valor de referência para a mudança (ou diferença crítica), conceito explorado no primeiro artigo desta série. 

Além disso, para evitar conclusões causais a partir do fenômeno de regressão à média, ao se deparar com alterações laboratoriais que não se justificam clinicamente ou por outros dados laboratoriais obtidos, é importante sempre repetir o resultado alterado antes de propor uma intervenção. Assim, uma normalização do valor inicialmente alterado poderá ser atribuída ao fenômeno de regressão à média.

Mensagens finais

  • A probabilidade de encontrar um exame alterado é maior quanto mais exames são solicitados.
  • A solicitação de exames laboratoriais sem critério clínico pode gerar uma série de consequências não intencionais. Por exemplo: a necessidade de mais exames para entender uma alteração inicial, encaminhamentos médicos desnecessários, aumento de custo para o paciente / sistema de saúde, e ansiedade desnecessária em pacientes e familiares (como no caso acima). 
  • É fundamental compreender o conceito de regressão à média na hora de interpretar um resultado laboratorial que indica “normalização” de uma alteração previamente encontrada
  • A solicitação racional de recursos complementares é indispensável para o exercício de uma medicina que pretende verdadeiramente solucionar problemas e cuidar adequadamente do paciente.

Referências bibliográficas:

  • Whyte, Martin Brunel; Kelly, Philip. The normal range: it is not normal and it is not a range. Postgraduate medical journal, v. 94, n. 1117, p. 613-616, 2018.
  • Fletcher, Grant S. Epidemiologia Clínica-: Elementos Essenciais. Artmed Editora, 2021.
  • Bobbio, M. Medicina demais! O uso excessivo pode ser nocivo à saúde. (trad. Mônica Gonçalves). Barueri: Manole, 2020. 208p
  • Morton, Veronica; Torgerson, David J. Effect of regression to the mean on decision making in health care. Bmj, v. 326, n. 7398, p. 1083-1084, 2003.
  • Smellie, W. S. When is” abnormal” abnormal? Dealing with the slightly out of range laboratory result. Journal of Clinical Pathology, v. 59, n. 10, p. 1005-1007, 2006.
  • Phillips, Pat. Pitfalls in interpreting laboratory results. 2009.

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