ISRS e comportamento agressivo: estamos ignorando as evidências?

Os inibidores seletivos da recaptação de serotonina (ISRSs), em meados dos anos 1980, revolucionaram o tratamento de transtornos de humor.

A introdução dos inibidores seletivos da recaptação de serotonina (ISRSs) ao mercado, em meados dos anos 1980, revolucionou o tratamento de transtornos de humor por seu perfil mais ameno em relação a efeitos adversos. Contudo, a popularização desses fármacos não ocorreu sem controvérsias. Associações com comportamento agressivo e risco aumentado de suicídio, por exemplo, são discutidas há mais de 20 anos.

Atualmente, o corpo de evidências que relaciona o uso de ISRSs à agressividade permite que algumas considerações mais consistentes sejam formuladas. Ainda que não haja nenhuma razão para mudanças radicais em relação a prescrição desses fármacos, é possível argumentar que o problema, talvez por sua genuína inconveniência, seja menos discutido do que deveria.

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Exemplos de inibidores seletivos da recaptação de serotonina (ISRSs)

Histórico do tratamento para depressão

Até meados do século XX, o arsenal farmacológico para o tratamento da depressão se resumia a opioides, anfetaminas e um punhado de drogas e ervas para as quais o racional de uso era muito mais especulativo do que empírico. Na década de 1950, a introdução dos inibidores da MAO e antidepressivos tricíclicos ampliou as possibilidades terapêuticas para os transtornos do humor. Ainda assim, o perfil de efeitos adversos dessas drogas limitava seu uso.

Este cenário seria revolucionado nos anos 1980 com a introdução de drogas mais seletivas. A fluoxetina, primeiro inibidor seletivo da recaptação de serotonina, foi sintetizada em 1972 e aprovada pelo FDA para uso em transtornos depressivos em 1987, inaugurando uma geração de antidepressivos que rapidamente se tornaram imensamente populares. Apesar de eventuais efeitos colaterais conhecidos, como disfunção sexual e ganho de peso, os ISRSs foram amplamente reconhecidos como um importante acréscimo no arsenal médico.

Como os ISRSs evidentemente auxiliam na redução de sintomas de ansiedade e depressão, assumir que comportamentos agressivos também fossem aliviados pelo tratamento era um prognóstico razoável. Além disso, estudos com modelos animais e em humanos indicavam uma relação inversa entre níveis serotoninérgicos e agressividade, isto é, quanto menos serotonina, mais violência, o que ficou conhecido como hipótese da deficiência serotoninérgica. Ainda que essa relação esteja sendo reexaminada atualmente, à época, tal hipótese aumentava ainda mais a expectativa para que o aumento da disponibilidade de serotonina nas fendas sinápticas resultasse em uma redução de incidência de comportamentos violentos. Mais um ponto para os inibidores seletivos.

Correlacionando ISRSs ao comportamento agressivo

Em 1997, um pequeno e limitado ensaio clínico testou a hipótese de que os ISRSs diminuiriam o comportamento agressivo em adolescentes internados em um hospital psiquiátrico. Para a surpresa dos autores, o uso dos fármacos foi associado com aumento de agressão verbal, agressão física contra objetos e agressão física contra si. Apesar de um desenho amplamente insuficiente para qualquer conclusão mais sólida, o fato de que os resultados obtidos contrariavam a lógica pressuposta se uniu a uma desconfiança latente em relação a essa associação, ligando o alerta para um possível efeito paradoxal. Desde então, diversos estudos se somaram à discussão acerca da correlação entre ISRSs e comportamento agressivo. Apesar de os resultados dessas pesquisas não indicarem um entendimento finalizado e homogêneo sobre o tema, evidências epidemiológicas de boa qualidade parecem apresentar uma concordância relevante entre si.

A partir de dados do FDA, um estudo de farmacovigilância procurou estabelecer quais drogas estavam mais associadas com relatos de violência. O resultado indicou que fluoxetina, paroxetina, fluvoxamina, sertralina, escitalopram e citalopram — ou seja, todos os ISRSs atualmente disponíveis para uso no EUA — estavam na lista dos fármacos com reportes de violência desproporcionalmente altos, parte deles no topo da lista.

Em 2015, uma meta-análise de 11 ensaios clínicos randomizados demonstrou um aumento de comportamento agressivo em populações de crianças e adolescentes que receberam ISRSs. O mesmo estudo, no entanto, não encontrou a mesma relação para adultos. Em 2016, um estudo observacional de uma coorte histórica incluindo cerca de 60.000 jovens finlandeses avaliou a associação entre o uso de antidepressivos e condenação por crimes violentos, encontrando uma associação direta entre o uso de tais drogas (tanto antidepressivos em geral quanto inibidores seletivos) e um aumento de condenações.

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Análise contemporânea do efeito dos ISRSs

O estudo mais recente a testar a hipótese de que o uso de ISRS está associado a um aumento de comportamento agressivo e em grande parte o responsável por reacender esse debate foi publicado na metade deste ano.

Com desenho semelhante ao estudo finlandês, mas mais abrangente, a associação entre ISRS e o aumento de crimes violentos foi testada a partir de registros oficiais suecos. Todos os indivíduos nascidos no país com 15 a 60 anos que fizeram uso de algum ISRS entre 2006 e 2013 foram incluídos na análise, somando quase 800 mil pessoas. Dois tipos de comparação foram utilizados: comparações entre os indivíduos e comparações dos indivíduos com eles mesmos, contrastando períodos de tratamento com períodos sem tratamento.

A comparação entre indivíduos indicou risco aumentado de condenação para crimes violentos em indivíduos que usavam ISRSs entre 15 e 34 anos, mas não em populações de idade mais elevada. Na comparação dos indivíduos com eles mesmos entre períodos com e sem tratamento, após controlar para variáveis possivelmente confundidoras, os pacientes tiveram um risco maior de cometer crimes durante períodos em que estavam em uso de ISRS quando comparado a períodos em que estavam sem essas medicações.

Essa diferença de risco foi estatisticamente significativa em todas as faixas etárias, exceto entre 35 e 44 anos, onde o intervalo de confiança do Hazard Ratio cruzava a unidade, porém se mantendo quase que inteiramente na direção de um aumento de risco (HR 1,13, 95% CI 0,99-1,33). Em indivíduos com histórico de crimes violentos prévios, a associação pareceu ser ainda mais clara.

Uma das principais controvérsias a ser levantada em relação a esse desenho poderia ser o potencial confundidor inequívoco de que indivíduos em vigência de transtornos psiquiátricos estariam sob maior risco de cometerem crimes violentos. Nesse sentido, é válido argumentar que a mesma associação foi testada para o uso de outros antidepressivos que não fossem ISRSs e também para outras drogas psicotrópicas, sem atingir significância estatística em nenhum dos casos. Contudo, o intervalo de confiança para os antidepressivos não ISRS foi limítrofe para significância (HR 1,09, 95% CI 1,00-1,19) e, além disso, uma relação direta foi encontrada para o uso de benzodiazepínicos, o que pode dar margem para o entendimento de que a associação estabelecida pode estar relacionada à exacerbação de sintomas psiquiátricos e não ao uso do fármaco propriamente. Ainda assim, o efeito específico dos ISRSs em relação a outros psicotrópicos neste estudo é um achado consistente que exige ponderação.

Estudos com resultados divergentes sobre ISRSs

Em face das evidências expostas, cabe um olhar crítico às provas contrárias a essa correlação que são por vezes citadas. Uma revisão não sistemática de 2001 concluiu que não há evidências convincentes que liguem o uso de ISRSs à agressividade baseado em uma apreciação da literatura à época. A metodologia de tal estudo é descrita com extrema parcimônia, resumindo-se a um curto parágrafo que menciona que as evidências científicas relativas a ISRSs, 5HT e agressão foram revisadas no Medline, mas não necessariamente se restringindo a esta base.

Mais recentemente, um ensaio clínico com 292 participantes avaliou o uso de sertralina contra placebo para o desfecho “irritabilidade”, observando uma redução nos níveis deste construto associada ao uso do fármaco quando avaliado pela escala CAST-IRR. Por último, vale mencionar os estudos que correlacionam aumento de prescrição de antidepressivos em dada localidade com redução de parâmetros gerais de criminalidade. Tais achados, ainda que não possam ser ignorados, devem ser acolhidos com ceticismo. Se a associação encontrada nos estudos de coorte mencionados anteriormente não pode ser entendida como causalidade, o mesmo deve ser aplicado em relação a estudos ecológicos, com a ressalva de que a cadeia de potenciais confundidores em tais estudos é imensamente mais ramificada e complexa em relação ao desenho das coortes finlandesa e sueca.

Mensagem final

Em resumo, não é possível ligar o uso de inibidores seletivos de recaptação de serotonina a comportamentos agressivos de maneira incontestável com o conhecimento construído até aqui. Os estudos epidemiológicos com desenhos mais robustos, no entanto, indicam que essa relação deve ser observada e discutida com mais cuidado, ainda que o aumento de risco absoluto não pareça ser grande.

Assim como o estudo sueco deste ano demonstrou uma associação mais clara em indivíduos jovens com história prévia de crimes violentos, novos estudos de farmacoepidemiologia devem focar em esclarecer a relação de causalidade dessa possível associação, depurando fatores de risco que possam no futuro nortear as práticas clínicas. Embora nenhuma recomendação absoluta possa ser extraída dos achados até aqui, é possível avaliar com cuidado a prescrição para indivíduos jovens quando o histórico de violência estiver presente e alternativas terapêuticas forem viáveis. Ainda que as evidências disponíveis não sejam definitivas, elas não são tampouco negligenciáveis.

 

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