Lesão miocárdica após cirurgia não cardíaca

A AHA lançou um documento com orientações em relação ao diagnóstico e manejo de pacientes com lesão miocárdica após cirurgia não cardíaca.

A lesão miocárdica após cirurgia não cardíaca (MINS, do inglês myocardial injury after non-cardiac surgery) ocorre de forma relativamente frequente e tem relação com prognóstico, sendo que pacientes que apresentam MINS tem maior mortalidade. Recentemente, a AHA lançou um documento com orientações em relação ao diagnóstico e manejo de pacientes com lesão miocárdica após cirurgia não cardíaca. Abaixo estão os principais pontos abordados.

lesão miocárdica

Definição

Pelo menos uma dosagem de troponina acima do percentil 99, decorrente de um mecanismo presumidamente isquêmico, na ausência de causas não isquêmicas e que ocorre em até 30 dias após a cirurgia. Não é necessária alteração clínica ou eletrocardiográfica para o diagnóstico. Importante ressaltar que o tipo de troponina tem influência, com maior detecção de MINS quando usadas as troponinas ultra-sensíveis (US). Além disso, estudos com troponina I ainda são escassos e a troponina T US é a mais utilizada.

Ao detectarmos uma troponina alterada no pós-operatório precisamos confirmar se realmente é uma alteração aguda ou se se trata de injúria miocárdica crônica. Para isso é necessário repeti-la de forma seriada e quando há aumento ou queda maior que 20% entre uma dosagem e outra, consideramos lesão aguda. Este valor foi definido a partir de opinião de especialistas e ainda não validado no cenário de pós-operatório. 

O valor absoluto da troponina também pode nos auxiliar: o aumento da troponina T ultra-sensível (US) em mais de 5ng/L tem associação com aumento de mortalidade em 30 dias e pacientes com pico de troponina maior que 20ng/L tiveram mais de 3% de mortalidade em 30 dias. Já valores de pico maiores que 65ng/L tiveram relação com maior mortalidade independente da variação.

 A obtenção de troponina pré procedimento pode servir como base e é recomendada para pacientes com idade ≥ 65 anos ou ≥ 45 anos com doença aterosclerótica coronária (DAC) ou doença aterosclerótica periférica (DAP) estabelecidas.

Para o diagnóstico de MINS, devemos excluir as causas não isquêmicas, que representam 11 a 14% dos casos. As principais são sepse, embolia pulmonar, elevação crônica de troponina, desbalanço entre oferta e consumo de oxigênio por mecanismo não aterotrombótico (fibrilação atrial (FA) de alta resposta ventricular, anemia grave) e insuficiência cardíaca descompensada.

Epidemiologia

É alteração relativamente comum, porém bastante variável, já que 90% dos pacientes não tem sintomas isquêmicos identificáveis e o diagnóstico depende da coleta da troponina no pós-operatório. Uma metanálise com 53.0867 cirurgias mostrou incidência de 18% e uma análise restrita a grandes séries de casos com dosagem sistemática da troponina mostrou incidência  de 20%. Um estudo mostrou que 78% dos casos ocorrem no dia da cirurgia ou no primeiro dia de pós-operatório e 94% até o segundo dia de pós-operatório. 

Mecanismos da lesão miocárdica

MINS por definição tem origem isquêmica, com desbalanço entre oferta e consumo de oxigênio ou aterotrombose. Muitos fatores podem contribuir para este desbalanço e consequente aumento da troponina no pós-operatório. A anestesia e o trauma cirúrgico geram aumento de catecolaminas, cortisol e citocinas inflamatórias com consequente alterações hemodinâmicas e do sistema coagulação

  • Taquicardia: diminui o tempo de diástole e aumenta o estresse da parede miocárdica com consequente aumento do consumo de oxigênio.
  • Hipertensão: aumenta a pós-carga e o consumo de oxigênio e gera aumento do estresse de cisalhamento na parede da coronária, que pode instabilizar uma placa.
  • Hipotensão e bradicardia: podem gerar hipoperfusão coronária e, na presença de placa, gerar desbalanço entre oferta e consumo de oxigênio.
  • Aumento da ativação plaquetária e hipercoagulabilidade: estado pró trombótico, inflamação vascular, disfunção endotelial e doença coronária microvascular.

Estudo que avaliou anatomia coronária no pré operatório mostrou que 72% dos pacientes que tiveram infarto no pós-operatório tinham placa obstrutiva prévia e apenas 4% não tinham doença coronária estabelecida. Entre pacientes que realizaram avaliação da anatomia coronária no pós-operatório, em decorrência de IAM ou MINS, 77 a 94% tinham DAC obstrutiva e esse parece ser o fator mais importante para ocorrência deste evento. 

Fatores de risco

Alguns fatores de risco foram identificados em estudos de coorte: sexo masculino, idade mais avançada, capacidade funcional avaliada pelo score Duke Activity Status Index (capacidade funcional estimada e capacidade máxima de exercício em testes de esforço não tiveram relação com ocorrência de MINS), hipertensão, diabetes, doença coronária, doença arterial periférica, doença cerebrovascular, insuficiência cardíaca, fibrilação atrial, doença renal crônica (clearence < 60ml/min/1,73m2), apneia do sono obstrutiva grave não tratada, alto risco no score de Lee e no STOP-BANG score. 

Em relação a exames complementares, os que tiveram relação com MINS são: BNP ou NT-pró BNP aumentados, relação neutrófilo-linfócito > 4, glicemia aumentada, presença de plaquetas reticuladas, isquemia em prova funcional, recuperação da frequência cardíaca no teste ergométrico prejudicada.

O tipo de cirurgia também tem relação, sendo mais aumentado nas cirurgias de emergência, nas vasculares (principalmente cirurgias abertas de aorta e infra-inguinais) e intra-abdominais.

Tratamento medicamentoso

Até o momento não há nenhuma medicação segura e efetiva, já que não há nenhum grande estudo multicêntrico randomizado que teve MINS como desfecho primário. Três grandes estudos avaliaram uso de beta-bloqueadores, agonistas alfa-2, aspirina e oxido nitroso, com infarto compondo o desfecho primário e atualmente podem nos auxiliar, já que infarto é englobado pela definição de MINS.

O estudo POISE mostrou que os beta bloqueadores reduziram o risco de infarto não fatal em 30%, porém às custas da ocorrência de duas vezes mais AVCs e com aumento da mortalidade por todas as causas. Sendo assim, não é recomendado iniciá-los como forma de reduzir infarto perioperatório, porém pacientes que já fazem uso da medicação devem mantê-la.

Aspirina e clonidina foram estudadas no POISE-2 e não mostraram benefício em reduzir infarto ou mortalidade. Além disso, clonidina desencadeou bradicardia e hipotensão e aspirina sangramento. No subgrupo de pacientes que tinham stent (5%) houve menor ocorrência de infarto e mortalidade. aA recomendação atual é não iniciar nenhuma dessas medicações e manter aspirina caso o paciente tenha tido evento prévio, principalmente com angioplastia.

O estudo ENIGMA-2 avaliou o uso de oxido nitroso ou nitrogênio durante anestesia geral. Não houve benefício ou malefício do uso da medicação em relação a desfecho cardiovascular, incluindo infarto.

Em relação ao uso de estatina, inibidores de ECA e bloqueadores do receptor de angiotensina os dados são limitados e controversos na prevenção de MINS.

Hipotensão intraoperatória

Não há grandes trials que avaliaram a hemodinâmica intraoperatória e desfecho cardiovascular. Porém análises retrospectivas sugerem que mesmo pequenos períodos de hipotensão são associados a lesão miocárdica, insuficiência renal aguda e mortalidade. Um estudo mostrou que pressão arterial média menor que 65 mmHg ou queda de aproximadamente 30% do basal foi associado a injúria miocárdica e lesão renal aguda. 

Os fatores de risco de base do paciente são preditores muito melhores de MINS, porém a hipotensão é algo muito mais facilmente controlado e um terço dos casos ocorre entre a indução anestésica e a incisão cirúrgica. O monitoramento intra-operatório contínuo reduz a frequência e gravidade dos episódios de hipotensão, já que permite a intervenção mais precoce quando ocorre, com redução de seu tempo total.

Não há estudos randomizados em relação a estratégias para controle da hipotensão e redução da ocorrência de MINS e infarto.

Taquicardia intraoperatória

Alguns estudos mostraram associação entre taquicardia pré operatória e ocorrência de MINS. Uma análise secundaria do estudo VISION também mostrou associação entre lesão miocárdica e taquicardia, principalmente quando frequência maior que 100bpm por períodos prolongados, porém outro estudo com quase 3000 pacientes não mostrou essa relação. 

Vigilância pós-operatória

A analgesia e sedação do pós-operatório mascaram a ocorrência de sintomas isquêmicos, como a dor torácica, o que limita a obtenção de informações importantes em relação a ocorrência de eventos cardiovasculares. Em um estudo de 2018, apenas 6% dos pacientes com aumento de troponina tiveram dor torácica e 18% tiveram sintomas isquêmicos de qualquer tipo. No estudo VISION, dos pacientes com MINS, 7% tiveram sintomas isquêmicos e 25% tiveram alteração eletrocardiográfica, com alterações isquêmicas mais comuns sendo inversão de onda T (17%) e infra-desnivelamento de segmento ST (10%).

Por estas características, a identificação de lesão miocárdica deve ser baseada na dosagem da troponina. A coleta da troponina não deve ser realizada para todos os pacientes no pós-operatório, mas para aqueles com alto risco cardiovascular, sendo que o benefício parece ser maior para os pacientes em quem o diagnóstico levaria a mudança terapêutica. Este grupo ainda também não é bem definido. As recomendações das principais diretrizes são: 

  • Diretriz canadense: recomenda a coleta de troponina seriada por 48 a 72 horas após cirurgia não cardíaca em pacientes de alto risco, definidos como os com BNP aumentado, score de Lee maior ou igual a 1, idade maior ou igual a 65 anos ou entre 45 e 64 anos com doença cardiovascular significativa.
  • Diretriz da ESC: coleta de troponina até 48 a 72 horas após cirurgias maiores pode ser considerada em pacientes de alto risco
  • Diretriz da Sociedade Europeia de Anestesiologia: sugere coleta de troponina antes do procedimento e até 48 a 72 horas após em pacientes de alto risco que serão submetidos a cirurgias maiores.
  • Diretriz da AHA: não recomenda coleta de troponina de rotina, apenas na presença de sinais ou sintomas isquêmicos.

Prognóstico

Pacientes com MINS tem prognóstico pior a curto e longo prazo. Um estudo mostrou mortalidade pós-operatória de 6,1% em 30 dias em pacientes com MINS, sendo 60% dós óbitos considerados de causa cardíaca. Houve também aumento da mortalidade em 1 ano e aumento da taxa de recorrência de eventos em 1 a 2 anos após a cirurgia. Pacientes com MINS devem ser seguidos por cardiologista com objetivo de otimizar a estratificação de risco e medidas de prevenção secundária.

Manejo pós-operatório

O manejo ideal de pacientes com MINS ainda não é bem definido. A maioria dos casos está relacionada a doença aterosclerótica e devemos excluir outras causas de lesão que tem tratamento específico (embolia pulmonar, doença valvar, insuficiência cardíaca descompensada). Quando há dúvida do mecanismo de lesão, exames complementares podem ser necessários. 

A terapia antitrombótica parece ser benéfica e a prescrição de aspirina na alta é associada a redução de risco de mortalidade em 30 dias. Anticoagulação também foi investigada no estudo MANAGE, que testou rivaroxabana 110mg duas vezes ao dia comparado ao placebo. A ocorrência de eventos vasculares maiores foi menor no grupo anticoagulado, porém sem diferença em mortalidade e infarto não fatal e às custas de aumento de sangramento menor e de trato gastrointestinal. Porém esse estudo teve muitas limitações e alta taxa de suspensão da medicação. Em relação a estatinas, não há estudos randomizados com pacientes com MINS, porém é uma medicação que parece ser benéfica.

Atualmente, a prescrição de AAS e estatina ainda é baixa (um estudo mostrou que apenas 48% dos pacientes receberam AAS e estatina na alta), assim como o seguimento destes pacientes com cardiologista (outro estudo mostrou que apenas metade dos pacientes foi visto por cardiologista na alta e apenas 29% destes tiveram o tratamento otimizado). Um estudo pequeno mostrou que pacientes com MINS que tiveram tratamento otimizado, tiveram mortalidade semelhante a dos pacientes sem MINS. Já os que não tiveram o tratamento otimizado tiveram maior risco de mortalidade ou eventos cardiovasculares.

O ideal é encaminhar esses pacientes para consulta com cardiologista e a avaliação com exames complementares deve ser individualizada. A realização rotineira de coronariografia não parece ter benefício, mas pode ser necessária nos casos de pacientes de alto risco.  O momento ideal para sua realização também não está bem definido e deve ser baseado no contexto clínico, valor do pico de troponina, presença de isquemia persistente e risco de sangramento relacionado ao procedimento.

Leia também: Podemos usar a troponina para diferenciar IAM tipo 1 de outras causas de lesão miocárdica?

Conclusão

O diagnóstico de MINS é relativamente novo, descrito inicialmente em 2014, sendo que ainda há dúvidas em relação ao diagnóstico e população em risco, mas principalmente em relação ao manejo desses pacientes. Há vários estudos controlados e randomizados em andamento que nos ajudarão a esclarecer esses questionamentos. 

Referências bibliográficas:

 

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