Lesão renal aguda e sepse: o que as evidências orientam?

Lesão renal aguda e sepse são condições clínicas extremamente prevalentes no ambiente hospitalar, em especial nas unidades dedicadas a pacientes críticos.

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Tanto a lesão renal aguda (LRA) quanto a sepse são condições clínicas extremamente prevalentes no ambiente hospitalar, em especial nas unidades dedicadas a pacientes críticos. Não bastasse ambas serem cheias de controvérsias quanto a sua definição e diagnóstico, ainda é bem frequente que ocorram em conjunto. Isso resulta em muitas dúvidas, em especial porque o tratamento de uma frequentemente compromete o da outra.

Logo, alguns estudos, entre eles a revisão sistemática do British Medical Journal (BMJ) usada neste artigo, tentam descobrir os pontos-chave aos quais devemos prestar atenção nesses casos.

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Sepse e lesão renal aguda: definições

Sepse é definida, segundo as últimas diretrizes emitidas no consenso Sepsis-3, como uma síndrome clínica potencialmente fatal caracterizada por disfunção orgânica resultante de uma resposta desregulada do corpo a uma infecção. Essa definição é importante pelo foco na lesão orgânica como característica principal da sepse. Definições anteriores usavam o espectro SIRS-sepse grave-choque séptico para o diagnóstico.

Esse critério, por sua vez, foi abandonado porque a síndrome da resposta inflamatória sistêmica (SIRS), na verdade, não é específica de quadros infecciosos, estando presente em até 87% dos pacientes em UTI. Além disso, pesquisas recentes mostram que quase 100% dos pacientes com infecção fecham critérios para SIRS, independentemente da presença de lesão orgânica.

A definição de LRA não é menos controversa. Até o momento, vários critérios já foram propostos, sendo as diretrizes da KDIGO as mais atuais. No caso da LRA, a preocupação sempre foi buscar um diagnóstico mais precoce, a fim de evitar as várias complicações associadas (incluindo a evolução para DRC e necessidade de diálise).

Assim, da classificação RIFLE, surgiu a AKIN que adicionava pequenas variações de creatinina (> 0,3mg/dL em 48h) à definição de LRA estágio 1. Já a KDIGO estende esse critério para variação em 50% da creatinina basal em 7 dias.

LRA secundária a sepse

A importância de se estudar essa condição em particular é que, em aproximadamente metade dos casos de sepse, há LRA associada e vice-versa. Enquanto a sepse é facilmente reconhecida como um fator de risco para LRA, poucos sabem que a LRA também é fator de risco para sepse.

O mecanismo de lesão renal nesses casos, geralmente, é atribuído à hipoperfusão renal característica da vasodilatação sistêmica do estado séptico. Porém, outros mecanismos podem estar envolvidos, como alterações microvasculares (como trombos e estenoses) e até alterações na difusão de oxigênio através do parênquima renal inflamado.

Outro mecanismo proposto é a inflamação resultando em apoptose de células tubulares renais. Tal explicação esclareceria casos de LRA presente apesar de estabilidade hemodinâmica mantida.

Além disso, tanto drogas vasoativas quanto antibióticos são potencialmente nefrotóxicos, o que acrescenta maior confusão ao diagnóstico de mecanismos de lesão da LRA associada a sepse.

Detecção precoce

O risco de evolução para terapia de substituição renal (TSR) e DRC é o principal motivo para se investir em formas de detecção precoce da LRA. Apesar do fácil acesso, métodos como a análise de volume urinário e variações na creatinina são relativamente tardios. Ou seja, surgem apenas quando o processo de lesão já está instalado.

Por isso, muito esforço tem sido feito em encontrar marcadores precoces de disfunção renal ou escores que indiquem o risco de evolução para tal. Alguns exemplos são:

  • EAS: Um escore baseado em células tubulares e cilindros no exame de urina de rotina é proposto como uma ferramenta. Escores acima de 3 tem sido associados à evolução mais grave da LRA. Além disso, o surgimento de nova albuminúria mostrou um odds ratio de 1,87 para o surgimento de LRA associada a sepse.
Escores propostos para análise do EAS no contexto da LRA-sepse (POSTON, 2019)

 

  • Índice de Angina Renal (renal angina index): um escore baseado tanto em fatores de risco para LRA (ex: comorbidades) quanto na curva de TGF, que tem mostrado boa capacidade de predição para os estágios 2 e 3 da classificação de KDIGO
  • Marcadores bioquímicos: entre eles a proencefalina, cistatina C, gelatinase de neutrófilos associada a lipocalina (NGAL) e dosagem urinária de TIMP2 e IGFBP7. Em todos esses casos, elevações nesses marcadores séricos ou urinários surgiam antes da elevação de creatinina e, logo, têm potencial para prever a o surgimento de LRA.

Manejo

O artigo em questão traz alguns pontos dignos de nota no manejo da LRA associada a sepse:

– Ressuscitação volêmica: é comum o uso indiscriminado da soroterapia na sepse, em especial pelo conhecimento já bem estabelecido de que a ressuscitação volêmica é um dos elementos mais importantes nas primeiras 6 horas após suspeita de sepse. Porém, é importante lembrar que o excesso de volume também é deletério. Nas pesquisas, pacientes tratados com soroterapia mais conservadora apresentaram menor necessidade de VM e dias em UTI, mas também menor risco de entrar em TSR. Isso porque a congestão renal e o aumento da pressão intra-abdominal por edema de alça e ascite também comprometem a perfusão, piorando a TFG. Além disso, entre os cristaloides disponíveis para a ressuscitação, os hiperclorêmicos (como o fisiológico) foram associados a piores TFG e taxas de sobrevida que as soluções balanceadas (ex: ringer simples).

– Drogas vasoativas: a noradrenalina ainda é a principal escolha de DVA na sepse. Porém, apesar de aumentar a perfusão renal, sua atuação vasoconstrictora piora a hipóxia na medula renal. A principal alternativa sugerida é a vasopressina, que apresentou eficácia semelhante à da noradrenalina em termos de estabilização hemodinâmica, porém com menor incidência de LRA. Outra alternativa é a angiotensina II, que não só exerceu efeito vasopressor, mas também resultou em menor necessidade de TSR nos pacientes estudados.

– Ventilação mecânica: modos ventilatórios com pressão positiva têm sido associados a piora da função renal tanto pela redução do débito cardíaco (consequência do menor retorno venoso resultante do aumento de pressão intratorácica), quanto pelo estado inflamatório gerado pela lesão pulmonar subjacente. Claramente, a indicação de VM muitas vezes está dissociada à causa da disfunção renal e, logo, é inevitável. Porém, estudos mostram que altos volumes correntes e aumentos da pressão intratorácica (ex: nas manobras de recrutamento alveolar) devem ser evitados sempre que possível em pacientes com LRA secundária a sepse.

– Terapia de substituição renal: os estudos têm mostrado, principalmente, que o início precoce da TSR é deletério em casos de LRA. Pacientes com início tardio apresentaram maior chance de recuperação renal, da mesma forma que os de início precoce apresentar maior grau de lesão orgânica. A taxa segura ficou na faixa entre 30-35mL/Kg/h e não houve diferença estatística entre as modalidades. Mesmo a hemoperfusão com polimixina B não mostrou redução de mortalidade.

– Terapia medicamentosa: várias medicações têm sido testadas como “protetoras renais”. Diuréticos de alça, antigamente utilizados como forma de estímulo para a diurese, têm mostrado piora importante na função renal de pacientes em LRA. De todas as medicações testadas até o momento, a mais promissora é a fosfatase alcalina. Ela atua diretamente na desfosforliação de endotoxinas bacterianas, reduzindo o desafio antigênico e a agressão inflamatória aos tecidos (estudos mostraram redução de mortalidade em pacientes com LRA). Outra medicação que se mostra eficaz é a tiamina em doses de 200mg/dia por 7 dias (que se associou a formas mais brandas de LRA e menor necessidade de TSR).

Recuperação de função renal

Por fim, a última dúvida: quais as chances de um paciente se recuperar após evoluir com LRA associada a sepse? Sabe-se que o período entre 8 e 90 dias após a detecção da LRA são os determinantes da evolução. Sabe-se também que a curva de creatinina não é um bom preditor, especialmente pela perda importante de massa muscular que costuma ocorrer em pacientes críticos.

Porém, as evidências atuais ainda não são suficientes para construir um panorama dessa evolução, especialmente no caso específico da sepse, sobrando apenas o acompanhamento para detecção de possíveis sequelas.

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Referências:

  • Jason T, Koyner Jay L. Sepsis associated acute kidney injury BMJ 2019; 364 :k4891

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