Médicos no limite e suas vidas duplas

A crença de que os médicos vivem em seus mundos ideais muitas vezes não exprime o lado mais sombrio de nossa rotina. Diante da dualidade entre o ideal e o real, muitos encontram formas variadas de suporte e fuga.

A medicina, ciência ou arte, como tudo relacionado aos mais diversos aspectos da natureza humana, de longe é algo simples, linear.

A crença de que os médicos vivem em seus mundos ideais, como retratados de forma romântica por livros, filmes ou mesmo séries televisivas, muitas vezes não exprime o lado mais sombrio de nossa rotina; aquele cheio de dúvidas, conflitos externos/internos, a constante luta contra o sistema, que nem sempre acabam nos finais felizes que gostaríamos.

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Diante dessa dualidade existente entre o ideal e o real, muitos encontram as formas mais variadas de suporte, ou melhor, fuga. Nesse contexto é que observamos a figura do “médico arruinado”, o qual segundo a definição da Associação Médica Americana (AMA) compreende aquele profissional cuja saúde mental ou física interfere em sua capacidade de se engajar adequadamente em suas atividades profissionais. Apesar de utilizada de forma mais abrangente, tal expressão faz menção normalmente àqueles profissionais que sofrem com distúrbios de abuso de substâncias (DAS).

Não é de hoje que médicos buscam sua fuga no abuso de substâncias. Figuras notáveis da medicina configuram importantes referências de como tal tipo de comportamento pode ser prejudicial não somente para a carreira médica, mas também apresentar riscos para seus entes queridos ou mesmo pacientes.  Tomemos como exemplo o famoso cirurgião norte americano Dr. William Stewart Halsted, pai da cirurgia moderna, notável em sua vida acadêmica e médica, mas que por de trás de toda sua intrigante energia intelectual e física, conforme relatos reais na literatura, escondia seu vício na substância recém descoberta por Sigmund Freud – a cocaína – na qual empregava grande parte de seus esforços após a descoberta de seus efeitos como anestésico local. Curiosamente, o ópio foi outra droga muito utilizada pelo mesmo, como método de contrapor sua exacerbada capacidade produtiva em momentos oportunos.

O distúrbio de abuso de substâncias entre médicos possui uma prevalência anual aproximada de 10% a 12% em estudos americanos, com predileção pelo sexo masculino, aspectos similares à população em geral. Alguns fatores são particulares no caso dos médicos em relação ao resto da população como o acesso facilitado, o conhecimento sobre os efeitos farmacológicos das substâncias, além da capacidade de prescrição das mesmas. Dentre as substâncias mais utilizadas destacam-se os opioides, benzodiazepínicos, propofol, além do próprio etanol. As especialidades mais relacionadas incluem anestesia e psiquiatria, todavia é fato que todos estão sob risco. Além do mais, tal distúrbio muitas vezes está associado a outras doenças psíquicas, tais como depressão maior, transtorno bipolar, fobia social, ansiedade generalizada (TAG) ou personalidade antissocial, podendo levar mesmo a desfechos catastróficos, como o suicídio.

Veja mais: ‘A saúde mental dos médicos Residentes e suas consequências no dia a dia’

O diagnóstico do distúrbio compreende a avaliação de 11 sintomas, a saber:

  1. Consumo da substância por tempo superior ou quantidade maior do que o pretendido;
  2. Necessidade de reduzir ou cessar o consumo da substância, sem ser capaz de fazê-lo;
  3. Gasto de grande quantidade de tempo para obtenção ou recuperação do uso da substância;
  4. Desejo intenso (craving) de uso da substância;
  5. Comprometimento das atividades laborais ou acadêmicas em decorrência da adição;
  6. Uso continuado apesar do comprometimento das atividades interpessoais;
  7. Desistência de atividades sociais, ocupacionais ou recreativas importantes em decorrência do consumo;
  8. Uso repetido mesmo quando coloca o indivíduo sob risco;
  9. Manutenção do uso apesar do conhecimento de que problemas físicos ou psicológicos são causados ou pioram por este;
  10. Desenvolvimento de tolerância (necessidade de doses mais elevadas para se obter o mesmo efeito);
  11. Abstinência.

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Podemos ainda traçar um contínuo entre a gravidade do quadro e os sintomas relacionados, classificando o distúrbio em leve (2 a 3 sintomas), moderado (4 a 5 sintomas) ou grave (>6 sintomas).

A identificação do profissional acometido é essencial, assim como a notificação da suspeita é uma obrigação ética, afinal se coloca em risco não somente a vida do próprio indivíduo, como também de seus pacientes e colegas de trabalho. No entanto, isso pode ser um verdadeiro desafio, visto que os profissionais da saúde são bons em disfarçar o consumo irregular, ao ponto de alguns autores recomendarem o teste mandatório de drogas e álcool após um “evento sentinela”. Deve-se sempre atentar para os intitulados sinais de alarme: deterioração do comportamento social e interpessoal (muitas vezes notado por familiares e amigos), absenteísmo inexplicado, frequentes conflitos com colegas de trabalho, inacessibilidade por pacientes ou staffs, frequentes trocas de local de trabalho ou mesmo sinais como o hálito etílico ou descoordenação motora durante o período de trabalho.

Curiosamente, apesar das suspeitas, muitos são relutantes em reportar um colega ou amigo “arruinado” para as autoridades apropriadas, com o intuito de se evitarem confrontos ou mesmo prejudicar a carreira médica. Não obstante, é importante que colegas de trabalho não diagnostiquem ou tratem um indivíduo com DAS, devendo apenas anotar detalhes sugestivos do comportamento, os quais podem inclusive apresentados ao doente por meio de profissionais especializados, podendo contar com auxílio de familiares ou amigos na estratégia de intervenção.

Veja também: ‘Cirurgiões que não se comunicam sobre efeitos adversos sofrem mais’

Os norte-americanos possuem um método bem interessante de lidar com tal distúrbio com os chamados Programas de Saúde Médica (PHP – Physician Health Programs), nos quais os médicos podem se autorreferenciar (como ocorre em 26% dos casos) ou mesmo serem encaminhados por amigos ou autoridades (professores da escola médica, staffs, juízes). Tais programas não possuem o intuito de tratar, mas sim prover a detecção precoce, avaliação e encaminhamento para unidades de tratamento específico, as quais podem garantir inclusive acompanhamento domiciliar. Nesse processo, um grande fator de motivação é a proteção legal da carreira do indivíduo, porém a não concordância com as regras do programa pode levar a penalidades, tais como intensificação da monitorização até descontinuação do trabalho e reavaliação de terapia adicional. De maneira genérica, os resultados de médicos acometidos são melhores do que na população como um todo, já que há grande motivação na manutenção da licença para a prática médica, seja por motivos de satisfação pessoal/social ou mesmo financeira. Portanto o prognóstico é bom com recuperação e preservação da habilidade de praticar a medicina em mais de 70% dos indivíduos.

Caso haja mais interesse no tema, uma interessante série televisiva que retrata fielmente tal realidade intitula-se “The Knick” (Cinemax, 2014), a qual estabelece um paralelo entre a adição do cirurgião Dr. John W. Thackery (Clive Owen) e o personagem histórico Dr. Halsted.

 

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250-BANNER4Referências: 

  • IMBER G. Genius on the Edge, the bizarre double life of Dr. William Stewart Halsted. New York: Kaplan, 2011.
  • SUDAN R, SEYMOUR K. The Impaired Surgeon. Surg Clin N Am 96, 2016. 89-93pp.

 

 

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